domingo, 6 de outubro de 2024

ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO de TIAGO MOITA

 Abstraindo-nos do prefácio e da nota à margem da aba da contracapa, por uma questão de exercício da interpretação estética – teoria que trata do sentimento do Belo e da apreciação do gosto –, muito nosso, sem desvalorizarmos o aval de insignes intelectuais (Guilherme d’Oliveira Martins e Miguel Real) do mundo académico-cultural português, que, por sinal, tanto admiramos, experienciamos assim o contraditório (o que não é o caso) do relativismo radical, que pode constituir um obstáculo para estética, uma vez que a correta validade da explicação da obra através de fatores exteriores à sua beleza, destrói o objetivo da estética.

  

O mesmo não poderemos fazer com os personagens e cenário, bem identificados na sinopse: «Imagina o mundo que tu conheces a colapsar diante dos teus olhos. Imagina ficares, de um momento para o outro, sem eletricidade e veres todos os aparelhos elétricos e eletrónicos inventados pelo Homem a avariarem definitivamente. Imagina um bombeiro com remorsos, uma enfermeira traumatizada, um professor enigmático, uma doméstica revoltada, um médico frenético, uma influencer vaidosa, um youtuber ativista, um engenheiro obcecado, um advogado oportunista, um designer poeta, um ator indeciso e uma criança muda lutando pela sobrevivência e numa viagem em busca de um paraíso terrestre que encontraram num folheto publicitário», por forma a ultrapassarmos a barreira do que nos poderá conduzir, por desvio de atenção, da essência do pensamento e da arte da escrita do autor, tal como afirmou Nietzsche – as modificações que a modernidade provocou na conceção tradicional de arte definindo-a mais como um movimento do que uma procura de um ideal de beleza – tendo em conta que o estatuto de obra de arte (ao qual incluímos a escrita – a arte de bem escrever…) modificou-se devido às experimentações e ruturas que afetaram todas as artes.

E desengane-se quem esperaria, da nossa parte, uma fuga para a frente ou desvalorização do enredo e caracterização dos intervenientes, tendo em conta que quem escreve evidencia parte de si na multiplicidade ou desdobramento dessas mesmas caracterizações. E isso seria deselegante da nossa parte para o autor e para os hipotéticos leitores. Compete aos leitores fazer o seu exercício de interpretação, como forma e direito de não ficarem condicionados pela coação de terceiros.

Quanto à nossa avaliação acerca do pensamento e do bem escrever do autor – produção, trabalho e técnica – que agem sobre a matéria preexistente, aí já nos compete atrair o leitor para – como diria o Luís Miguel Rocha – o lado nato do verdadeiro escritor, forçosamente obrigado a ser um bom observador: «observa o trágico, o doloroso, o mágico, o maravilhoso, aquilo que já foi e o que ainda há de ser, também o que nunca foi o que nunca há de ser…». Afirmaremos ainda que só um bom leitor (inveterado, até…) pode vir a ser um bom escritor. Poderá parecer apenas um cliché, mas como adiante realçaremos, este ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO, inspirado no romance de José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira – tem muito da bem “apetrechada bagagem” do autor. Principalmente do que trás de nato (sabe-se lá de que dimensão…), do absorvido e do trabalhado, qual alquimia que lhe permite estabelecer pontes, elos e sinais dados à natureza humana, ao ser pensante (como é o caso do Tiago), reinterpretando o mundo imaginal, esse mundo intermédio entre o mundo inteligível dos seres de pura Luz e o mundo sensível, cujo órgão que o apreende é a Imaginação.       

Os setenta e nove capítulos, incluindo o epílogo, ainda que a nossa opinião seja sempre subjetiva, leva-nos a concluir que Tiago Moita preenche todos os requisitos para se afirmar e o afirmarmos como um bom escritor. Talvez, muito para além da natureza redutora do bom. Se nos pediram a nossa opinião, aí a têm.

Em lugar de “no princípio era o Verbo”, Tiago Moita inicia romance com o “no princípio era o Medo”, fruto do apagão, sem pregadores e profetas da desgraça; oráculos de adivinhos, astrólogos, xamãs ou toda espécie de visionários; figuras míticas e deuses inventados pelo Homem; búzios, runas e toda a espécie de objetos utilizados por ocultistas para adivinhação do futuro. Sim, neste mundo da tecnologia de ponta, do excesso de informação, rádios e radares, caixas de multibanco, onde o virtual passa a real; das artérias movimentadas e caóticas; e muitas outras variadíssimas situações que levariam o ser humano ao vendaval apocalíptico por ele provocado.

Não é inocente o salto que Tiago Moita dá da Génesis – o paraíso e o fruto proibido, e subsequente Livre Arbítrio –  para a Apocalipse, sem deixar de referir que neste mundo do Medo, “poucos eram aqueles que conseguiam distinguir os lúcidos dos loucos” e “desabar da ordem de um Estado começa dentro das suas paredes”. Aqui são chamados à colação, não a serpente do Éden ou a mulher que se deixou coagir pela tentadora proposta da astuta serpente (a desobediência causa todos os males), mas os polícias das esquadras de todo o mundo, os tribunais, o desespero de “milhares de pessoas de pessoas chorando para os ecrãs frios e pardos dos seus smartphones, tablets e computadores portáteis” (Moita, 2024: 31), etc., etc…


O Apagão Global, chave de todo o enredo em ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO, onde se dá o colapsar do mundo que nós conhecemos através dos nossos olhos, vai em sentido contrário ao Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, onde só um é que vê. De um ensaio político (desculpem-nos o atrevimento de recorrermos a uma máxima popular – em terras de cegos quem tem olho e rei), em Ensaio dobre o Fim do Mundo, partimos para uma séria reflexão sobre a nossa existência, aquilo que construímos e nos pode destruir, a memória do tempo e dos tempos que estão para lá do tempo,    só possível atingir quando confrontados com o silêncio misturado com o tédio; a falta de paciência; a colisão entre as pessoas, despoletando novas ondas de fúria e medo; o retorno aos métodos manuais de secretariado; o esquecer das estações do ano, enquanto vagueamos em direção ao abismo; a voragem do ódio alastrando como uma epidemia; a pilhagem ou destruição feita por gente (horda de vândalos) embriagada pela fome e pela loucura; os símbolos derrubados [monumento, laboratório, teatro, universidade, museu, centro cultural ou biblioteca], entregues, como afirma, escrevendo, Tiago Moita, “à fúria cega da loucura, da ignorância, do preconceito e do ódio” (Moita, 2024: 45); o tempo que se esvai do mundo através dos olhos dos vivos – palavras de Tiago Moita que nos leva “a começar do zero”, principalmente quando tudo se esvai no horizonte e nas mentes de todos nós. Essa é a sua procura e deveria ser a procura de cada um de nós (deixamos a descrição, a caracterização dos personagens e os cenários, para gaudio dos leitores, sentirem a impressionante mestria do Tiago Moita, na arte de bem escrever).

Sente-se na sua escrita, de forma irrepreensível, o pulsar do conhecimento evolutivo (o insaciável, dentro do conceito d’A Douta Ignorância em Nicolau de Cusa: «Com efeito, nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo o mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber…» (Cusa, 2003: [5]), numa área que nos é muito grata. As próprias dozes partes, assim o denunciam: I – No princípio era o Medo; II – Começar do zero; III – O cetro e o gládio; IV – A Rosa e a Cruz; IV – A Rosa e a Cruz; V – Homo est centrum mundi; VI – O Relógio de Descartes; VII – O espelho da discórdia; VIII – O preço da Liberdade; IX – O grito do entulho; X – Homo ex machina; XI – O Crepúsculo das Luzes; e, finalmente XII – A Grande Verdade – Deixei para o fim quem começou toda esta história. Nunca procurei qualquer espécie de protagonismo nem tenho jeito para despedidas e discursos estéreis de paixão e conteúdo. O sol espreguiça-se no horizonte e começa a afastar os últimos vestígios da noite com os seus braços luminosos, o mundo voltou a seguir o curso da natureza como um cardume quando descobre o pulsar de uma corrente marítima num oceano e a Humanidade voltou a virar mais uma página da sua História, graças à minha ajuda – citamos do Epílogo.

O curso deste Ensaio, feito romance, faz o percurso inverso ao das sagradas escrituras: da Apocalipse para o Génesis, retomando o espírito do universo, a natureza do Homem, mesmo quando em convulsão.

Disse.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Entre os livros: o sonho e a realidade!...

 «Os dias calam-se. A tua terra adormeceu. / A carne de agosto é morna agora. Tu voas / a tarde das aves que voando sossegam. Tu és / taciturna e tens no azul a fadiga do corpo. / As asas cansadas, de vento suave adejam. Sonham. / Tu sabes que as aves sonham. Não. Não te vou falar / das madrugadas. A luz nova das formas move-se / caindo de sombra…»

 

Fernando Hilário

(In, A Exposição da Luz, p. 17)

 

Estamos de volta – no momento em que iniciamos a leitura d’A EXPOSIÇÃO DA LUZ de Fernando Hilário, editado em Aveiro (2016), sob a chancela da «adverte: publicidade edições» –, numa de «abstração reflexiva», processo que incide sobre as nossas próprias ações ou operações cognitivas, dando por nós a termos um dia sonhado, em sermos diretor de um “Centro (Cultural) de Objetores de Consciência” qualquer, pondo mesmo as estruturas cerebrais a serem candidatas a desempenharem a função de comparação e de deteção de erros: «Quem sobre a imobilidade das noites dorme / não ouve os sinais que flutuam nas palavras / nem lhes escuta o azul dos risos…» (Hilário, 2016: 16).


E se assim sonhamos, o fator de produção da ação cognitiva (sonhadora) acabou por encobrir uma inevitável dificuldade de fundo, só porque essa ação se construiu de maneira implícita e não de maneira consciente. Resta-nos o sonho da inevitável «aposentação interior-compulsiva», por vontade própria, antes que a responsabilidade da ação implícita possa vir a ganhar contornos de humilhação.

Sem maquilhagem, apenas com a necessária correção ótica – extensão, enquanto porção de espaço ou característica dos corpos de se situarem no espaço e dele ocuparem uma parte –, por forma a procurarmos o argumento ontológico de vencer a distância que separa o possível do real ou a lógica da existência, enquanto contingência da nossa própria liberdade. Será sempre através dos nossos atos e opções, fazendo a distinção entre experiência (padrão ideal), investigação ativa e metódica, que decidiremos o sentido que pretendemos dar à nossa vida.

E ainda há quem acredite que possa viver, única e exclusivamente, do banho das multidões. Antes o lado platónico de Mónada, como forma de designar a ideia enquanto realidade una, sempre idêntica a si própria e incorruptível. Olhos nos olhos, com ou sem gasóleo no carro ou templo que nos transporta a mente.

Por vezes é preferível falar com os livros, reconhecendo o silêncio sobre a área vazia do nosso refúgio criativo e de leitura (sombra sem ser assombrado), sonhando com um mundo para além deste: «(…) Uma extensão / de rio, um leito sobre um árido profundo, parado. Um fundo / suspenso na origem do frenesim das mãos. Reconheço / os alvores das morfologias, o azul a despertar da luz / abraçada à luz…» (Hilário, 2016: 40).  

Sim, há mais mundo para além deste!

[Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4919, 04 de agosto de 2023.]

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Entre a «Arte de Amar Ponte de Lima» e o «íntimo labirinto»!...

 «E logo ali, um lento e contrariado fluir, o espelho do rio. Espraia-se, ocioso e meigo, como se cativo de mil braços de salgueiros e choupos ribeirinhos. Cioso de seus feitiços, das loas apaixonadas dos poetas ao pôr-do-sol, do naufrágio virtual dos furtivos amantes quando a lua, leitosa, filtra eflúvios de paixão por entre a ramaria dos plátanos…»

 

Cláudio Lima

 

Num período menos positivo da nossa vida, no que toca ao “estádio cognitivo”, físico-psicologicamente falando, só mesmo uma “evasão” como a XXVII Feira do Livro de Ponte de Lima poderia salvar o “convento” ou o turbilhão de emoções, causa-efeito de encarar as formas arbitrárias de uma ilusão etnocêntrica e da expressão de uma relação de forças, assente em subgrupos sociais que se acham no poder de criar uma cultura própria, renegando a pluralidade de valores e de escolhas que nos podem conduzir ao enriquecimento da cultura universal.


Por uma questão de saúde, ou da falta dela, ficamos impossibilitados de assistirmos, no primeiro dia da Feira do Livro de Ponte de Lima, quinta-feira, 20 de julho de 2023, à apresentação do livro «Arte de Amar Ponte de lima» do excelso Poeta Cláudio Lima e do Artista (da imagem) Amândio de Sousa Vieira, ambos cultores do “Limianismo”, também enraizado em nós, mas não aceite por alguns dos subgrupos.

Como não possuímos a primeira edição deste magnífico livro, apressamo-nos em perturbar, sem o desobrigar, o nosso companheiro das letras José Ernesto Costa, em se fazer representar e representar-nos na referida apresentação desta forma ou «Arte de Amar Ponte de Lima».

Se até aqui estávamos condicionados pela “ignorância” própria, com o livro “entre mãos”, lido a preceito, sentimos que as palavras da “breve introdução” do Presidente do Município (editor), Vasco Ferraz, fazem jus à palavra e à imagem que corporizam este irrepreensível e esteticamente bem conseguido livro, numa 2.ª edição, revista e aumentada. A Arte e a Poesia, com qualidade, dignidade e aprumo.     

Ainda que um pouco debilitado (levado à letra pelos efeitos secundários das malditas contraindicações), o sábado, 22 de julho de 2023, levar-nos-ia, por obrigação de consciência e reabilitação da imaginação que nos chega do mundo da arte e da poesia, até à XXVII Feira do Livro de Ponte de Lima, para assistirmos ao lançamento do último brado poético do velho amigo  e insigne Poeta Gustavo Pimenta, «íntimo labirinto», magnanimamente (e/ou cientificamente irrepreensível) apresentado pelo nosso não menos amigo Fernando Hilário, homem das Artes, da Teoria da Literatura e da Literatura Comparada (doutorado), com investigação desenvolvida e publicada, nomeadamente sobre literatura angolana e o modernismo português.

No que toca ao Gustavo Pimenta, detém de uma forma peculiar, na aba da capa [estética e poeticamente sublime, de Manuel Rocha, sobre pintura de “minó” (óleo s/ tela, com colagens)], como nota biográfica: «a coisa / esta que as vossas mãos / soletram / não quer / sequer / remendar o mundo / mas se puser pessoas a / pensar…», elevação e confronto da “Poiesis” em si: «onde o pão é escasso / o estágio em criança é breve», múltiplas interpretações no “íntimo labirinto” onde se debate, e onde ficamos a saber que «a besta encurralada morde».

Foi-nos permitido voltar a recordar a grande Poeta Ana Luísa Amaral: «a gosto vou / tecendo estes dias imprecisos (…) / é agosto / não há mal algum / tentar / remendar o mundo / sabendo / não o conseguir / dói tanto / vê-la / forçada a desistir», e dado agradecimento a fechar: «A quem me atura. / Por amor, / por amizade / ou, até, apenas por decoro».

Nós, sim, é que agradecemos em uníssimo!

(In, Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4918, 28 de julho de 2023)

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Entre o Mar de Viana e o ouvir e falar com as pedras!...

«Não há adolescente nenhum que, mais cedo ou mais tarde, não oiça o cantar da sereia dos desejos impuros. Uma alma elevada, um coração virgem e um grande ideal poderão salvá-lo do desastre…»

 

Tihamér Toth

 

Mar de Viana, o instantâneo da espuma e da areia apanhadas em delito de paixão, enquanto as gaivotas, com o planar das suas asas rasgando as ondas, aumentam em nós a felicidade e o prazer extasiantes. Mar de Viana, local único que nos ajuda a descomprimir e a sentirmos aquele abraço de africanidade – memória de uma infância e Juventude Radiosa: «Uma aragem fresca agitava brandamente os ramos e, ao perpassar pelos canaviais, ouvia-se um ciciar misterioso como se as canas estivessem contando umas às outras a doce alegria de viver» (Toth, 1956: 17) –, qual “trova do amor lusíada” em Manuel Alegre, nos faz marinheiro com mãos que despem «como se o vento abrisse / as janelas do nosso corpo…». Mar de Viana, o Mar cujo vento (embalado pelo canto das sereias e o bater das asas das gaivotas) nos leva para Sul e nos faz desaguar com Amor, na Baía de Luanda.


Entre o ouvir e falar, olhando o Mar de Viana, há momentos na nossa vida que nos sentimos, intelectualmente, como um SEM-ABRIGO, mas por intromissão daqueles que, por “malformação”, não sabem distinguir a “divergência” entre DIFERENÇA e ALTERIDADE. Tal como Aristóteles, também nós achamos que a diferença entre as duas coisas implica determinação daquilo em que diferem.

Por outro lado, Kant ao considerar as noções de identidade e de diferença como noções transcendentais, acaba por estabelecer em nós a noção clara de que a IDENTIDADE e a DIFERENÇA são «conceitos de reflexão», que não se aplicam às coisas em si, mas aos fenómenos. Fenomenalmente poderemos ser um “sem-abrigo”, mas possuiremos sempre, por “boa formação” genética e intelectual, a notável ALTERIDADE de discernirmos a LUZ e o ABRIGO para combatermos o “mal”, enquanto último grau do SER.

Retorno à unidade primordial, reintegração universal. Apesar de todas as turbulências da vida, sempre vamos conseguindo resistir ao sopro da transmigração, da metempsicose. Estamos numa de reminiscência, espécie de lembrança latente do estado da alma. Sim, não existe um ensinamento, mas uma recordação e a ignorância é o esquecimento das verdades inatas. Acreditamos piamente que no futuro alguém se recordará de nós. É aí que reside a nossa fé!

Em SILÊNCIO, longe das multidões e sem tocar o sino, gostamos de ouvir e falar com as pedras!

 (InCardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4917, 21 de julho de 2023)

sexta-feira, 28 de julho de 2023

A cultura das pequenas iniciativas!...

 «A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem.»

 

Ortega y Gasset

 

Temos a grata memória de um dia do ano 2014, quando prazerosamente participávamos nos Saraus Culturais do Artista Arlindo Pintomeira, o Maestro António Victorino d’Almeida nos ter alertado (porque também houvera sido alertado na promissora juventude, por João de Freitas Branco) para a tomada de consciência (quase como em defesa do nosso êxtase universalista), pelo facto de Portugal, culturalmente, viver de pequenas iniciativas. Aliás, com a agravante de até hoje ninguém se ter questionado se alguma vez soube (ou procurará saber) o que é verdadeiramente a Cultura. No fundo, bebendo em Lévi-Strauss, o requinte individual, mas não só, que distingue um indivíduo dos seus semelhantes.


É através de Lévi-Strauss que conseguimos perceber e nos atrevemos à crítica da ideia totalizante da cultura, quando esta se limita a contentar-se com o já existente, em vez de imprimir a sua marca (identidade) no mundo através da sua atividade, movimento que reflete o progresso da própria consciência humana. A consciência de todos e não da forma seletiva de uns poucos, assente no conceito de que a cultura é apenas o requinte individual que distingue um indivíduo dos seus semelhantes.

Não é por acaso que para Aristóteles, a diferença entre os homens cultos e incultos, residia na diferença que existe entre os vivos e os mortos. Daí, a cultura ser o melhor conforto para a velhice, sendo que a mesma velhice se apresenta como um símbolo de sabedoria (sem que a mesma signifique qualquer tipo de grau académico ou estatuto por subalternização de grupo), uma vez que arrasta consigo o domínio da experiência na vida e a aprendizagem e, por fim, a cultura que a mesma carrega.

E, por fim, recorremos a Oliveira Martins, através de «Literatura e Filosofia» (Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1955), a propósito de Luís de Magalhães, em jeito crítico: «E o poeta pergunta a si próprio que vereda seguir, e não se encontra um altar levantado onde possa depor a oferta do seu entusiasmo…» (p. 37).

Hoje, percorrida uma década, que diremos nós, quando há muito temos vindo a constatar que as “alminhas” onde possamos ofertar o nosso entusiasmo são demasiado pequenas, para nos ajoelharmos e orarmos.

Com certeza que de pouco valerá chorar ao soluçar da derradeira ilusão. Cultura vai muito mais para além das nossas “alminhas” ou “capelinhas” de bairro!

(InCardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4916, 14 de julho de 2023) 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

A morte enquanto restituição do grande silêncio!...

«A morte não é a maior perda da vida. A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos…»

 

Norman Cousins

 

Há dias em que nos deixamos enredar por um sentimento de desalento, a ponto de evidenciarmos alguma frustração. Aí estão as espécies embrionárias dos “objetores de consciência” que há muito têm vindo a sancionar o crescimento vertebral, porque em muito semelhantes à maleabilidade da cana de bambu, fausto ruidoso e vazio dos seus narcisismos latentes, exaltados por solenidades serviçais, regurgitadas entre gôndolas e músicas enfadonhas, como grandes pastores do seu rebanho.

Há cerca de dois que encontramos na escrita de Karl Ove Knausgard, nascido em Oslo, na Noruega (1968), o início de uma exploração proustiana do passado e da procura das partículas elementares da sua (e, quiçá, nossa…) vida, principalmente quando ele, no outono de 2009, iniciou um projeto literário singular a que deu o nome de «A Minha Luta», composto por seis extensos volumes: 1 – A Morte do Pai; 2 – Um Homem Apaixonado; 3 – A Ilha da Infância; 4 – Dança no Escuro; 5 – Alguma Coisa tem de Chover; 6 – O Fim, título último cujos os cenários  e estados psíquicos se desdobram entre dúvidas de talento, frustrações atuais e passadas, descoberta do sexo e do álcool (“essa bebida mágica”), e as inseguranças da adolescência e da paternidade. Sem que tudo ou o todo corresponda à maleabilidade da cana de bambu, sempre fomos encontrando ao longo dos seis extensos volumes (lidos e relidos, aqui e acolá, por algumas tantas vezes), algum conforto, perfumes, sol e folhas de árvores.

Há perfumes que, pela positiva, perduram ao longo da nossa vida, porque odorificamente nos prendem à memória do AMOR autêntico que nos liberta do sofrimento, aproximando-nos do belo, do verdadeiro e do bem. Felizmente que esse AMOR ainda se mantém bem vivo (físico e espiritualmente, falando), porque existe uma perfumada dicotomia entre a consciência moral e a consciência amorosa, tornando-a numa afinidade secreta.

Dos perfumes aos livros, quase como uma aspiração ao belo e ao bom, chegamos ao AMOR À SABEDORIA. Assente neste basilar princípio, eis que damos connosco a “devorar” o último volume com mais de mil páginas, de forma a possuí-lo de modo contínuo, mesmo quando, conscientemente, temos a noção clara de que o nosso FIM se aproxima a passos largos: «…A morte, essa restituição do grande silêncio, é também alguma coisa fora do humano, e não pode igualmente tornar-se-nos presente, porque, no momento em que nos alcança, deixamos de existir, mais ou menos como a linguagem deixa de existir quando a não-linguagem a alcança. A morte é aquilo com a esfera humana confina, a ausência de linguagem é aquilo com que confina o nosso mundo humano, e é contra o fundo desta dupla escuridão que nós e o mundo brilhamos. A morte e o mundo material são o absoluto, inacessíveis para nós, porque no momento em que nos transformamos neles, já não somos nós, mas uma sua parte…» (In, KNAUSGARD, Karl Ove – “O Fim”. Lisboa: Relógio D’Água Editores, dezembro de 2020, p. 337).

De facto, o tempo e a identidade, unem-se em SOMOS, questionando-nos permanentemente, o que é, então o NÓS?... Principalmente, e tão só, quando exaltados por solenidades serviçais!

[Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4913, 23 de junho de 2023] 

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Pesadelos e o Mundo Secreto do Sono!...

«Todos os animais dormem. Por alguma razão há de ser. O mundo também muda à sua volta e o seu corpo deve mudar também. Sem sono, e a sua modificação de circuitos, não há mente…»

 

Pedro Cabral

(In, O Paradoxo do Cérebro, p. 97)

 

Apenas o olhar marca a nossa cumplicidade inabalável com o MESTRE (Professor Doutor Manuel Curado), nos momentos de perceção do inteligível, sendo que tal perceção não é a reminiscência de um mundo das ideias, mas sim a irradiação “divina” do inteligível.

Todos nós temos o direito de aspirar ao poder, ao topo, ao reconhecimento e à valorização profissional, mas só muito poucos, sem qualquer esforço, conseguem lá chegar, independentemente do seu valor ou não. Vivemos o tempo das incubadoras, das imagens artificiais, da construção do endeusamento pessoal e da idolatria pegajosa.

Os degraus das escadas, alusão clara ao esforço e evolução cognitiva, deram lugar aos parapentes, asas-deltas, paraquedas e afins. Quando o respeito, ao invés da tolerância, devia carregar uma polaridade ativa, constituindo-se assim numa virtude estruturante e intermédia que nos ajudasse na difícil travessia que nos conduz ao cume da ética, aparece a marca da indiferença e/ou da (in)tolerância em excesso que nos empurram para a generalização dos valores inferiores.


E ainda há quem tenha a coragem de nos dizer que, abusando do velho cliché, «O dinheiro não é tudo!». Aí, sempre nos vem à memória da Retórica em Aristóteles, quando este procede a uma análise das emoções: ira, calma, amizade, inimizade, temor, vingança, vergonha, desvergonha, amabilidade, piedade, indignação, inveja e emulação. A convulsão permanece, favorecendo sempre os asas-deltas.

Face aos nossos estudos científicos e algumas fragilidades presentes (– Sim, um homem não é de ferro!), para descomprimir em tempo de gozo pleno, sem dar satisfação a quem quer que seja – bastando para isso os 48 anos, 6 meses e 25 dias de trabalho, que contribuíram, a grosso modo, para nos atribuírem aquilo que acharam como um favor à nossa pessoa –, este é um dos nossos livros do momento: «O CÉREBRO NOTURNO: Pesadelos, Neurociência e o Mundo Secreto do Sono» do especialista em Medicina do Sono, Dr. Guy Leschziner, neurologista nos hospitais Guy e St. Thomas, em Londres, dirige o Sleep Disorders Centre, um dos maiores serviços de investigação e tratamento de distúrbios do sono da Europa. Trabalha também nos hospitais London Bridge e Cromwell. É ainda professor de neurologia no King’s College de Londres: «A insónia e a privação do sono estão muitas vezes associadas. Os riscos para a saúde da privação do sono, nessas pessoas que simplesmente não se permitem dormir o suficiente, estão bem documentados: mortalidade, aumento de peso, tensão arterial elevada, diabetes… a lista prossegue sem parar. É, portanto, natural que as pessoas com insónia se preocupem com estes problemas…» (LESCHZINER, 2020: 313).

Pena é que aqueles que nos vão tirando o sono não se apercebam também do seu aumento de peso (quiçá, na consciência), tensão arterial elevada, diabetes e, por proximidade, consequente mortalidade (ignorância). Não é que «O Cérebro Noturno» entrelaça histórias bizarras da vida real com ciência neurológica de ponta.

Aqui fica um conselho: Ler nunca fez mal a ninguém e ajuda a combater a ignorância e os incitadores insones!

(In, Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4912, 15 de junho de 2023) 

domingo, 11 de junho de 2023

A Educação Sentimental dos Pássaros!...

«Acham que a chuva se pergunta, enquanto cai, se vai favorecer a vida, ou se a vai tirar? A chuva cai sem consciência ética. A chuva é sempre boa, mesmo quando destrói. Eu sou como a chuva…»

 

José Eduardo Agualusa

 

Muitas vezes, em família e em memória dos tempos, e do tempo que está para lá dos tempos, recorremos esporadicamente aos livros e aos autores que vamos deixando para trás nas prateleiras da nossa biblioteca particular. É uma questão de segurança, de companhia permanente e de afrontamento à nossa aparente desilusão.  

Quase seis translações passadas, recordando o amigo/irmão José Eduardo Agualusa, e o seu livro A Educação Sentimental dos Pássaros, onde reúne onze maravilhosos contos, onze histórias, onze cenários – e, como ele mesmo escreve, onze possibilidades que têm em comum uma mesma preocupação sobre a origem e a natureza do Mal.

José Eduardo Agualusa, autor do mundo, angolano de nascença e de coração, qual menino do Huambo à volta da fogueira, que continua a viver entre ideias, realidades, sonhos e medos, sempre nos soube dizer que os anjos e os demónios caminham entre nós e nem sempre se distinguem uns aos outros. Às vezes as histórias aparecem-lhe enquanto dorme. Assim, sem tirar nem pôr.


Envoltos na ambição de nosso avô “Sakaita”, do qual herdamos também de discursar em provérbios. Dentro da “filosofia de elevador”, «Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vokapako.», o cágado não sobe sozinho às árvores, alguém o colocou lá: «QUASE NINGUÉM REPARA EM MIM. As pessoas não me veem. Sopram na minha direção, “quinto piso”, “décimo quarto”, e logo me esquecem. A invisibilidade é uma questão de prática, como engolir espadas. Não falo em engolir espadas por acaso, amigo. Sei do que falo. Antes de ser ascensorista trabalhei quarenta e cinco anos num circo. Aprendi a engolir espadas, fogo, cacos de vidro, escorpiões, inclusive arame farpado. Com a prática um homem consegue engolir qualquer coisa. Estava a preparar-me para inovar o número, seria o primeiro artista a engolir armas de fogo e explosivos, granadas, cartuchos de dinamite, pistolas, talvez metralhadoras, quando me comecei a sentir mal, muito mal, fortes dores no epigastro, violentas náuseas, e descobri que tinha uma úlcera no estômago. Abandonei o circo…» (Agualusa, 2018: 75).

Realidades paralelas, onde ambos ficamos com a noção clara de que há poucas desgraças mais ridículas do que a traição, tendo em conta que esta «chega a ser mais ridícula do que levar com uma tartaruga na cabeça»: O ridículo é a lepra dos políticos. Nenhum político se atreve a apertar a mão de outro que tenha contraído o ridículo.  (Agualusa, 2018: 108).

Soubemo-lo pelo nosso amigo/irmão José Eduardo Agualusa, que Deus ao criar o primeiro Anjo, ofereceu-lhe um poderoso par de asas, explicando-lhe, contudo, que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo.

Passadas seis translações, acabamos por abandonar o circo. E sempre vamos sabendo sorrir para quem nos faça sorrir e saiba sorrir!

(In, Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4910, 02 de junho de 2023.) 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Amândio Sousa Dantas (1944-2022): O inspirado vate limiano deixou-nos!

A água é o fogo do poema

nenhuma sede na corrente,

só fogo e água

eis quando o amor nos aceita

pela sua morosa noite,

nada mais pode fazer

do que arder em lágrimas…

 

Amândio Sousa Dantas 


Quando menos contamos, o impensável acontece. A nossa estrutura mental reveste-se de algo profundamente enigmático. É como o sentir de um abatimento ou aflição; experimentar continuamente tristeza, ansiedade, ânimo muito baixo ou sensação de vazio. No fundo, um sentimento de que a vida não tem sentido nem valor, que nada tem de interesse. A letargia, fadiga ou sensação de não termos energia, retiraram-nos a serenidade e, subsequentemente, leva-nos ao pessimismo e perda de esperança; à baixa autoestima e ao sentimento de culpa. Pois é, ilustre amigo e Poeta Amândio Sousa Dantas (1944-2022), hoje fomos acometidos de uma dor profunda, um impacto desnecessário de desesperança e pessimismo. Não era previsível este desfecho; esta diminuição de energia, fadiga, esgotamento e sensação de estar em «câmara lenta».

Algumas pessoas questionar-se-ão do nosso persistente atrevimento em falar deste inspirado vate limiano, quando já o fizemos por inúmeras vezes, nomeadamente numa das nossas crónicas, neste mesmo jornal – a propósito da sua magnífica Antologia Poética, Poemas Sem Fim (1994-2006), onde reúne as suas obras: Perfeito chão de voar (1994); Sombras e ramos sobre o peito (1997); Infinita é toda a nascente (1998); Há uma eterna liberdade (2000); O instante é a tua face no poema (2001); Pousado no silêncio (2003); e, No ombro o orvalho (2006) – e no “Anunciador das Feiras Novas, onde o batizaríamos de «Um Poeta Mesológico do Lethes e do Mundo».

Na altura, fizemos questão de salientar que sempre soubemos perscrutar-lhe a alma, porque o sentimos possuidor das três distinções mais imediatas e óbvias do mundo da mente: o “Puro Intelecto”, o “Gosto” e o “Sentido Moral”, parafraseando Edgar Allan Poe quando afirma que “da mesma maneira que o Intelecto se preocupa com a Verdade, assim o Gosto nos informa sobre o Belo, enquanto o Sentido Moral se responsabiliza pelo Dever”. Achamos que, pelo ajuste das distinções, não serão necessários mais condimentos ou adjetivações para considerarmos Amândio Sousa Dantas, sem o acantonarmos ao nosso espaço geográfico e sem menosprezarmos outros poetas que tanto admiramos, um dos grandes poetas contemporâneos nacionais.

Tal facto, tendo em conta a nossa convincente afirmação (tão só, sedimentada pelo nosso gosto pessoal), permite-nos, ao mesmo tempo, formular alguma conceção especulativa no que concerne à “mimese poética” de muitos outros poetas – e poetisas – de quem gostamos. E não são poucos, tendo em conta que todos eles têm o seu lugar próprio na nossa perceção cognitiva – escolha de uma impressão, ou efeito, a ser transmitido (E. A. Poe) – de cada um. À sua vez, falamos de todos aqueles que, “poetando”, nos criam um estado emocional, uma saudável nostalgia ou uma sonorização melódica – sim, com certa musicalidade –, transmitindo partilha de pensamento (mesmo quando na dor), porque a poesia se repercute na linguagem humana, utilizada com fins estéticos, compreendendo mesmo aspetos “metafísicos”, no sentido de sua imaterialidade e da possibilidade de se transcender ao mundo fático.

No nosso último apontamento sobre «a prova do silêncio em Amândio Sousa Dantas», a propósito do seu [último] brado poético O SILÊNCIO DAS NUVENS, pensávamos nós na altura, em epílogo, ainda que através do nosso subjetivo sentir, aquele era o nosso “retrato do poeta”. O POETA a resgatar!

Hoje, sentimo-nos atraiçoados pelo “espelho mágico” da vida. Talvez pudéssemos ter feito algo mais pela noite que não dorme, / o sorriso do dia, / a vida de óculos escuros, / o sol fugidio... – no dizer do Poeta, no céu azul, no fogo, na ternura do mar, na nuvem, na tempestade, e o coração no éter, fórmula mágica que assegura o calor dos corpos e a função dos cinco sentidos, gravando todos os acontecimentos: MEMÓRIA.

Até sempre Amândio Sousa Dantas!

                                     (In, Cardeal Saraiva, Ano 113, n.º 4887, 23 de Dezembro 2022, p. 8-9)

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O SILÊNCIO DAS NUVENS: A prova do silêncio em Amândio Sousa Dantas.

“As suas palavras, apesar da inquietude que deixam transparecer, questionam sentimentos e atitudes, fazem repensar, mas deixam quase sempre um apelo de esperança, de amor e alegria…”

 

Fernando Pereira

(Director do Jornal Alto Minho)

 Não é poeta quem quer… Dissemo-lo antes como o diremos hoje, se tivermos em conta a ética e a coerência das nossas palavras quando afirmamos que Amândio Sousa Dantas é um Poeta na verdadeira acessão da palavra, dada a circunstância de podermos beber das suas próprias palavras um profundo sentimento existencial, vivido e aprofundado pela experiência e interioridade de cada poema, enquanto instrumentos da própria vida. O conceito do eterno retorno permanece na poesia de Amândio Sousa Dantas. Daí, a intemporalidade do poeta e da sua poesia.

Amândio Sousa Dantas

Não fosse o confinamento forçado a que temos estado sujeitos, a par da desencarnação da Mãe do Poeta, por certo que a nossa proximidade manter-se-ia, à boa maneira berkeliana, longe da realidade material independente dos nossos pensamentos, aconchegada ao mundo das nossas representações, onde o SER é ser percebido ou perceber. Com o desabafo enlutado – em “purificação pelo delírio” – do Amândio Sousa Dantas, viajou até nós, a uns tempos a esta parte, o seu último brado poético, O SILÊNCIO DAS NUVENS (Agosto de 2019). Estava feita a catarse – Katharsis, na obra POÉTICA de Aristóteles –, sentido pela “depuração” da musicalidade harmoniosa, quando nos traz (levando) o seu poema para o nosso silêncio, tendo em conta que, no dizer do Poeta, cada um de nós leva a prova do seu silêncio, vozes em fios invisíveis que tecem o próprio labirinto de cada um de nós, conhecendo o peso do coração, sem saber(mos) de onde vem tanta inquietação: Compreendi, sim, e concordo que existem duas formas de Katharsis; uma é a que diz respeito à alma; e outra, a que se refere ao corpo, e que é distinta desta. – no dizer de Aristóteles.

Já uma vez o Poeta escreveu, a propósito das vivências “com o fogo da memória”, sem que o tornemos repetitivo, nesta forma e desejo de conhecer o mundo entre a multidão, dando-lhe o espaço que ela pede, visionando-a entre os plátanos: Há em todos nós uma morada existencial, assim, pelo que sei da minha experiência, a interioridade do poema é instrumento comum (e solitário) da própria vida. Não se consegue ver o essencial sem os mistérios da existência: Ora levantando os olhos face às injustiças, ora com um olhar conciliador à justa decisão.

O Silêncio das Nuvens abre a mão do criador, talvez mão do Poeta que escuta a sede demorada, / aquele adeus que não volta, / o abraço desejado, o pranto, / e todo o silêncio dos teus (seus) passos; / a fonte, a perda: / Ai, a nascente que se afasta. / O golpe do amor – por sua asa. / A ferida, o sangue… (p. 15), qual simulação do subconsciente faz renascer os “germes de restituição” para um novo estado do mundo, íntimo, evoluindo sempre, e cujo próximo será o último. O Poeta voltou ao “eterno retorno” que se funde com a Mãe Natureza, cujo espaço físico o faz acreditar “que o signo da linguagem nos mostra a chave do tempo”, mesmo quando o Verão parece anunciar que acabaram os meses do silêncio, só porque o céu cobre-se de vozes. Premonição nas noites mal dormidas, onde “todas coisas repousam no seu lugar”, até na descoberta de um deus adormecido: Quando morre um homem [mulher] de uma rua / é, assim, como se o nome dessa rua / fosse fechada: / na luz dos seus próprios olhos… (p. 25), porque, no dizer do Poeta, “o tempo de uma vida é um relógio que se apaga”.

Apesar de não manifestar qualquer tipo de desalento, Amândio Sousa Dantas acredita que nem tudo são pétalas no caminho, nosso e dele, tendo em conta a “beleza da flor tem o seu próprio tempo”. O confronto maniqueísta entre o bem e o mal continua a ser uma das suas preocupações cognitivas. Daí não estranhar o tempo do absurdo, mesmo quando tem a plena consciência de que irá “morrer com toda essa solidão por descobrir”. Há sempre um rosto que atravessa a noite. Várias vezes. Repetidas vezes.

Há um percurso cadenciado neste seu Silêncio das Nuvens, através da espada que o fere e faz sangrar, o sangue do amor que não tem medida, qual elegia ao seu irmão, porque do seu cálice provo, a espada que o fere é a mesma que o sara. Vale-lhe o conhecimento do Universo, numa espécie de transmutação – quiçá, metafísica – onde Outro homem / Do outro lado da Terra: Ia semeando o seu trigo (p. 28). O canto permanece na grandiosidade do coração de Amândio Sousa Dantas, nem que seja para questionar a falta de pão em outra mesa; as mentiras dos dias, os silêncios; saber o que a palavra quer de qualquer um de nós; o vento que não corta a alma, porque “ali se abre a trincheira do sentimento”. De facto, a poesia, sendo bem feita, mesmo contrariando o Poeta, tem morada de cristal. Daí, estar feliz quando chove e triste quando faz sol. O quarto, com todo o peso do seu silêncio, qual lágrima vertida, faz transparecer o fundo da saudade / que anda às voltas pelo quarto / e sem que o sono se aproxime (p. 39). Nada que o Poeta, sem ser vidente, não o diga no poema: O coração da nossa mãe sabe muito de nós; / porém, o melhor é escutar o seu silêncio (p. 43).

Vai longa a nossa perscrutação à Alma do Poeta, quando nunca foi nosso propósito ou presunção explicar a poesia. Faz unicamente sentido, sentir, cada um à sua maneira, as palavras do Poeta: a saudade que nos prende ao instante; o silêncio que nos leva à funda palavra que repousa; a coragem de vencer o próprio medo; o caber em nós o que mais queremos; o verso que se inclina como um ramo; os céus que não escrevem o nosso destino; a existência pelo nosso silêncio, mesmo quando há tantas vozes de olhos no chão; cada página que se abre num livro: O Verbo, / a Iniciação. / o mistério, / e por ele – / um coro antigo. / até ao infinito (p. 66). O infinito apesar algo indefinido, por carecer de fim, limite ou termo, torna-se potencialmente positivo n’O Silêncio das Nuvens, quando o Poeta segue a existência do poema.           

Terminaríamos em momentos em que o Poeta parece descansar, aparentemente virando o olhar mais para as flores do campo, esquecendo ou procurando esquecer a imensidão do mar, levantando uma casa nas margens do poema e deixando o desejo no espaço imaginado, fruto apenas do silêncio muito seu e da herança de seus sonhos: Tanta quietude entre o verde e o espaço das nuvens. / Aqui: só a canção do silêncio é a única fonte, / e tão poucos a sabem escutar. O canto do silêncio subindo a montanha, alquimicamente plasmado na sombra e na descoberta – a noite que não dorme, / o sorriso do dia, / a vida de óculos escuros, / o sol fugidio –, no céu azul, no fogo, na ternura do mar, na nuvem, na tempestade, e o coração no éter, fórmula mágica que assegura o calor dos corpos e a função dos cinco sentidos, gravando todos os acontecimentos: MEMÓRIA.

Ainda que através do nosso subjectivo sentir, este é o nosso “retrato do poeta”. O POETA a resgatar!
 
(In, O Anunciador das Feiras Novas, Ano XXXVIII, n.º 38, Setembro 2021, p. 146-148)