quinta-feira, 6 de julho de 2023

A morte enquanto restituição do grande silêncio!...

«A morte não é a maior perda da vida. A maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos…»

 

Norman Cousins

 

Há dias em que nos deixamos enredar por um sentimento de desalento, a ponto de evidenciarmos alguma frustração. Aí estão as espécies embrionárias dos “objetores de consciência” que há muito têm vindo a sancionar o crescimento vertebral, porque em muito semelhantes à maleabilidade da cana de bambu, fausto ruidoso e vazio dos seus narcisismos latentes, exaltados por solenidades serviçais, regurgitadas entre gôndolas e músicas enfadonhas, como grandes pastores do seu rebanho.

Há cerca de dois que encontramos na escrita de Karl Ove Knausgard, nascido em Oslo, na Noruega (1968), o início de uma exploração proustiana do passado e da procura das partículas elementares da sua (e, quiçá, nossa…) vida, principalmente quando ele, no outono de 2009, iniciou um projeto literário singular a que deu o nome de «A Minha Luta», composto por seis extensos volumes: 1 – A Morte do Pai; 2 – Um Homem Apaixonado; 3 – A Ilha da Infância; 4 – Dança no Escuro; 5 – Alguma Coisa tem de Chover; 6 – O Fim, título último cujos os cenários  e estados psíquicos se desdobram entre dúvidas de talento, frustrações atuais e passadas, descoberta do sexo e do álcool (“essa bebida mágica”), e as inseguranças da adolescência e da paternidade. Sem que tudo ou o todo corresponda à maleabilidade da cana de bambu, sempre fomos encontrando ao longo dos seis extensos volumes (lidos e relidos, aqui e acolá, por algumas tantas vezes), algum conforto, perfumes, sol e folhas de árvores.

Há perfumes que, pela positiva, perduram ao longo da nossa vida, porque odorificamente nos prendem à memória do AMOR autêntico que nos liberta do sofrimento, aproximando-nos do belo, do verdadeiro e do bem. Felizmente que esse AMOR ainda se mantém bem vivo (físico e espiritualmente, falando), porque existe uma perfumada dicotomia entre a consciência moral e a consciência amorosa, tornando-a numa afinidade secreta.

Dos perfumes aos livros, quase como uma aspiração ao belo e ao bom, chegamos ao AMOR À SABEDORIA. Assente neste basilar princípio, eis que damos connosco a “devorar” o último volume com mais de mil páginas, de forma a possuí-lo de modo contínuo, mesmo quando, conscientemente, temos a noção clara de que o nosso FIM se aproxima a passos largos: «…A morte, essa restituição do grande silêncio, é também alguma coisa fora do humano, e não pode igualmente tornar-se-nos presente, porque, no momento em que nos alcança, deixamos de existir, mais ou menos como a linguagem deixa de existir quando a não-linguagem a alcança. A morte é aquilo com a esfera humana confina, a ausência de linguagem é aquilo com que confina o nosso mundo humano, e é contra o fundo desta dupla escuridão que nós e o mundo brilhamos. A morte e o mundo material são o absoluto, inacessíveis para nós, porque no momento em que nos transformamos neles, já não somos nós, mas uma sua parte…» (In, KNAUSGARD, Karl Ove – “O Fim”. Lisboa: Relógio D’Água Editores, dezembro de 2020, p. 337).

De facto, o tempo e a identidade, unem-se em SOMOS, questionando-nos permanentemente, o que é, então o NÓS?... Principalmente, e tão só, quando exaltados por solenidades serviçais!

[Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4913, 23 de junho de 2023] 

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