sexta-feira, 28 de julho de 2023

A cultura das pequenas iniciativas!...

 «A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem.»

 

Ortega y Gasset

 

Temos a grata memória de um dia do ano 2014, quando prazerosamente participávamos nos Saraus Culturais do Artista Arlindo Pintomeira, o Maestro António Victorino d’Almeida nos ter alertado (porque também houvera sido alertado na promissora juventude, por João de Freitas Branco) para a tomada de consciência (quase como em defesa do nosso êxtase universalista), pelo facto de Portugal, culturalmente, viver de pequenas iniciativas. Aliás, com a agravante de até hoje ninguém se ter questionado se alguma vez soube (ou procurará saber) o que é verdadeiramente a Cultura. No fundo, bebendo em Lévi-Strauss, o requinte individual, mas não só, que distingue um indivíduo dos seus semelhantes.


É através de Lévi-Strauss que conseguimos perceber e nos atrevemos à crítica da ideia totalizante da cultura, quando esta se limita a contentar-se com o já existente, em vez de imprimir a sua marca (identidade) no mundo através da sua atividade, movimento que reflete o progresso da própria consciência humana. A consciência de todos e não da forma seletiva de uns poucos, assente no conceito de que a cultura é apenas o requinte individual que distingue um indivíduo dos seus semelhantes.

Não é por acaso que para Aristóteles, a diferença entre os homens cultos e incultos, residia na diferença que existe entre os vivos e os mortos. Daí, a cultura ser o melhor conforto para a velhice, sendo que a mesma velhice se apresenta como um símbolo de sabedoria (sem que a mesma signifique qualquer tipo de grau académico ou estatuto por subalternização de grupo), uma vez que arrasta consigo o domínio da experiência na vida e a aprendizagem e, por fim, a cultura que a mesma carrega.

E, por fim, recorremos a Oliveira Martins, através de «Literatura e Filosofia» (Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1955), a propósito de Luís de Magalhães, em jeito crítico: «E o poeta pergunta a si próprio que vereda seguir, e não se encontra um altar levantado onde possa depor a oferta do seu entusiasmo…» (p. 37).

Hoje, percorrida uma década, que diremos nós, quando há muito temos vindo a constatar que as “alminhas” onde possamos ofertar o nosso entusiasmo são demasiado pequenas, para nos ajoelharmos e orarmos.

Com certeza que de pouco valerá chorar ao soluçar da derradeira ilusão. Cultura vai muito mais para além das nossas “alminhas” ou “capelinhas” de bairro!

(InCardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4916, 14 de julho de 2023) 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

A morte enquanto restituição do grande silêncio!...

«A morte não é a maior perda da vida. A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos…»

 

Norman Cousins

 

Há dias em que nos deixamos enredar por um sentimento de desalento, a ponto de evidenciarmos alguma frustração. Aí estão as espécies embrionárias dos “objetores de consciência” que há muito têm vindo a sancionar o crescimento vertebral, porque em muito semelhantes à maleabilidade da cana de bambu, fausto ruidoso e vazio dos seus narcisismos latentes, exaltados por solenidades serviçais, regurgitadas entre gôndolas e músicas enfadonhas, como grandes pastores do seu rebanho.

Há cerca de dois que encontramos na escrita de Karl Ove Knausgard, nascido em Oslo, na Noruega (1968), o início de uma exploração proustiana do passado e da procura das partículas elementares da sua (e, quiçá, nossa…) vida, principalmente quando ele, no outono de 2009, iniciou um projeto literário singular a que deu o nome de «A Minha Luta», composto por seis extensos volumes: 1 – A Morte do Pai; 2 – Um Homem Apaixonado; 3 – A Ilha da Infância; 4 – Dança no Escuro; 5 – Alguma Coisa tem de Chover; 6 – O Fim, título último cujos os cenários  e estados psíquicos se desdobram entre dúvidas de talento, frustrações atuais e passadas, descoberta do sexo e do álcool (“essa bebida mágica”), e as inseguranças da adolescência e da paternidade. Sem que tudo ou o todo corresponda à maleabilidade da cana de bambu, sempre fomos encontrando ao longo dos seis extensos volumes (lidos e relidos, aqui e acolá, por algumas tantas vezes), algum conforto, perfumes, sol e folhas de árvores.

Há perfumes que, pela positiva, perduram ao longo da nossa vida, porque odorificamente nos prendem à memória do AMOR autêntico que nos liberta do sofrimento, aproximando-nos do belo, do verdadeiro e do bem. Felizmente que esse AMOR ainda se mantém bem vivo (físico e espiritualmente, falando), porque existe uma perfumada dicotomia entre a consciência moral e a consciência amorosa, tornando-a numa afinidade secreta.

Dos perfumes aos livros, quase como uma aspiração ao belo e ao bom, chegamos ao AMOR À SABEDORIA. Assente neste basilar princípio, eis que damos connosco a “devorar” o último volume com mais de mil páginas, de forma a possuí-lo de modo contínuo, mesmo quando, conscientemente, temos a noção clara de que o nosso FIM se aproxima a passos largos: «…A morte, essa restituição do grande silêncio, é também alguma coisa fora do humano, e não pode igualmente tornar-se-nos presente, porque, no momento em que nos alcança, deixamos de existir, mais ou menos como a linguagem deixa de existir quando a não-linguagem a alcança. A morte é aquilo com a esfera humana confina, a ausência de linguagem é aquilo com que confina o nosso mundo humano, e é contra o fundo desta dupla escuridão que nós e o mundo brilhamos. A morte e o mundo material são o absoluto, inacessíveis para nós, porque no momento em que nos transformamos neles, já não somos nós, mas uma sua parte…» (In, KNAUSGARD, Karl Ove – “O Fim”. Lisboa: Relógio D’Água Editores, dezembro de 2020, p. 337).

De facto, o tempo e a identidade, unem-se em SOMOS, questionando-nos permanentemente, o que é, então o NÓS?... Principalmente, e tão só, quando exaltados por solenidades serviçais!

[Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4913, 23 de junho de 2023]