O Eça, da nossa Biblioteca Particular, já tem companhia. Quem mais poderia ser se não o Camões. De forma “curta e grossa”, resta-nos esperar pelo Camilo Castelo Branco, parceiro ideal para ambos, tendo em conta que o que temos, deste último, é uma miniatura pouco visível à dimensão do autor do “Amor de Perdição”. O diálogo foi estabelecido, quando menos contávamos. Principalmente pelo arrojo da figura mais diminuta, morador um pouco mais acima, consideramos a possibilidade de o procurarmos entre os parceiros que nos possam atender através da sua benevolência.
Juramos
a pés juntos que os ouvimos com a maior das atenções.
No
recanto solene de uma das nossas estantes, onde as páginas sussurram histórias e o
pó carrega o peso do tempo, três vultos da literatura portuguesa ganham voz e
presença.
Luís de
Camões, altivo, de olhar penetrante, ainda que só de um olho, fita os
companheiros com a intensidade de quem viu mares e batalhas, e profere com
gravidade:
— Pois
bem, aqui estamos. Eu, que cantei glórias e desventuras de um povo errante,
vejo agora os meus versos repousarem ao lado de dois mestres da pena. Dizei-me,
Eça e Camilo, que destino tem hoje a literatura? Ainda há espaço para a verdade
ou apenas para a conveniência dos tempos?
Eça de
Queirós, com a ironia sempre afiada, ajeita os punhos da casaca e responde:
— Ah,
meu caro Camões, hoje há espaço para tudo e para nada. A literatura, outrora
espelho das sociedades, tornou-se ora entretenimento fugaz, ora manifesto de
ideais que pouco dizem à essência humana. Mas não sejamos pessimistas: o que é
bem escrito sempre há de sobreviver às eras. Afinal, não é por acaso que ainda
discutimos estas questões entre o couro e as lombadas desta Biblioteca
Particular.
Camilo
Castelo Branco, cruzando os braços, sorri com desdém e completa:
— Ora,
ora, Eça, tu e a tua mania do realismo... Como se o mundo pudesse ser explicado
em meras descrições de costumes! A literatura não é um espelho da sociedade,
mas sim um teatro da alma humana! É no drama, na paixão e no desespero que se
encontra a verdade! Eu próprio não escrevi «Amor de Perdição» apenas por
vaidade, mas porque a dor é universal, é eterna! Camões, vós sabeis bem disso,
não?
O poeta
suspira e assente:
— Dor e
glória andam de mãos dadas. Mas pergunto-vos: se hoje o mundo se esquece da
verdade e da beleza da palavra, que podemos nós, espíritos impressos em papel,
fazer senão aguardar leitores que nos compreendam?
Eça
sorri com malícia:
— Ora, Camões, sempre haverá leitores curiosos, ainda que poucos. E se há algo que nos une, além do brilho das letras, é que o tempo nos fez imortais. O que escrevemos atravessa as marés da ignorância e ressurge onde menos se espera. Afinal, as miniaturas que nos representam nesta estante são pequenas no tamanho, mas imensas naquilo que carregam.