segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Cognição e sublimidade poética em Márcia Passos!...

«Quando eu era moço observei que nove das dez coisas que eu fazia fracassavam. Como não desejava fracassar, eu trabalhava dez vezes mais.»

Bernard Shaw


Quando nos propomos em falar da consciência, enquanto conhecimento que qualquer ser humano possui dos seus pensamentos, dificilmente poderemos misturar o estado imediato ou espontâneo, que nos remete para a simples presença de nós perante nós mesmos, no momento em que pensamos, sentimos e agimos, com as debilidades físicas ou ilusórias dos nossos desejos e representações. Não é por acaso que muitos dos filósofos defendem que em todos os casos, a consciência é sempre igualmente consciência de si, tendo em conta a possibilidade que tem de se desdobrar sobre si própria. Para pensarmos o mundo que nos rodeia, não temos que necessariamente apelar à mobilidade física. Como diria Pascal nos seus “Pensamentos”: «O homem não é mais de que um junco, o mais fraco da natureza, mas é um junco pensante», levando-nos à “certeza” de que a consciência reflecte a essência do ser humano e se faz a sua miséria, mas constitui também a sua grandeza.
Toda esta “retórica” inicial para repudiarmos a velha pseudociência da “fisiognomia” assumindo, porque não, uma espécie de “vingança do espírito sobre a matéria”. Vem isto a propósito desse ser maravilhoso (de te fabula narratur) que se dá pelo nome de Márcia Filipa Barbosa Passos, com translações iniciadas, na cidade de Viana do Castelo, a 24 de Julho de 1995, cujos diagnósticos físicos a relevam para a circunstancial condição de ser uma jovem portadora de paralisia cerebral, lesão esta decorrente de um trauma obstétrico e que a deixou com graves sequelas a nível motor e de fala.


É esta mesma Márcia Passos, finalista do Curso Superior de Gestão Artística e Cultural (sonho concretizado e com perspectiva de estágio a curto prazo), que desde muito cedo, a forma mais clara que ela tinha de comunicar, de maneira a que a fosse entendida, era através do que escrevia; talvez daí o profundo gosto pela escrita, o seu maior escape, nos bons e maus momentos. E se um dia sonhou (em) escrever um livro, como forma de consciência como intencionalidade, fornecedora de sentido, se eventualmente o sentido for reconhecido como aquilo que faz um SER maravilhoso como a Márcia orientar-se para algo, que a transcende e a projecta para o futuro, «entre mim & eu» resulta da “não interioridade”, nem “coisa”, mas exterioridade, “relação com…”, intencionalidade: «Escrever é um escape que toda a alma perdida procura, / Escrever é encontrar água no deserto, / Um oásis ali, bem perto. / Escrever é deitar a cabeça na almofada / E sonhar, com palavras e letras a alma a cantar…» (p. 11). Até mesmo a aparente “tristeza literária”, apazigua-se com os desabafos da alma e do coração, porque fala de presença, testemunho, gratidão, sombras e passos, eternidade, palavras e argumentos: «…E eu, / Agora, / Sou mais e menos / Do que a sombra que atormenta / A escuridão. / Quem sou? / Apenas destino / Esculpido / Pelo correr do tempo.» (p. 15). A consciência como fundamento do conhecimento intemporal, transparência do SER perante si mesmo. Nada há de pura coincidência de si para consigo.
O SER maravilhoso em Márcia Passos transfigura-se e suplanta-se às fragilidades, porque é sol, menina e mulher, guerreira. Conscientemente guerreira: «…Quero que, quando morrer, / Ninguém chore, / Não quero flores / Nem fotografia na minha campa, / Porque… / Os ventos sopram, / As árvores abanam, / Os rios correm, / E verão que / A Vida / Está dentro da vida. / Quando morrer…» (p. 18). Sentido de vida para além da vida, numa convicção de que «A Morte dói, / Mas nunca me matará.» (p. 19). Não é para qualquer guerreira, menina-mulher, ter a “consciência” das debilidades templárias (enquanto transporte “de anima”) e afrontar a dor sem deixar de sonhar, a essência de quem vê mais longe: «Escreve sobre mim, / Escreve o destino, / Porque os traços imperfeitos do teu corpo / Já eu os sei de cor. / Escreve e cala-te, / Devora em silêncio os meus livros, / Pequenos regaços teus, / A natureza não pede mais nada do que somente / Os abraços, silenciados pelos momentos…» (p. 26). A sublimidade poética, sem aparências ou dissimulações, em Márcia Passos, faz da poesia, ainda que ela o questione, traços delineados na pele, processamento do poema, vida escrita, onde o amor nasce no regaço dos nossos peitos: «O amor esconde-se / Nos regaços, / Onde os abraços são afagos / Para acalmar o nosso rio, / E dar luz ao instinto, / Dar alma às palavras reveladas / Que saem e que falam de amor…» (p. 39).
Por contraditório à nossa formalidade de princípio, quando achamos que é um atentado explicar poesia e não senti-la (afrontando à boa maneira aristotélica, “o contingente opõe-se ao necessário”), ficar-nos-emos pelo predicado real que só pode ser entendido como um ser contraposto ao ser aparente. O que não é o caso de «entre mim & eu» em Márcia Passos, por onde perpassam passaportes para o quotidiano; mar dos poetas onde pescadores perdem vidas; mitos que permanecem; luzes e sombras; gritos em silêncio; liberdades que (nos) fazem esquecer as amarras do passado: «Liberdade é ler os livros que ninguém lê, / Olhar nos olhos de outro alguém, / Não ser perfeito, somente fazer o que lhe convém. / É livre quem nasceu para viver. / E quem, até por justa causa, / Não tem medo de morrer.» (p. 49); sopros do adeus; hinos à Mãe pela pena da “menina dos olhos tristes”; saudades; música para adormecer; lençóis íntimos das palavras: «…Aqui está o Entre Mim e Eu, / Só entre mim e eu é que escrevo, / Comigo não há mais nada na alvorada do dia, / Pois estou só, guiada pela mão da Poesia.» (p. 71); e formas de ser feliz. Tal como a Márcia, “Hoje, oiço o poema / De uma menina que tudo faz / Para ser Feliz.” Sabemo-lo e sentimo-lo, porque “de anima” (emanação quente pela qual foste criada) de mulher, em corpo de menina.
           Até à próxima!

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1256, 29/30 de Outubro de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-31)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

«Obsessão Ocidental: o problema da causalidade mental» aos olhos de William James!...

«William James afirma que uma ideia verdadeira não é uma simples cópia da realidade. É quando uma ideia é um guia útil para acção e está de acordo com a realidade, que ela é verdadeira…»

Élisabeth Clément [et al.]

Porque andamos preocupados e, circunstancialmente, envolvidos pelo estudo da “interpretação e indiscernibilidade”, recorrente de uma necessidade de espairecer a própria consciência, a nossa rede de segurança assenta – ou alicerça-se – na leitura de William James (1842-1910), filósofo e psicólogo norte-americano pioneiro, considerado, ao lado de Charles Sanders Peirce, um dos fundadores do pragmatismo.
Se tomarmos em linha de conta a imagem científica do mundo, depressa concluiremos que todos dependem de uma imagem científica desse mesmo (nosso) mundo. O mapa do problema de William James é claro na indicação do curso da acção. Duas histórias correm lado a lado com fidelidade: Uma das histórias só tem sentido contra a outra se exercer uma função útil.
A sequência de pensamento jamesiano pode ser melhor compreendida pelo fim. Suponha-se que, de facto, existe uma influência causal da consciência no sucesso biológico dos indivíduos. Tomando como pano de fundo a ciência moderna, somos obrigados a concordar que ainda hoje nos mantemos enredados em três pertinentes interrogações: Como identificar a influência causal?; Quais os sinais que revelam essa influência causal?; Se essa influência causal existe, como denuncia a sua presença? – que nos obrigam, hermenêuticamente falando, a saber interpretar sinais, nomeadamente os da consciência. Assim sendo, e parafraseando William James, a manutenção de um registo de memória ao longo do tempo de vida do indivíduo é um início da presença da consciência; os indivíduos biológicos em que a distinção entre dor e prazer é conspícua têm mais probabilidades de sobrevivência do que os indivíduos em que essa distinção é inexistente; um nível X de complexidade organizacional dos cérebros é condição suficiente para identificar a presença da consciência; e os sentimentos de paixão amorosa revelam a influência causal da consciência na vida dos sujeitos.


O problema jamesiano da procura de sinais da eficiência causal da consciência não está encerrado numa colecção finita de situações padronizadas. Assim, a referência aparentemente excepcional do ser humano adulto consciente é um esquema de interpretação da presença da consciência entre muitos outros esquemas. Por isso, para este filósofo e psicólogo norte-americano, não existe nenhum princípio racional a partir do qual se possa avaliar todas as situações de identidade entre sujeitos conscientes (autistas vs. pacientes da síndrome do locked in, lobotomizados vs. microcéfalos, professores universitários vs. apanhadores de coral, etc.) e entre estados de consciência (depressão vs. alegria, sonho lúcido vs. insónia, actividade racional vs. vergonha, etc.). A haver esse princípio, ele teria que ser interpretado.
O resultado da procura dos sinais de consciência é ambíguo. Ou seja, partimos do que é suficientemente bom para poder ser interpretado como consciente (Ex: quando alguém toma uma atitude socialmente reprovável é característica a expressão – És um inconsciente!) e reforça-se no que é indiscernível de uma experiência subjectiva que se toma provisoriamente como padrão (a do próprio sujeito) – Para nós, hoje, é indiscernível a corrupção e prática da Inquisição; a pena de morte; a escravatura actual, etc. As experiências subjectivas de um único sujeito são constantemente interpretadas e comparadas e, também a seu respeito, não existe um critério absoluto. Por exemplo, uma coisa é aquilo que eu sou, outra coisa é aquilo que julgo que sou. Se eu não me conheço em função da minha consciência – e/ou equilíbrio pessoal –, como poderei desenvolver a minha urbanidade desde a família à sociedade?
Um indivíduo para que possa saber que está consciente tem que identificar sinais e essa é uma actividade em linha de continuidade com processos como o da identificação de rostos de pessoas suas conhecidas. Conteúdos parciais da consciência, como actividade racional, sonho, depressão, ou sentimento amoroso, são interpretados e os seus sinais não são tão evidentes que não necessitem de um inquérito racional (Sonhar é um estado da consciência – por isso é que há a interpretação imediata dos sonhos). A apreensão que a consciência faz de si mesma para ser tão imediata que não necessita de processos de interpretação de sinais. Uma das características principais da consciência é a da verificação de inconsistências nas avaliações de identidade, seja a própria, seja a de outros seres humanos. Ter sensações subjectivas significa, entre muitas coisas, que alguns sinais, eventos, estruturas e conteúdos, são interpretados como fazendo parte do si mesmo e outros como não fazendo parte do si mesmo.
O elemento comum à normalidade e à patologia é a possibilidade do erro que acontece na interpretação de sinais ou indícios. O ponto interessante é o de que todos têm de fazer interpretações porque o referente da palavra que utilizam – “consciência” – não pode ser acedido sem a actividade de interpretação. O grau mínimo da interpretação começa por ser a observação, isto é, o ponto em que se contacta com o objecto a interpretar. Não há interpretações universais tal como não há actos de observações neutros.
Por hoje, aqui fica a nossa partilha. Consciente e pragmática.
         Até à próxima!

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1255, 20 de Outubro de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-30)

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O conceito de trabalho, pensamento ou cognição em Hannah Arendt!...

«A passagem da sociedade – a ascensão da administração caseira, das suas actividades, problemas e recursos organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não diluiu apenas a antiga divisão entre o privado e o político, mas alterou também o significado dos dois termos…»

Hannah Arendt

«A Condição Humana» de Hannah Arendt é quase, obrigatoriamente, a nossa “bíblia” de cabeceira, sempre que sentimos alguma fragilidade cognitiva, face às tropelias ou às bífidas afrontas psicológicas dos detentores do poder, ou daqueles que transitoriamente dele estão arredados. Hannah Arendt, lemo-la para descomprimir e para carregar baterias.
Precisamos dela como do pão para a boca. E porquê? Porque a durabilidade do artifício humano não é absoluta e o uso que dele fazemos, embora não o consuma, desgasta-o. O uso e o consumo, tal como o trabalho e o labor, não são a mesma coisa, embora aparentemente coincidam em certas áreas importantes, o que leva a opinião pública e a opinião dos eruditos a identificar numa só estas duas questões bem diferentes.
Para Hannah Arendt, o processo de “fazer” é inteiramente determinado pelas categorias de meios e fins. A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina com ela e de que é apenas um meio de produzir esse fim. A característica da fabricação é ter um começo definido e um fim definido e previsível, e esta característica é suficiente para a distinguir de todas as outras actividades humanas. Segundo ela, ao longo da aventura humana os instrumentos e ferramentas são objectos tão inteiramente mundanos que chegam a servir de critério para a classificação de civilizações inteiras.
No mundo moderno e contemporâneo as máquinas tornaram-se uma condição tão inalienável da nossa existência como foram os utensílios e ferramentas em todas as épocas anteriores. Hoje é o uso da electricidade que continua a determinar o desenvolvimento técnico, representando a automação o estado mais recente da evolução humana.


Ao contrário das coisas, dos actos ou das ideias, os valores nunca são produtos de uma actividade humana específica, mas passam a existir sempre que os objectos são trazidos para a relatividade da troca, em constante mutação, entre os membros da sociedade. A tão lamentada desvalorização de todas as coisas, isto é, a perda de toda a valia intrínseca, começa com a sua transformação em valores ou mercadorias, uma vez que, daí em diante, passam a existir apenas em relação a alguma outra coisa que pode ser adquirida em seu lugar (Cf. Arendt, 2001: 206).
É esta perda de padrões e normas universais, sem os quais o homem jamais poderia ter construído um mundo, que Platão pressentia já proposta protagórica de estabelecer o homem, fabricante de coisas, e o uso que delas faz, como suprema medida destas últimas. Em virtude da sua suma permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis. A sua durabilidade é superior àquela de que todas as coisas precisam para existir, e, através do tempo, pode atingir a permanência. A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma que a «propensão para a troca e o comércio» é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se, no dizer de Hannah Arendt, de capacidades do homem, e não meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem o seu conteúdo.
No caso das obras de arte, a reificação é algo mais que mera transformação; é transfiguração, verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza, que requer que tudo queime até ficar em cinzas, fosse invertido de modo que até as cinzas pudessem irromper em chamas. As obras de arte são frutos do pensamento, mas nem por isto deixam de ser coisas.
A poesia, por exemplo, cujo material é a linguagem, é talvez a mais humana e a menos mundana das artes, aquela cujo produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou.
O pensamento difere da cognição. O pensamento manifesta-se, sem transformação ou transfiguração como fonte das obras de arte e em todas as grandes filosofias, ao passo que a principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências. Devemos distinguir tanto o pensamento como a cognição da capacidade de raciocínio lógico, que se manifesta em operações tais como deduções de enunciados axiomáticos ou evidentes por si mesmos, na subordinação de ocorrências isoladas a regras gerais, ou nas técnicas de obter cadeias sistemáticas de conclusões (Cf. Arendt, 2001: 212).
A vida no seu sentido não biológico, isto é, o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte do homem, manifesta-se na acção e no discurso, que têm em comum com a vida o facto de serem essencialmente fúteis.
        Fiquem bem e até à próxima, se, eventualmente, não recairmos!

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1254, 8/10 de Outubro de 2016, p. 6 - Crónicas do Átrio e do Lethes-29)