sábado, 4 de outubro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XX)

Entre o Ribeiro e o Tempo. Há lugares onde o tempo escorre devagar, como se tivesse memória. O Ribeiro de S. Simão, afluente do Rio Lima, com o seu sussurro milenar, murmura histórias que não estão nos livros. As pedras molhadas, polidas por passos que já não se contam, guardam o eco de vozes antigas – os nossos avós, e os avós deles, curvados sobre a terra, com as mãos no húmus e os olhos no céu.

A água que ali corre, vinda das entranhas das serras, encontra-se com a maré atlântica como quem reencontra um irmão distante. Mistura-se o doce com o salgado, o interior com o oceânico, e nesse abraço nasce uma nova pele do mundo.

Entre o musgo e o granito, cresce uma aguarela viva: aves em voo baixo, peixes ligeiros, arbustos que resistem ao tempo como resistimos nós – teimosamente vivos. E somos isso: parte da seiva, do ciclo, da dança invisível entre sol e sombra.

A terra que pisamos é também ela um corpo que nos lembra quem somos. Não somos donos: somos descendentes, inquilinos de passagem, herdeiros de silêncios e cantigas.

Ali, entre o ribeiro e o Lima, o homem é menos vaidade e mais raiz, porque continuamos a dar testemunho daquilo que somos e de onde vimos.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 20, quinta-feira, 19 de junho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XIX)

Em Vila Franca do Lima, Viana do Castelo, no coração de uma pequena oficina, entre o cheiro da madeira e o som ritmado das ferramentas manuais e mecânicas, trabalha António Barrosa, um verdadeiro mestre da arte de esculpir a memória. Artesão apaixonado, dedica-se há décadas à criação de réplicas perfeitas de utensílios tradicionais, recriando com minúcia e alma objetos que fizeram parte do quotidiano de gerações passadas.

Mas António não se limita ao utilitário: entre as suas obras mais impressionantes estão bicicletas antigas – funcionais e ao tamanho natural – totalmente construídas em madeira rija – sim, até os pedais e as correntes! Cada peça, por mais pequena ou complexa que seja, é talhada à mão, com uma paciência que só quem ama profundamente o que faz consegue manter. O resultado é um acervo vastíssimo de milhares de miniaturas e réplicas ao tamanho natural, todas, testemunhos vivos de um Portugal que resiste ao esquecimento.

A obra de António Barrosa é, em si mesma, um património cultural inestimável. Infelizmente, grande parte deste tesouro continua guardada longe dos olhos do público. É urgente a criação de um museu que acolha de forma digna e permanente estas peças. Um espaço onde se possa celebrar não só a arte do artesanato tradicional, mas também a persistência de quem, contra a maré do tempo, continua a dar forma à história com as próprias mãos.

Preservar o legado de António Barrosa é preservar a identidade de um povo. É dar às gerações futuras a oportunidade de ver, tocar e sentir as raízes de onde viemos. Um museu não seria apenas uma homenagem ao artesão, mas um ato de respeito pela nossa memória coletiva.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 19, quinta-feira, 05 de junho de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XVIII)

Em Cabanas, recanto sereno de Afife, onde o mar se insinua por entre os montes e a brisa traz rumores antigos, Pedro Homem de Mello encontrou o seu pouso da alma. Ali, longe do rumor das cidades e perto da música primordial da terra, ergueu-se o seu refúgio de silêncio e poesia.


As fragas guardavam-lhe os passos como confidentes ancestrais, imutáveis, fiéis. No sussurro do vento entre os pinheiros, ouvia-se o eco do verso ainda por escrever. E era como se o tempo ali hesitasse – como se o mundo se demorasse um pouco mais, para escutar o murmúrio do mar e o pensamento do homem que o contemplava.

«As águas são para o mar, / As folhas são para o vento. / Só as fragas se não mudam! / Nelas ficam o pensamento…» – esse breve brado poético ressoa como oração laica, como segredo revelado àqueles que sabem escutar com o coração aberto.

As águas levavam o efémero. As folhas, o instante. Mas as pedras – aquelas pedras do Norte, firmes e silenciosas – sabiam guardar o que é essencial. Em cada fissura da rocha, Pedro Homem de Mello deixava um verso, uma memória, um fragmento da sua eternidade.

Em Cabanas, a paisagem não era apenas cenário: era corpo e espírito, era matéria viva onde o poeta se fundia. E assim ficou incrustado nos musgos, na maresia, na sombra dos carvalhos – como quem, ao encontrar o seu lugar no mundo, escolhe não partir mais.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 18, quinta-feira, 29 de maio de 2025, p. 16) 

BUMAS DO TEMPO (XVII)

Ao nos depararmos com a porta de uma igreja ornada com um vitral que exibe a vieira, em Vila Nova de Anha, símbolo marcante dos Caminhos de Santiago de Compostela, vemos não apenas uma porta física, mas uma passagem simbólica entre o mundo profano e o sagrado. A vieira, com suas linhas que convergem ao centro, representa a convergência dos caminhos em direção a um ponto comum: o encontro do ser humano consigo mesmo e com o transcendente.


Tal como a vieira marca os passos dos peregrinos em direção a Santiago, a concha assume um novo significado no ritual do batismo dentro dessa igreja, onde é usada para levar a água benta, símbolo de pureza e renascimento, até à cabeça da criança.

O batismo, com a água retirada pela concha, não é apenas um ato de purificação. Ele é o princípio de uma caminhada, uma jornada pela vida onde a pessoa é inserida num novo caminho espiritual, numa jornada contínua de busca, escolhas e crescimento. A água, fonte essencial de vida, renova o ser humano e marca o início de uma nova caminhada: o ato de viver, de peregrinar pela existência, de crescer.

Do lado de fora, projetado pelo vitral, está a figura de um transeunte, alguém que, talvez sem saber, encontra-se também em sua própria jornada. A simbologia desse caminhar faz-nos lembrar que todos somos peregrinos e que, a cada passo, fazemos escolhas, enfrentamos encruzilhadas, como numa caminhada eterna que vai do mundano ao espiritual, do profano ao sagrado.

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 17, quinta-feira, 22 de maio de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XVI)

 As varandas iluminadas da Misericórdia de Viana do Castelo, sob o manto da noite, não são apenas pedra, luz e história – são espelhos da alma humana. O edifício da “Casa das Varandas” transcende o tempo ao carregar em si o gesto de cuidar. Ali, onde o Renascimento e o Maneirismo se encontram, pulsa uma arte que não se limita ao estético, mas se expande ao ético. A beleza das colunas, das arcadas e das linhas harmónicas reflete a procura do homem pelo equilíbrio entre razão e sensibilidade.


Inspirada por mestres italianos e flamengos, a estrutura nasce num tempo em que o homem se redescobria como centro do mundo. Mas neste caso, o centro não é o ego, é o outro – aquele que sofre, aquele que precisa. A confraria da Misericórdia, ao construir este espaço, inscreveu na pedra um ideal de compaixão. Cada varanda é palco de uma silenciosa promessa: ver o mundo com olhos de humanidade.

A Arte, aqui, não é apenas ornamento, é gesto. É uma mão estendida, é a arquitetura do cuidado. Num tempo de luzes e sombras, de dúvidas e certezas, a Casa das Varandas ergue-se como símbolo de um humanismo ativo. Assim, este edifício não é apenas memória – é proposta. É chamado à empatia, à responsabilidade, à transcendência. Porque a verdadeira Arte não é indiferente. Ela educa o olhar, desperta a consciência. É voz do silêncio, é ética em forma de matéria. E quando a luz da noite banha estas varandas, não vemos apenas um edifício renascentista. Vemos um ideal – o de um mundo onde a beleza e o cuidado caminham juntos. Como deveriam caminhar sempre!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 16, quinta-feira, 15 de maio de 2025, p. 17)

BRUMA DO TEMPO (XV)

A Romaria de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, e a Romaria de Nossa Senhora das Boas Novas, em Mazarefes, embora distintas na forma e contexto, encontram-se unidas pela mesma matriz simbólica e espiritual: o anseio humano de proteção, gratidão e sentido diante da incerteza da existência. Ambas representam manifestações profundamente enraizadas na experiência das comunidades piscatórias, cujo quotidiano se desenrola entre a vastidão incerta do mar e o abrigo precário da terra.


Nossa Senhora da Agonia é invocada antes da partida, no momento da entrega do ser ao desconhecido, onde o medo da morte e da perda se impõem. Já Nossa Senhora das Boas Novas é o símbolo da chegada, do retorno seguro, da esperança cumprida. O seu andor, réplica de uma nau, e a rara iconografia da caravela nas mãos, evidenciam essa ligação visceral entre fé e travessia. O mar torna-se metáfora da vida – ora serena, ora revolta – e a fé é o fio invisível que liga o ser ao sentido, perante a finitude.

Filosoficamente, estas romarias traduzem o paradoxo da condição humana: o desejo de transcendência perante a vulnerabilidade. Psicológica e existencialmente, elas revelam a busca de um lugar de pertença, consolo e identidade. A imagem da Senhora com a caravela remete para a travessia interior do sujeito – a peregrinação da alma que, ao enfrentar os perigos do “mar de si mesmo”, reconhece a necessidade de um horizonte espiritual que o salve do naufrágio do vazio. Assim, estas manifestações não são apenas festas religiosas, mas rituais do ser em busca de sentido.

 (In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 15, quinta-feira, 08 de maio de 2025, p. 22)

BRUMAS DO TEMPO (XIV)

 No Cimo da Memória. Lá no alto, onde o granito beija o céu e a história se entranha na bruma da serra, ergue-se a antiga alma do Hotel de Santa Luzia, hoje Pousada de Viana do Castelo, como quem guarda segredos antigos e o tempo parece respirar mais devagar.

Mais que pedra e forma, é guardiã do tempo – de um tempo que se recusa a desaparecer.

Ali, junto à citânia ancestral, o espírito da proto-história murmura entre as arcadas e os pinhais. A basílica do Sagrado Coração de Jesus – e Santa Luzia –, grandiosa, acompanha em silêncio, como sentinela da fé que atravessa os séculos.


Aos pés desse miradouro sagrado, o rio Lima – o mítico Lethes de impérios de antanho – corre suave e constante até à foz. Diziam os romanos que quem o cruzasse perderia a memória. Mas aqui, paradoxalmente, tudo se lembra.

Cada curva do rio guarda ecos de navios, vozes de peregrinos, sonhos que resistem à erosão do tempo. A paisagem – montanha, rio, oceano, cidade e basílica – não se limita a ser bela; ela nos recorda que somos ponte entre o que foi e o que virá.

A vista alcança o Atlântico, o horizonte e o íntimo. Ver com olhos que não têm pressa.

E ali, o viajante compreende que o esquecimento não é ausência – é escolha.

Na Pousada, em vez de nos esquecermos, aprendemos a recordar com reverência. E perceber que, às vezes, a verdadeira viagem é permanecer – e escutar o silêncio das alturas.

Porque há lugares onde o tempo repousa e a memória desperta!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 14, quinta-feira, 24 de abril de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XIII)

 Entre gritos e silêncios dos Outdoors da Cidade. Ao caminharmos pelas ruas da cidade, erguem-se diante de nós os grandes outdoors – gigantes silenciosos que falam alto. Uns nos gritam ofensas disfarçadas de promessas; outros, quase sussurrando, nos convocam à humanidade. São expressões do nosso tempo, e como tais, refletem mais do que anunciam: revelam.

Os outdoors políticos, em especial os que se especializam em ataques, se tornam espelhos distorcidos de uma sociedade viciada em disputa. Ali não há convite ao diálogo, mas sim trincheiras levantadas com tinta e papel. Sua utilidade prática é, talvez, mover o eleitor pelo medo ou pela raiva, emoções que, embora intensas, são passageiras e facilmente manipuláveis. Psicologicamente, esses outdoors alimentam a polarização, reforçam muros internos e externos, deixando pouco espaço para a reflexão serena.


Em contraste, à sombra de um hospital, repousa um outro tipo de apelo: «Dar sangue é ser ainda mais solidário». Não há ataque, não há rival. Há apenas um convite à empatia. Sua utilidade prática é evidente – salvar vidas. Mas é na esfera psicológica que sua força é mais profunda. Ele não nos coloca contra o outro; nos coloca “com” o outro. Em vez de acender a chama do conflito, acende a da compaixão.

A diferença, portanto, não é apenas de conteúdo, mas de direção: enquanto os outdoors políticos agressivos empurram o olhar para fora, procurando um inimigo, o apelo solidário nos faz olhar para dentro, buscando um sentido de vida. Um convida-nos à guerra simbólica; o outro, à paz concreta.

E talvez seja isso que devamos perguntar, sempre que algo tentar nos chamar atenção aos gritos: «Esse chamamento me torna mais humano ou apenas mais reativo?» Os outdoors falam – mas quem decide o que ouvir somos nós!

( In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 13, quinta-feira, 17 de abril de 2025, p. 32)

BRUMAS DO TEMPO (XII)

Dia Nacional dos Centros Históricos: Memória de Pedra e Voz. Exposição sobre Monumentos, lugares do Centro Histórico de Viana do Castelo, numa visão artística e documental (28 a 30 de março de 2025), um trabalho de partilha e interação profissional do Arquivo e Memória, Gabinete de Design e Memória Fotográfica e Museu do Município de Viana do Castelo.

Nos centros históricos, o tempo não passa – sedimenta-se. Cada rua, cada praça, cada pedra polida pelo toque de gerações resguarda ecos de um passado que não é distante, mas presente na respiração das suas gentes. Os monumentos erguidos não são apenas matéria, são testemunhos de um tempo que, embora passado, persiste no olhar de quem os contempla.


Nesta exposição, integrada no Dia Nacional dos Centros Históricos, cruzamos a ponte invisível entre ontem e hoje. A memória, essa guardiã da identidade, vive não apenas nas fachadas gastas pelo vento, mas nas histórias sussurradas entre portas, nas mãos que moldam ofícios antigos, nos passos que percorrem calçadas seculares.

Celebrar o centro histórico é reconhecer que ele não é um vestígio, mas um organismo vivo, onde passado e presente se entrelaçam. Os lugares falam, mas é preciso escutá-los. E, ao fazê-lo, descobrimos que a identidade de um povo não se escreve apenas nos livros, mas nas ruas por onde ele caminha!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 12, quinta-feira, 03 de abril de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XI)

A Porta do Tempo. Diante desta antiga porta lateral da Igreja de São Bento, em tempo de chuva, sentimo-nos perante um limiar entre o passado e o presente. Fundada em 1545 e construída em 1549, para acolher jovens raparigas, sobretudo filhas da nobreza local, o convento nasceu como um refúgio, um espaço de recolhimento e proteção num mundo onde o destino das mulheres era, muitas vezes, decidido por convenções. Aqui, entre paredes austeras e orações sussurradas, vidas se moldaram ao ritmo da fé e das expectativas da época. Algumas encontraram na clausura um chamamento, outras aceitaram-na como um destino inevitável.


Durante cerca de uma década e meia, o chão apodrecido impediu que os passos dos fiéis cruzassem este espaço na Quinta-Feira Santa. Mas a partir de 2023, com o soalho renovado, as portas reabriram, e com elas ressurgiram um elo entre séculos. O tempo, que tantas vezes separa, também une. A memória das jovens que aqui viveram encontra-se com os pés dos que agora entram. O que estava interdito renasce, lembrando-nos que o passado não se perde – ele apenas espera o momento certo para voltar a ser parte do presente. Neste regresso, ecoam as preces de outrora, cruzando-se com os murmúrios dos visitantes de hoje, num diálogo silencioso entre aquilo que fomos e aquilo que ainda podemos ser!
 

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 11, quinta-feira, 27 de março de 2025, p. 17)