quarta-feira, 22 de junho de 2016

David Hume e a ordem estabelecida pelos “objectores de consciência”!

«Quanto às impressões que têm origem nos sentidos, na minha opinião e a sua causa última é perfeitamente inexplicável pela razão humana e há-de sempre impossível decidir com certeza se elas têm origem imediata no objecto, se são produzidas pelo poder criador da mente ou se provêm do Autor do nosso ser…»

David Hume

David Hume [N. Edimburgo, 1711 – m. Edimburgo, 1776], filósofo, economista, escritor e historiador inglês, tal como sustentaria Paul Strathern, é o primeiro a admitir o seu pendor ateísta, frequente acusação de que eram alvo alguns dos filósofos que o antecederam, numa altura em que tal adjectivação não se traduziria, por certo, em elogio para ninguém. Antes pelo contrário, os filósofos enfrentariam graves dificuldades de forma a convencerem as pessoas da antítese à “ordem estabelecida”. Sendo que David Hume admitiria o confronto com a teologia, tal acto – diríamos, atitude ou acção –, levá-lo-ia a ser protagonista de um escândalo público, cuja dissuasão pretendida pelos seus opositores se baseava numa argumentação filosófica, e não em eventuais torturas.
Se no início da era Cristã, a filosofia foi absorvida pela teologia, centrada na aceitação de textos elaborados, por forma a construir-se novas argumentações dogmáticas, a partir Descartes (Séc. XVI), considerado como fundador da filosofia moderna, despreza-se os velhos pressupostos e a fundamentação assenta na filosofia da razão, ou seja, no método para conduzir a razão na busca da verdade, tentando unificar as ciências. Através deste “processo” procurava-se demonstrar que era possível negar tudo. Meio século mais tarde, John Locke revolucionou a noção de conhecimento ao introduzir o empirismo, cujo argumento defendia o princípio fundamental da filosofia, não na razão, mas na experiência. E David Hume procurou ir mais longe, ao querer demonstrar que já não era possível a construção de sistemas filosóficos, opondo-se, claramente, ao “penso, logo existo” de Descartes, com “a explicação da identidade pessoal: o «eu» como feixe de representações”. Daí, ser considerado o último representante dos empiristas britânicos clássicos: Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704).


O projecto de David Hume é, por assim dizer, o de construir uma ciência do homem, por forma a se “descobrir os princípios que regem as operações do pensamento”. Nesse sentido, esta é a “causa-efeito” negativa, vulgarizada nos tempos que correm, principalmente quando os ajumentados “objectores de consciência”, com pardieiro montado nos palanques da política e dos audiovisuais, se convencem do contraditório em relação àquilo que David Hume denominaria de “impressões”, as percepções que penetram com maior intensidade e violência e, sob esta designação englobou todas as nossas sensações, paixões e emoções, quando surgem pela primeira vez na “alma”; enquanto por ideias, referir-se-ia às suas distintas imagens no pensamento e raciocínio. Ou seja, enquanto as ideias podem ser distinguidas umas das outras pela sua “vivacidade” (apoio empírico), as impressões gozam de primazia genética sobre as ideias, dado que possuem uma qualidade (“vivacidade”) superior às ideias. Se é que interpretamos bem, o mesmo acontece com as ciências matemáticas, cuja grande vantagem sobre as ciências morais, reside no facto das primeiras nos oferecer sempre clarividência e determinação, sendo facilmente perceptível a mais pequena distinção entre elas, face à ausência de ambiguidade ou variação na forma de exprimir as mesmas ideias. Normalmente, os mesmos termos exprimem as mesmas ideias, invariavelmente.
Por isso, sempre que ouvimos os “papagaios” – dissimuladores de sapiência multidisciplinar – na TV (a tal caixinha-mágica), recorremos ao “zapping”, na expectativa de melhores alternativas, ou ao “off”, quando constatamos da lixeira e da desinformação que por lá pairam. É uma questão de defesa contra o “feixe de representações” de tais actores, creditados na existência das substâncias, quando para David Hume não existiam, tendo em conta que os corpos materiais são meros complexos de sensações; e, o “Eu” mais não representa que um feixe de sensações. Por outras palavras, se em nenhum momento temos uma percepção de nós mesmos, muito menos terão os “papagaios”… Veritas odium parit!
       Momentaneamente, como forma de remissão dos nossos “pecados” ou fragilidades cognitivas, valha-nos o futebol, para nos alegrar ou entristecer.

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1247, 20 de Junho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-22)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Publicadas «Actas da Jornada» Abel Viana (1896-1964)!

«Abel Viana foi uma personalidade notável e uma referência essencial em período decisivo para o desenvolvimento dos estudos arqueológicos em Portugal…»

Marcelo Rebelo de Sousa

Foi no pretérito dia 18 de Maio do corrente ano, qual soalheira quarta-feira nos levaria, em representação do Município de Viana do Castelo, até ao Museu Nacional de Arqueologia, instalado no Mosteiro dos Jerónimos, para assistirmos à inauguração da Exposição «Lusitania Romana: Origem de dois Povos» e ao lançamento do livro «Actas da Jornada: Abel Viana (1896-1964) Paixão pela Arqueologia», cujo evento contou com a presença do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República.
Abstraindo-nos do acto pessoal de representatividade e da qualidade do dignitário da nação portuguesa, de somenos importância para o nosso “correr da pena” e sentido ético de imparcialidade, apenas nos debruçaremos sobre os conteúdos do referido livro de actas, que conta com anuência escrita do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, em jeito de Apresentação: As presentes Actas da Jornada Abel Viana são editadas autonomamente apenas porque não foi materialmente possível publicar um número específico do prestigiado “O Arqueólogo Português”, como inicialmente sonhado. Mas, o sentido de justíssima homenagem ao Mestre não se perdeu com as vicissitudes da edição. Muito pelo contrário, a ideia-chave da Jornada, tal como a da divulgação dos magníficos textos ora coligidos permaneceu viva e mereceu o apoio entusiástico da Fundação da Casa de Bragança, que organizou, no Castelo de Vila Viçosa, exposição evocativa e secundou a iniciativa lançada pelo dinâmico Director do Museu Nacional de Arqueologia, Senhor Dr. António Carvalho… – citamos “ipsis verbis”.


A publicação das referidas actas é o resultado do reconhecimento e evocação, por parte da Fundação da Casa de Bragança, da figura e da acção do insigne arqueólogo vianense Abel Viana (1896-1964), quando, em 2014, se assinalou o cinquentenário do seu passamento. Essa efeméride, que contou com o apoio do Museu Regional de Beja, foi assinalada com a organização e promoção de uma Exposição que esteve patente ao público no Castelo de Vila Viçosa, de Março a Dezembro desse mesmo ano, denominada “Abel Viana – Paixão pela Arqueologia”, a qual foi acompanhada por um catálogo, vindo a culminar, em Setembro, por ocasião das Jornadas Europeias do Património, com um ciclo de conferências.
Porque seria fastidioso aqui esmiuçar os conteúdos das intervenções nesse ciclo de conferências, que envolveu o Museu Nacional de Arqueologia, apenas referiremos o autor e o título das comunicações: José d’Encarnação, do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património, da Universidade de Coimbra, da Academia Portuguesa da História e da Academia das Ciências de Lisboa – Jeannette U. Smit Nolen: In memoriam (p. 12-19); João Luís Cardoso, da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Portuguesa da História, da Universidade Aberta e do Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras (Câmara Municipal de Oeiras) – Abel Viana (1896-1964): uma vida de arqueólogo (p. 20-72); António Carlos Silva, da Direcção Regional de Cultura do Alentejo – O legado de Abel Viana para a Arqueologia do Alentejo (p. 73-82); e, finalmente, Mónica Rolo, UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa e Bolseira de Doutoramento – Abel Viana e Vila Viçosa (p. 83-110). De salientar que, para além da “Apresentação” (p. 7) de Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente do Conselho Administrativo da Fundação da Casa de Bragança, este magnífico livro conta ainda com “Palavras Prévias” (p. 9-11) de António Carvalho, Director do Museu Nacional de Arqueologia, que escreve a dado momento: O arqueólogo Abel Viana e o seu labor mereciam ser recordados e, entre as instituições que poderiam fazer esta justa homenagem, a Fundação da Casa de Bragança assume um papel de destaque. / Abel Viana esteve ligado à génese da constituição do Museu Arqueológico da Fundação e nesse quadro à realização de muitas campanhas de trabalhos arqueológicos subvencionados pela mesma. O contributo de Abel Viana para o desenvolvimento da Arqueologia do norte alentejano foi decisivo (…) – citamos e subscrevemos.
Nós por cá, Alto Minho, impõe-se-nos a obrigação de fazermos um pouco mais pela memória de Abel Viana. Res angusta domi!

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1246, 10 de Junho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-21) 

quarta-feira, 8 de junho de 2016

UM OLHAR DE FERNANDO PINHEIRO SOBRE O «BALIZA TRÁGICA DE UM NAUFRÁGIO»

Caro Porfírio:

Acabei de ler a tua obra. Como compreendes, não poderei fazer um comentário exaustivo da mesma, devido à sua complexidade textual e à manifesta falta de tempo útil com que me debato. Aulas, edições, iniciativas literárias, tarefas administrativas e de divulgação, encenações, colaboração em múltiplas realizações, etc. etc. impedem-me de fazer um estudo aturado da Baliza Trágica de um Naufrágio, conforme era minha vontade.


No entanto, não podia deixar de te dar uma pequena impressão de leitura sobre um texto que transcende em muito as fronteiras do chamado romance literário clássico. Ao longo dos dias fui percebendo que o “romance” mais não era do que o pretexto para uma impiedosa análise do “estado da nação”, nos múltiplos aspectos da sua degradação sistémica. O “romance”, sem deixar de o ser, acabou no entanto sobrepujado pela enormidade dos problemas causados por uma classe política inepta, por uma economia canibalista e por um império financeiro que mais não é do que um rolo compressor a esmagar as pequenas nações como Portugal. Em função das temáticas versadas numa obra que é predominantemente teórica, analítica e científica, poderemos dizer que estamos em presença de um romance-ensaio, ou até de um romance de tese multipolar. Impressiona a quantidade e a qualidade da informação, sempre pertinente e assertiva, o excelente e oportuno nível das citações, a intertextualidade de autores portugueses e estrangeiros, e, sobretudo, a agudeza justíssima e lancinante da denúncia de um crime cometido contra a empresa emblemática dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
Amigo Porfírio, é este o meu abraço literário que te queria dar. Bem hajas pela tua luta e pela tua independência moral e intelectual. Mas como escritor comprometido, estava-te reservada a única barricada de onde podes continuar a fazer frente a todo o tipo de opressões, sejam elas ideológicas, económicas ou morais. Vale!

Com o abraço fraterno do
Fernando Pinheiro

(Editor, argumentista, encenador, poeta e escritor)

quarta-feira, 1 de junho de 2016

«O Eco dos Sedimentos» em Boaventura Rodrigues Silva!

«Os pensamentos são velhos, novos são os rios dos que nos induzem ao pensamento».

Boaventura Rodrigues Silva

Não há encontros ocasionais. Nem empatias. É uma questão energética!
Há muito que devíamos o testemunho arrancado ao silêncio e à escuridão, aqui pelas páginas impressas deste filho herdado (ADN positivo) do bom amigo Gualter Bacelar. A última vez que o fizemos foi em finais de Setembro do ano sétimo deste milénio, com Os Meninos do Rio, altura em que elegemos o nosso rio para confidenciarmos, desabafarmos, amarmos em silêncio, longe das penumbras, das noções articuladas do SER, do movimento nuclear das premeditadas antropodiceias (excitantes e excitadas no “bem-estar” de então), do estar e fluir nas defecadas paragens, impregnadas pelos “cabaneiros” sem arribanas, mas senhores do seu nariz, com paragem obrigatória em Terras da Nóbrega, qual Jardim dos Poetas nos faria ignorar a saudável “algazarra” dos meninos do rio.
Escrevemos na altura que os ditos “meninos” nasceram junto ao rio e vivem para ele, mergulhando, flutuando e nadando como peixes prateados, unidos, solidários e vocacionados para a necessidade lógica de “dominarem” o seu próprio universo. Hoje, por certo, terão ultrapassado as vinte e muitas translações e gravitarão por outras paragens e outros rios. Ou, quiçá, outros mares!


Boaventura Rodrigues Silva, homem nato em Terras da Nóbrega, aspergido com água benta em Touvedo, sob o domínio de um Salvador, há mais de sessenta translações, também ele Menino do Rio, se fez Homem sob um “fio-de-prumo” que o faria vir a sentir medos sem os escrever, a não louvar hipocrisias, aprendendo a amar o uivo dos ventos e a fúria dos mares, que condicionam os tempos. Tomamos-lhe por empréstimo o seu «Eco dos Sedimentos», eco espaço impresso por altura em que falamos dos Meninos do Rio, nossa décima nona crónica do “Átrio e do Lethes” (NB, Ano XXXI, n.º 952, 26 de Setembro de 2007), porque envolvidos por similares “Maleitas das Paixões” endeusadas por “Vénus”: «…Não sois lindas mulheres / Sois maravilha!... / Mas prodigiosos e belos / Corpo e pernas / Boca e seios / São os da mulher / Minha mãe…» (p. 23); por noites alucinantes que nos acordam e nos incitam à pueril rebeldia: «…Noites eivadas / De abutres / Piando e pairando / Sobre nossos corpos / Exaustos de tantas / Entregas…» (p. 35), cheias de erotismo, exotismo, coqueiros e Baía; ou por uma cabana e pelos beijos: «Como pincéis embriagados / De tinta pueril / Poisavam à porfia / Sobre o pedaço do mapa / Do teu corpo…» (p. 42).
Pelo «Eco dos Sedimentos» de Boaventura, perpassam ainda aulas de experiência; maturações, onde o esmagamento agita ainda mais a docilidade; búzios que as marés ousam beijarem; lodos petrificados, assentes no ontem, hoje e amanhã, por forma a estriparem o silêncio nocturno; ARTE, onde não importa saber o artista, dado o mesmo morar em sua obra; negação de voltar a ser menino outra vez; virtudes e suplícios; fazedores do pão; impérios da saudade; meninos do azar: «…Por isso é que / Vegetam / Tantos meninos / Sem arrimo / E não há / Cobertor que / Quebre o gelo / Aos meninos / Do desamor» (p. 63); crisântemos e chaves, esquecidas, com as quais alguém, ao fazer amor sem Amor, acabaria por expugnar «todos os recantos e pecados indizíveis…». Poesia sofrida, mas combativa e indobrável. Cepticismo de um homem simples? Talvez não, dado que, mormente, por trás de uma aparente simplicidade, transfigura-se um homem, geneticamente libertário.     
Como vês, Boaventura, também nós, nada te devemos, porque não acreditamos no acaso, mas na VONTADE, em obediência à qual, com esforço, nos forjamos coléricos, fazendo-nos também fortes, neste “Oceano” de aparências, cujo interior agitado, procura ostracizar-nos. Antes Meninos do Rio que “pajens” de poderes instituídos, porque, no teu dizer, temos a coragem de dizermos NÃO com irreverência à opulência, conscientes de que a “Revolução” começa em nós.
       Continua assim, Amigo/Irmão Boaventura Rodrigues Silva, mesmo que tenhas o «corpo cansado / Do tabaco, de cantigas / Coração despedaçado / Por amor de raparigas…». Conta connosco, hoje e sempre!

(In, «Crónicas do Átrio e do Lethes 21» - Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1245, 30 de Maio de 2016, p. 11)