«A morte não é a maior perda da vida. A maior
perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos…»
Norman Cousins
Há dias em que nos deixamos enredar por um sentimento de desalento, a
ponto de evidenciarmos alguma frustração. Aí estão as espécies embrionárias dos
“objetores de consciência” que há muito têm vindo a sancionar o crescimento
vertebral, porque em muito semelhantes à maleabilidade da cana de bambu, fausto
ruidoso e vazio dos seus narcisismos latentes, exaltados por solenidades
serviçais, regurgitadas entre gôndolas e músicas enfadonhas, como grandes
pastores do seu rebanho.
Há cerca de dois que encontramos na escrita de Karl Ove Knausgard,
nascido em Oslo, na Noruega (1968), o início de uma exploração proustiana do
passado e da procura das partículas elementares da sua (e, quiçá, nossa…) vida,
principalmente quando ele, no outono de 2009, iniciou um projeto literário
singular a que deu o nome de «A Minha Luta», composto por seis extensos
volumes: 1 – A Morte do Pai; 2 – Um Homem Apaixonado; 3 – A
Ilha da Infância; 4 – Dança no Escuro; 5 – Alguma Coisa tem de
Chover; 6 – O Fim, título último cujos os cenários e estados psíquicos se desdobram entre dúvidas
de talento, frustrações atuais e passadas, descoberta do sexo e do álcool
(“essa bebida mágica”), e as inseguranças da adolescência e da paternidade. Sem
que tudo ou o todo corresponda à maleabilidade da cana de bambu, sempre fomos
encontrando ao longo dos seis extensos volumes (lidos e relidos, aqui e acolá,
por algumas tantas vezes), algum conforto, perfumes, sol e folhas de árvores.
Há perfumes que, pela positiva, perduram ao longo da nossa vida, porque
odorificamente nos prendem à memória do AMOR autêntico que nos liberta do
sofrimento, aproximando-nos do belo, do verdadeiro e do bem. Felizmente que
esse AMOR ainda se mantém bem vivo (físico e espiritualmente, falando), porque
existe uma perfumada dicotomia entre a consciência moral e a consciência
amorosa, tornando-a numa afinidade secreta.
Dos perfumes aos livros, quase como uma aspiração ao belo e ao bom,
chegamos ao AMOR À SABEDORIA. Assente neste basilar princípio, eis que damos
connosco a “devorar” o último volume com mais de mil páginas, de forma a
possuí-lo de modo contínuo, mesmo quando, conscientemente, temos a noção clara
de que o nosso FIM se aproxima a passos largos: «…A morte, essa
restituição do grande silêncio, é também alguma coisa fora do humano, e não
pode igualmente tornar-se-nos presente, porque, no momento em que nos alcança,
deixamos de existir, mais ou menos como a linguagem deixa de existir quando a
não-linguagem a alcança. A morte é aquilo com a esfera humana confina, a
ausência de linguagem é aquilo com que confina o nosso mundo humano, e é contra
o fundo desta dupla escuridão que nós e o mundo brilhamos. A morte e o mundo
material são o absoluto, inacessíveis para nós, porque no momento em que nos
transformamos neles, já não somos nós, mas uma sua parte…» (In,
KNAUSGARD, Karl Ove – “O Fim”. Lisboa: Relógio D’Água Editores, dezembro de
2020, p. 337).
De facto, o tempo e a identidade, unem-se em SOMOS, questionando-nos permanentemente, o que é, então o NÓS?... Principalmente, e tão só, quando exaltados por solenidades serviçais!
[Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4913, 23 de junho de 2023]
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