Abstraindo-nos do prefácio e da nota à margem da aba da contracapa, por uma questão de exercício da interpretação estética – teoria que trata do sentimento do Belo e da apreciação do gosto –, muito nosso, sem desvalorizarmos o aval de insignes intelectuais (Guilherme d’Oliveira Martins e Miguel Real) do mundo académico-cultural português, que, por sinal, tanto admiramos, experienciamos assim o contraditório (o que não é o caso) do relativismo radical, que pode constituir um obstáculo para estética, uma vez que a correta validade da explicação da obra através de fatores exteriores à sua beleza, destrói o objetivo da estética.
O mesmo não poderemos fazer com os personagens e cenário, bem identificados na sinopse: «Imagina o mundo que tu conheces a colapsar diante dos teus olhos. Imagina ficares, de um momento para o outro, sem eletricidade e veres todos os aparelhos elétricos e eletrónicos inventados pelo Homem a avariarem definitivamente. Imagina um bombeiro com remorsos, uma enfermeira traumatizada, um professor enigmático, uma doméstica revoltada, um médico frenético, uma influencer vaidosa, um youtuber ativista, um engenheiro obcecado, um advogado oportunista, um designer poeta, um ator indeciso e uma criança muda lutando pela sobrevivência e numa viagem em busca de um paraíso terrestre que encontraram num folheto publicitário», por forma a ultrapassarmos a barreira do que nos poderá conduzir, por desvio de atenção, da essência do pensamento e da arte da escrita do autor, tal como afirmou Nietzsche – as modificações que a modernidade provocou na conceção tradicional de arte definindo-a mais como um movimento do que uma procura de um ideal de beleza – tendo em conta que o estatuto de obra de arte (ao qual incluímos a escrita – a arte de bem escrever…) modificou-se devido às experimentações e ruturas que afetaram todas as artes.
E desengane-se quem esperaria, da nossa
parte, uma fuga para a frente ou desvalorização do enredo e caracterização dos
intervenientes, tendo em conta que quem escreve evidencia parte de si na
multiplicidade ou desdobramento dessas mesmas caracterizações. E isso seria deselegante
da nossa parte para o autor e para os hipotéticos leitores. Compete aos
leitores fazer o seu exercício de interpretação, como forma e direito de não
ficarem condicionados pela coação de terceiros.
Quanto à nossa avaliação acerca do
pensamento e do bem escrever do autor – produção, trabalho e técnica – que agem
sobre a matéria preexistente, aí já nos compete atrair o leitor para – como
diria o Luís Miguel Rocha – o lado nato do verdadeiro escritor, forçosamente obrigado
a ser um bom observador: «observa o trágico,
o doloroso, o mágico, o maravilhoso, aquilo que já foi e o que ainda há de ser,
também o que nunca foi o que nunca há de ser…». Afirmaremos ainda que só um
bom leitor (inveterado, até…) pode vir a ser um bom escritor. Poderá parecer
apenas um cliché, mas como adiante realçaremos, este ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO, inspirado no romance de José Saramago
– Ensaio
sobre a Cegueira – tem muito da bem “apetrechada bagagem” do autor.
Principalmente do que trás de nato (sabe-se lá de que dimensão…), do absorvido
e do trabalhado, qual alquimia que lhe permite estabelecer pontes, elos e
sinais dados à natureza humana, ao ser pensante (como é o caso do Tiago),
reinterpretando o mundo imaginal, esse mundo intermédio entre o mundo inteligível
dos seres de pura Luz e o mundo sensível, cujo órgão que o apreende é a Imaginação.
Os setenta e nove capítulos, incluindo o
epílogo, ainda que a nossa opinião seja sempre subjetiva, leva-nos a concluir
que Tiago Moita preenche todos os requisitos para se afirmar e o afirmarmos
como um bom escritor. Talvez, muito para além da natureza redutora do bom. Se
nos pediram a nossa opinião, aí a têm.
Em lugar de “no princípio era o Verbo”, Tiago Moita inicia romance com
o “no princípio era o Medo”, fruto
do apagão, sem pregadores e profetas da desgraça; oráculos de adivinhos,
astrólogos, xamãs ou toda espécie de visionários; figuras míticas e deuses
inventados pelo Homem; búzios, runas e toda a espécie de objetos utilizados por
ocultistas para adivinhação do futuro. Sim, neste mundo da tecnologia de ponta,
do excesso de informação, rádios e radares, caixas de multibanco, onde o
virtual passa a real; das artérias movimentadas e caóticas; e muitas outras
variadíssimas situações que levariam o ser humano ao vendaval apocalíptico por
ele provocado.
Não é inocente o salto que Tiago Moita dá
da Génesis
– o paraíso e o fruto proibido, e subsequente Livre Arbítrio – para a Apocalipse, sem deixar de referir
que neste mundo do Medo, “poucos eram aqueles que conseguiam distinguir os
lúcidos dos loucos” e “desabar da ordem de um Estado começa dentro das suas
paredes”. Aqui são chamados à colação, não a serpente do Éden ou a mulher que
se deixou coagir pela tentadora proposta da astuta serpente (a desobediência
causa todos os males), mas os polícias das esquadras de todo o mundo, os
tribunais, o desespero de “milhares de pessoas de pessoas chorando para os
ecrãs frios e pardos dos seus smartphones, tablets
e computadores portáteis” (Moita, 2024: 31), etc., etc…
O Apagão Global, chave de todo o enredo em
ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO, onde se dá o colapsar do mundo que nós conhecemos
através dos nossos olhos, vai em sentido contrário ao Ensaio sobre a Cegueira
de José Saramago, onde só um é que vê. De um ensaio político (desculpem-nos o
atrevimento de recorrermos a uma máxima popular – em terras de cegos quem tem olho
e rei), em Ensaio dobre o Fim do Mundo, partimos para uma séria reflexão
sobre a nossa existência, aquilo que construímos e nos pode destruir, a memória
do tempo e dos tempos que estão para lá do tempo, só possível atingir quando confrontados com o
silêncio misturado com o tédio; a falta de paciência; a colisão entre as
pessoas, despoletando novas ondas de fúria e medo; o retorno aos métodos
manuais de secretariado; o esquecer das estações do ano, enquanto vagueamos em
direção ao abismo; a voragem do ódio alastrando como uma epidemia; a pilhagem
ou destruição feita por gente (horda de
vândalos) embriagada pela fome e pela loucura; os símbolos derrubados [monumento,
laboratório, teatro, universidade, museu, centro cultural ou biblioteca],
entregues, como afirma, escrevendo, Tiago Moita, “à fúria cega da loucura, da
ignorância, do preconceito e do ódio” (Moita, 2024: 45); o tempo que se esvai
do mundo através dos olhos dos vivos – palavras de Tiago Moita que nos leva “a
começar do zero”, principalmente quando tudo se esvai no horizonte e nas mentes
de todos nós. Essa é a sua procura e deveria ser a procura de cada um de nós
(deixamos a descrição, a caracterização dos personagens e os cenários, para
gaudio dos leitores, sentirem a impressionante mestria do Tiago Moita, na arte
de bem escrever).
Sente-se na sua escrita, de forma
irrepreensível, o pulsar do conhecimento evolutivo (o insaciável, dentro do
conceito d’A Douta Ignorância em Nicolau de Cusa: «Com
efeito, nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo o mais
estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é
própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber…»
(Cusa, 2003: [5]), numa área que nos é muito grata. As próprias dozes partes,
assim o denunciam: I – No princípio era o Medo; II – Começar do zero; III – O
cetro e o gládio; IV – A Rosa e a Cruz; IV – A Rosa e a Cruz; V – Homo est
centrum mundi; VI – O Relógio de Descartes; VII – O espelho da discórdia; VIII
– O preço da Liberdade; IX – O grito do entulho; X – Homo ex machina; XI – O
Crepúsculo das Luzes; e, finalmente XII – A Grande Verdade – Deixei
para o fim quem começou toda esta história. Nunca procurei qualquer espécie de
protagonismo nem tenho jeito para despedidas e discursos estéreis de paixão e
conteúdo. O sol espreguiça-se no horizonte e começa a afastar os últimos vestígios
da noite com os seus braços luminosos, o mundo voltou a seguir o curso da
natureza como um cardume quando descobre o pulsar de uma corrente marítima num
oceano e a Humanidade voltou a virar mais uma página da sua História, graças à
minha ajuda – citamos do Epílogo.
O curso deste Ensaio, feito romance, faz o
percurso inverso ao das sagradas escrituras: da Apocalipse para o Génesis,
retomando o espírito do universo, a natureza do Homem, mesmo quando em
convulsão.