sexta-feira, 23 de setembro de 2016

«O Povo da Barca» e os editoriais (2002-2006) de José Maria Lacerda e Megre!...

«Desde sempre o conheci ligado ao fado, nunca perdendo a oportunidade de o cantar, convertendo-se no centro das atenções dos da sua geração. Mas não era só o fado sempre castiço que acontecia, era sim a terapia com beneficiava os amigos tocados pelas saudades do terrunho natal ou de amor, mal correspondido…»

António Moniz Palme

Em traços gerais, e antes de nos referirmos à obra que saiu a lume em Julho do corrente ano (Depósito Legal 412668/16), poderemos dizer que José Maria Lacerda e Megre nasceu em Ponte da Barca, em 14 de Novembro de 1939. Faz a 4.ª Classe e em Braga a admissão ao Liceu. Seu pai, José Pimenta de Castro Lacerda e Megre é colocado como secretário-geral dos Tribunais Cíveis de Lisboa e, por isso, é no Liceu Pedro Nunes, da capital, que realiza o 5.º Ano do Liceu e no Passos Manuel o 7.º Ano.
Em 1954, ainda em Lisboa, forma com os amigos e vizinhos do bairro do Restelo a “Guitarra de Santos”, grupo dedicado aos fados e à poesia.
Ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, em 1959, vai para Coimbra, onde haverá de concluir a sua licenciatura em Direito. É em Coimbra que, em 1961, grava quatro fados de Menano, Gois e Bettencourt, acompanhado por António Portugal e outros grandes instrumentistas.


Em 1962, estando no 2.º ano de Direito, é chamado para cumprir o serviço militar. É incorporado em Mafra como aspirante e vai para Lamego onde realiza o curso de Caçador Especial. Em Janeiro de 1963, integrado como alferes miliciano na Companhia de Artilharia 563, parte para Moçambique (Chibuto), onde permanece até 1966. A partir desta data continua a estudar direito em Coimbra, mas é promovido a tenente miliciano e oficial de tiro no Quartel R.A.P. 2 e Carreira de Tiro de Espinho, onde prepara três batalhões para a Guiné. Recebe louvor pela sua eficácia, competência e pelos êxitos na guerra dos soldados que preparara. Entretanto, entra para a Administração da Companhia das Minas de Carvão de S. Pedro da Cova, pertencentes a seu sogro Luís Cid Monteiro (havia casado com Fernanda Forbes Bessa Costa Lobo Cid Monteiro, em 1964).
Em 1972 termina o curso de Direito e ingressa como subdelegado do Procurador da República do 4.º Juízo Correccional e 5.º Juízo Cível do Tribunal do Porto. A 24 de Abril de 1974, toma posse do cargo de delegado do Procurador da República na Comarca de Castelo de Paiva. Em Março de 1975 ingressa na Direcção do Porto da Polícia Judiciária como inspector. Aposenta-se como coordenador em 1999.
Em 1996 funda em Ponte da Barca o “Clube dos Poetas Vivos”, com a missão de perpetuar a obra de todos os poetas portugueses que já partiram e simultaneamente homenagear os vivos, provando que a Poesia nunca morre. Dinamizando inúmeros encontros de poesia, música, história e literatura ao longo de 20 anos, realiza muitas dezenas de sessões, pelas quais já passaram mais de dois milhares de participantes.  Ainda em 1966, com a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto, grava em CD com guitarras de Arménio Assis e do Barão de Palme e violas do juiz conselheiro Mário Araújo Ribeiro e Manuel Campos Costa, quatro fados de Coimbra por ele compostos, com letras dos poetas António Correia de Oliveira, Pedro Homem de Mello, Zeca Afonso e Fernando Pessoa.

25 de Agosto de 2016, almoço saudável (peixinho, claro!), à medida das necessidades e condicionantes do duo tertuliano, na Tasca da Nela (Vila de Darque). Cultura, poesia e fado de Coimbra, condimentados pelo enraizamento às causas e paixões do nosso Alto Minho. Troca de galhardetes e promessas de novos encontros, a expressão viva do «Clube dos Poetas Vivos».

Escrevendo numerosos artigos em vários jornais – dos quais destacamos: Jornal de Notícias, Público, Notícias da Barca, O Povo da Barca, Aurora do Lima, O Vianense, Notícias do Douro, Artes entre as Letras –, em 2001 é nomeado director do jornal centenário (efeméride em que participamos como convidado, na qualidade de Presidente da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Alto Minho) da sua terra O Povo da Barca, escrevendo editoriais em todos os números até 2006, editoriais esses que dão compor ao presente, e esteticamente bem conseguido, volume.
Pouco mais há a dizer acerca dos conteúdos desta magnífica (adjectivação propositada e merecida) obra, dado que os mesmos se reportam a várias temáticas ou incursões opinativas de quem dirigiu este órgão regional, infelizmente desaparecido dos escaparates (o que, ainda que aqui funcione a subjectividade do nosso subconsciente, poderia constituir um crime de “lesa-pátria” memorial-regionalista), circunstanciais e, quiçá, cirurgicamente oportunas e objectivas. Sem querermos ironizar pela negativa, Vassalo Abreu chega a Presidente da Câmara, debaixo de um guarda-chuva “megreniano”, cujo corolário de tal feito mereceria um editorial a preceito, no número de 14 de Outubro de 2005: «Justos vencedores e digno vencido».
Terminamos com uma citação do prefaciador desta obra, António Moniz Palme, quando se refere a José Maria Lacerda e Megre: Em Coimbra, a sua personalidade alegre e comunicativa, num ápice, converteram o “estrangeiro” numa das personalidades mais populares da velha cidade do Mondego, onde chegou e venceu, sem apelo nem agravo, mal aportou à gare da Estação Velha. Sabemo-lo assim, ainda hoje, porque “faz parte integrante das memórias da Lusa Atenas e será eternamente um adorno da Vida Académica da Universidade de Coimbra e da sua Terra da Nóbrega”.          Nec plus ultra!

(In, Notícias da Barca,  Ano XL, N.º 1253, 22 de Setembro de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-28)

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

André Fernandes Jorge: o editor que nos deu livros de luxo!

Embora a nossa predisposição para a leitura tenha vindo a ser afectada por mazelas efectivas (e/ou dolorosas) da «P.I.», sempre vamos arranjando alguma energia suplementar para a (leitura, claro!) pôr em dia. No dia 31 de Agosto de 2016 ficamos a saber através do jornal «I», Ano 7, Número 2255, p. 34-35, com chamada à primeira página, que André Fernandes Jorge, o editor da COTOVIA, ao fim de setenta e uma translações, desencarnou no pretérito dia 19 de Agosto, vítima de um cancro linfático, que o martirizava há oito anos para cá.


Através de um excelente artigo assinado por Diogo Vaz Pinto, com fotografias do editor André Jorge cedidas pela companheira e parceira na «Livros Cotovia», Fernanda Mira Barros, ficamos a saber que «editar livros como o fez André Jorge, mais do que um acto de resistência, é hoje uma forma de optimismo. Foi Tatiana Salem Levy quem, ao reagir à morte do seu antigo editor numa mensagem no Facebook, reconheceu que o seu caso constitui “uma aberração nos dias de hoje”; um editor que “publicava mesmo sabendo que o único retorno que teria seria de ordem intelectual e afectiva, pelo simples prazer de publicar autores que lhe interessavam” (...) A morte de um bom editor é sempre uma tragédia que não se percebe...» (p. 35). Plenamente de acordo, quando nos é dado saber que Fernanda Mira Barros «lembra que André Jorge não se coibiu de afastar quaisquer ilusões de hipotético sucesso comercial a alguns autores que se propôs editar. Dizia-lhes que em Portugal não iam vender nada. Aceitando ter os seus livros neste catálogo os autores deviam abandonar as veleidades de se verem como protagonistas de qualquer campanha que os vendesse como a última coca-cola do deserto» (p. 34).
A «COTOVIA» NÃO ABANDONOU O RIGOR DOS SEUS CRITÉRIOS NEM CEDEU AOS IMPERATIVOS DE MERCADO, CONFORMANDO-SE COM O PAPEL DE EDITORA DE CULTO, como CULTO era o seu editor.
Daí a qualidade sobrepor-se à quantidade: «A mesma teimosia que o impediu de se deixar abater pela doença foi o traço que se converteu na principal virtude de um catálogo que confrontou as deficiências da edição portuguesa, seguindo um plano ambicioso com a consciência de que só perdendo dinheiro se pode trazer o mundo que falta a uma língua. Quer isto dizer que os cerca de 1200 títulos publicados ao longo de quase três décadas pela Cotovia são o legado de um homem que optou por entregar a vida e a sua fortuna pessoal a algo que aproveita a todos – a verdadeira definição de luxo público…» (p. 35). Há legados que se apagam com o tempo, enquanto outros ajudam a imortalizar a sensibilidade – como houvera escrito Sterne – um dos primeiros bens, e o mais belo ornamento do homem.

Até sempre, António Fernandes Jorge!

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Alvíssaras bartolomeanas para o «Notícias da Barca»!...

«A bem da verdade, pouco se sabe acerca de Bartolomeu, salvo o facto de ser mencionado em todas as listas dos doze apóstolos que surgem no Novo Testamento…»

The Book of Saints

Perguntar-nos-ão do porquê desta dicotomia entre o S. Bartolomeu e o “Notícias da Barca”, tendo em conta possíveis contraditórios ou antagonismos. Esta nossa deambulação resulta apenas de factores naturais, desprovida de factos comprometedores e/ou provatórios. Sabemo-lo por alguns analistas que Bartolomeu, apesar de se saber muito pouco da sua vida, é identificado como sendo Nataniel Bar-Tolmai, filho de Tolmai, apresentado a Jesus pelo apóstolo Filipe. Terá evangelizado na Mesopotânea, na Pérsia e possivelmente na Índia, embora os relatos do seu horrendo martírio, preso e condenado por difundir o Cristianismo – esfolado vivo antes da decapitação –, nos transportem ao espaço físico de Derbend (Albanópolis), na Arménia Superior, nas margens do mar Cáspio. Daí, o seu ícone apresentar-se umas vezes vestido, outras vezes esfolado, com a sua pele no braço.
Para as pessoas ligadas ao esoterismo, o desprendimento da pele tem um significado de renovação, um elevado sentido metafórico. Aliás, a serpente que nós vemos como símbolo das farmácias era para os egípcios, e continua a ser para os esotéricos, símbolo de sabedoria. Ao renovar a pele, rejuvenesce-se e renova-se interiormente. Para além disso, S. Bartolomeu tem como atributo a faca com que foi esfolado, e, raramente, um demónio encadeado, como é o caso do de Ponte da Barca, enclausurado em capela do séc. XVIII, que se nos apresenta vestido, com a faca (martírio) na mão direita e o livro das Sagradas Escrituras (evangelização) na mão esquerda.


Daí compreendermos toda essa apreensão, dado que muitas são as interpretações e as conveniências emocionais. Em Esposende, por exemplo, mais concretamente na freguesia de Mar, o frango funciona como um corolário de oferta ao santo. A não ser que, à razão da prática de o povo oferecer aquilo que tinha em casa, se sobreponha a extra-sensorial simbologia da decapitação e do esfolamento como renovação, pelo sangue derramado. Mas, como poderão compreender, não vamos entrar por aí. Infelizmente, nos últimos tempos, isto tem sido indecentemente explorado, principalmente por pessoas que não estudam convenientemente de uma forma séria este fenómeno, a ponto de classificarem isto como uma frustração e um desmoralizante paganismo. Convém salientar, e para terminar, que o culto a S. Bartolomeu perde-se no tempo, encontrando-se vários elementos nesta festividade que nos reportam ao pré-cristianismo, através da água como símbolo da purificação, e ao cristianismo, através do baptismo, em muito associado à purificação. E como é inevitável, aparece sempre um pouco de superstição. Mais que não seja, o culto a S. Bartolomeu deve continuar a existir até para conservar o culto da água, um dos elementos essenciais à nossa vida. Daí, a nossa anterior sugestão de estabelecer pontes com a água (baptizados da meia-noite) e o vinho (água transformada em vinho) das Bodas de Canaã, cuja tradição liga-as a S. Simão, como sendo o jovem noivo, com capela na outra margem, situada no topo de suave ondulação de terreno inculto, pertencente a uma quinta de produção vinícola.
Sigam pois as rusgas e a pele renovada do jornal que há quarenta e um anos, se tem mantido fiel às tradições, à opinião desempoeirada e à defesa dos interesses e anseios das populações da região. Rejuvenescimento e renovação constantes, precisam-se. Tal como diria Schiller «o homem que se domina a si mesmo, liberta-se de um poder que o acorrenta, e que escraviza quase todas as pessoas». Por isso, deixem andar o demónio à solta. O demónio que está muitas vezes dentro de nós.
      Um bem-haja a ambos: S. Bartolomeu (em representação do povo) e «Notícias da Barca», seu arauto!

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1252, 19/24 de Agosto de 2016, p. 18 - Crónicas do Átrio e do Lethes-27)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

«Agramonte: ou o mundo astral dos profetas» (2012) e os incêndios nos tempos de hoje!


Lá ao longe a floresta ardia. Sentia-se o cheiro a eucalipto queimado. O monte de S. Lourenço parecia um inferno. Não é que estivessem motivados para divagarem – com a construção e a força das palavras – por entre os escombros e as desgraças alheias, que sentissem alguma apreensão acerca da catástrofe reinante no país. Mas, também não podiam ficar indiferentes ao manifesto espírito de revolta (com razão) de quem sente na pele a apatia dos governantes, soletradores de promessas em tempo de “campanhas” e muito pouco fora delas. O país estava a arder, quando haviam sido prometidos planos económicos e revigoradas “Protecções Civis”, mão pesada para os criminosos e uma maior segurança das riquezas naturais, quase os únicos garantes de subsistência da maioria dos portugueses. E ainda havia quem achasse estranho que, no meio de tanta desgraça (com perda de pessoas e bens), houvesse alguém que apelasse a vinda de Salazar!


Era ali que a democracia estava em perigo. A desorientação era total. O planeamento do território, o aproveitamento dos recursos naturais, os incentivos à economia rural – que bem poderia passar pela limpeza e conservação das matas – davam lugar à preocupação economicista do pagamento do déficit e das balanças económicas impostas por quem cresce à custa das desgraças alheias. Salazar matava-nos à fome, mas mantinha as matas limpas!... – dizia um dos muitos revoltados, face à inércia dos democratas de hoje, que nos vão enganando com a barriga cheia, em deficiente alimentação e de costas viradas às reais potencialidades económicas do país. Isaías e Anne tinham consciência de que a democracia estava em perigo se mantivessem este tipo de política de subserviência aos interesses económicos de outros, aqueles que se estão “borrifando” para a produção leiteira, florestal ou mesmo industrial dos portugueses.
Para eles, os incêndios eram o corolário da inércia dos nossos políticos.
Não nos venham dizer que – como afirmou aquela senhora dirigente de um parque natural – o mal reside no povo que não cuida das suas matas, marcada espectaculosidade dos seguidores de “Pilatos”... Bem que podem lavar as mãos na água barrenta das cinzas – murmurou Isaías, contemplando o horizonte devastado pelas chamas. 
Isaías! Mas, afinal, quem é que pagou aos portugueses para cortar as suas vinhas, abater as cabeças de gado para produzir menos leite e deixar crescer mato em campos de cultivo? Era de tradição “astrar” as cortes com o mato roçado. A biodinâmica perdeu-se com o estrangulamento perpetrado pelas economias ditatoriais, onde o plástico é alimento.


O país estava a arder e a democracia em perigo. Teria que haver coragem para reconhecer as fragilidades e as incompetências. Serenamente!
Ainda ambos debatiam, entre grupos de amigos, a tragédia que avassalava – e tem avassalado – o país, quando leram em bom tom num matutino nacional que o arq.º Ribeiro Teles alertava para o facto de que seria um erro calamitoso se a reflorestação das áreas ardidas fosse feita como antes. Essa figura pública, tal como lhe era peculiar, punha o dedo na ferida, a ponto de reforçar as suas modestas opiniões.
Se alguém poderia ficar escandalizado com as afirmações proferidas na Tasca do Zé do Inácio, de que os incêndios são corolário da inércia dos políticos, depressa se molestariam com o modelo defendido pelo arq.º Ribeiro Teles, onde a floresta ideal deveria ser uma mata completamente integrada no sistema agrícola. A sua “teoria” faria aumentar ainda mais a indignação e a “revolta” daqueles que pensavam de igual forma: Todas estas regiões que são hoje pinhal e eucaliptal, que têm aldeias e pessoas a viver dentro, não devem continuar a ser exclusivamente uma floresta. Era o sinal dado por uma das mais avalizadas – senão a mais avalizada – vozes do “Ambiente” em Portugal. As palavras acabaram por atenuar o pressuposto sentimento de revolta pela interrogada afirmação de quem havia pago aos portugueses para cortar as suas vinhas; abater as cabeças de gado para produzir menos leite; e deixar crescer mato em campos de cultivo...


Isaías e Anne tinham a plena convicção de que o ordenamento do território é da responsabilidade dos políticos, articulando com gente que sabe e tem, verdadeiramente, sensibilidade para estas melindrosas questões. Poder-se-ia discordar da expressão viva dos sentimentos de revolta, mas não era possível ficar indiferente quando vozes discordantes lhes provocavam alguma culpabilidade da causa-efeito dos erros cometidos. O arq.º Ribeiro Teles achava – e também eles achavam – que a floresta tem que ser simultaneamente agrícola: A mata deve ocupar as encostas mais declivosas; os vales devem ser aproveitados para a agricultura local; e os solos planálticos devem ser reservados para uma agricultura tipo vinha ou olival. Os matos devem, por sua vez, ser aproveitados também para a pecuária, bem como para a produção do mel, aguardente de medronho e, ainda, para as plantas aromáticas, que podem dar lugar a uma indústria de perfumes – diria Mestre Ribeiro Teles. Anne e Isaías só não entendiam o porquê de tanta indignação quando, convictamente, acreditavam que a biodinâmica perdera-se com o estrangulamento perpetrado pelas economias ditatoriais, onde o plástico é alimento. Por isso, persistiam na afirmação resultante da reflexão de que, enquanto se mantiver este tipo de política, a democracia estará sempre em perigo.

(In, SILVA, Porfírio Pereira da - Agramonte: ou o mundo astral dos profetas. Porto: Papiro Editora, 2012, p. 61-63)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

«Luzes de muito brilho: Figuras e Temas Limianos» em Cláudio Lima!...

«Ginzo do Lima, a raiana,
Da Galiza amena aldeia,
Onde o rio principia
A sua vida serrana,
O nome deu ao mortal
Que, longe da penedia,
Vem morrer, beijando a areia
Às praias de Portugal…»

António Ferreira

À parte de alguns devaneios menos comedidos no “acto solene” da apresentação do mais recente livro de Cláudio Lima, «Luzes de muito brilho: Figuras e temas limianos», para os quais em nada podemos assacar a este magnífico escritor e poeta, temperamos a nossa circunstancial indisposição (Ó maldita hérnia-discal!) com a certeza de que se “nuestros hermanos” fechassem o caudal do Lima – tamponando-o a conta-gotas –, a partir da Barca e até à foz estaríamos a beber da água do Vez e, na ponta final, quiçá, da Ribeira de S. Simão da Junqueira de Mazarefes, que foi Couto com posse acrescida em Terras de Paradela, banhadas pelo mesmo rio que nos viu nascer, apesar de a partir das três translações passarmos a beber água do “Bengo”.
Devaneios nossos também à parte, jamais nos deixaremos condicionar por imperativos de acantonamento, principalmente quando os escritores, ao atingirem determinado patamar, se extravasam para lá da condição de “meninos do rio”. Esse é o caso de Cláudio Lima, o menino Manuel da Silva Alves, de Calvelo, que cedo se aventurou por outras paragens até atingir a maturidade intelectual e prosperidade na adversidade, resignando-a. E se Montapert o disse que «o homem é corpo, intelecto, espírito, e tudo isso deve evoluir paralelamente para uma vida bem-sucedida e equilibrada», Cláudio Lima, porque não vive da ociosidade, já há muito que se libertou da ferrugem que consume mais que o trabalho. Isto, se tivermos em linha de conta que a ociosidade é como a ferrugem. Tal como um dia escreveu José Hermano Saraiva, «uma chave de que todos os dias nos servimos, anda sempre limpa e polida», Cláudio Lima é essa chave que, a par de outras, não necessita de rotulações maiores para ser um dos maiores entre os maiores. Sancta simplicitas!


Falando agora do «LUZES DE MUITO BRILHO: Figuras e Temas Limianos», estaremos em dizer que temos entre mãos mais uma magnífica – estético-literariamente falando – obra de Cláudio Lima. Ainda que o seu conteúdo seja o resultado da recolha de uma série de pequenos textos de ensaio ou intervenção, proferidos e/ou publicados “em vários momentos e afectos a várias celebrações, tendo por nexo estrutural o simples facto de abordarem temáticas limianas. Como configuram uma sequência dos trabalhos coligidos em Um rio de muitas luzes (2005) confiro-lhes agora um título de feição sequencial: Luzes de muito brilho.” – citamos de “breve nota” do autor.
A metáfora da LUZ, com capa (extensiva à contracapa) extraordinariamente bem conseguida, do grande artista da imagem Amândio Sousa Vieira, confere-lhe o lado místico ou metafísico, à boa maneira platonista: «o Bem está para a inteligência e para o inteligível, no mundo da realidade inteligível, como o sol para a vista e para o visível, no mundo da realidade visível» (República, 508c). As alegorias da linha e da caverna convergem no aprofundamento da metáfora da LUZ, sendo que em Cláudio Lima funciona como fonte ou factor de conhecimento, de memória e de expressão (ou manifestação escrita) da verdade. Preferimos a “Luz de muito brilho” à metáfora dos “faróis” em Baudelaire.
Apesar de Vasco Rodrigues de Calvelo, Domingos Tarrozo, António Feijó, Campos Monteiro, Queiroz Ribeiro, João Marcos, António Manuel Couto Viana, Luís de Sousa Dantas, entre outros, serem os faróis que brilham acima do tempo e que continuarão eternamente sendo objecto de admiração, de estudo e de inspiração para todos os artistas, Cláudio Lima imprime-lhes uma Luz própria, peculiar até, num ritmo aliciante e uma linguagem profundamente melodiosa. Sim, concordamos com expressão de “autor imparável”, e ainda que nos tornemos repetitivos no decalque, fazemos nossas as palavras escritas de Maria de Lourdes Brandão: «Cláudio Lima escreve com o coração. O acaso fez com que nascesse em Ponte de Lima. É português, nortenho, limiano até à medula, um homem fortemente ligado às suas raízes…». Plenamente de acordo. A sedução, a nostalgia, o amor profundo à terra que o viu nascer e aos vultos que lhe dão corpo, palpitam e eternizam-se através da saudável (porque bem construída, escorreita) escrita de Cláudio Lima. «Faça-se a luz!» E a luz foi feita (2 Cor. 4, 6). Venham outras tantas “luzes de muito brilho”.
         NOTA MÁXIMA!

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1251, 30 de Julho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-26)

segunda-feira, 25 de julho de 2016

«Histoire de La Magie du Monde Surnaturel» e as ilustrações de Émile-Antoine Bayard (1837-1891)



















Émile-Antoine Bayard, nasceu em Ferté-sous-Jouarre, França, a 2 de Novembro de 1837 e morreu no Cairo, em Dezembro de 1891. Foi um pintor, decorador, designer e ilustrador francês. Estes são principalmente desenhos de controlos editoriais que detêm hoje a atenção dos fãs. Sem ser tão corajoso quanto Paul Gavarni, soube harmonizar gestos para expressões faciais, fazendo-a personagens particularmente expressivos.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Ritos de passagem e liminaridade!

«Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela…»

Claude Lévi-Strauss

Segundo Victor W. Turner, a Liminaridade é a passagem entre o “status” e estado cultural que foram cognoscitivamente definidos e logicamente articulados. Apesar de expressar uma certa convicção de ambiguidade e de indeterminação no que concerne aos seus atributos, o mesmo autor afirma que os mesmos exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, nomeadamente naquelas várias sociedades que, precisamente, ritualizam as transições sociais e culturais: Assim, a liminaridade frequentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do sol e da lua.
É o próprio Victor W. Turner que nos remete para Van Gennep, quando este definiu os «Ritos de Passagem» como os ritos que acompanham toda a mudança de lugar, estado, posição social e idade . Por exemplo, nessa passagem de um território para outro, Van Gennep considera que qualquer que passe de um para outro acha-se assim, material e mágico-religiosamente, durante um tempo mais ou menos longo em uma situação especial, uma vez que flutua entre dois mundos. Encontramos assim entidades liminares, entre outros, em neófitos nos ritos de iniciação ou de puberdade, de casamento, de fertilidade, de parto, de investidura, de cura e de morte.


Em Arnold Van Gennep, o esquema completo dos ritos de passagem admite em teoria ritos preliminares (separação), liminares (margem) e pós-liminares (agregação). No fundo, uma trilogia que passa pelos estados de separação do mundo de que alguém se vai separar, pelo momento de transição ou de liminaridade e, por fim, pelo momento de agregação. Roberto da Matta, na introdução a obra «Ritos de Passagem» revela-nos que a grande descoberta de Van Gennep é que os ritos, como o teatro, têm fases invariantes, que mudam de acordo com o tipo de transição que o grupo pretende realizar. Se o rito é um funeral, a tendência das sequências formais será na direcção de marcar ou simbolizar separações. Mas se o sujeito acaba por mudar de grupo (ou de clã, família ou aldeia) pelo casamento, então as sequências tenderiam a dramatizar a agregação dele no novo grupo. E conclui dizendo que se as pessoas ou grupos passam por períodos marginais – nos quais se incluem a gravidez, o noivado, a iniciação, etc. – a sequência ritual investe nas margens ou na liminaridade do “objecto em estado de ritualização”. De facto, em muitas sociedades tradicionais, a mudança de estatuto – de que tomamos como exemplos, a transição da fase de jovem para adulto e, deste, para o casamento – pode revestir-se de um conjunto de rituais de iniciação, cuja complexidade varia de sociedade para sociedade. Apesar das diferenças culturais, o processo de passagem tem sempre como objectivo um conjunto de aprendizagens e provas, tendente à ruptura com o estado anterior. Outro dos exemplos que subsiste até aos nossos tempos é o casamento: É por isso que o casamento se reveste sempre de uma forma institucional, primeiramente religiosa, depois laica, e implica uma “sacralidade”. Segundo Jean Maisonneuve, nas ditas sociedades “arcaicas e tradicionais”, os ritos de separação visavam manter um certo equilíbrio ao compensarem a perda da pessoa que abandonava o seu clã ou a sua família. Aqui funcionavam as práticas de «“resgate”, de presentes, prestações ou recepções a favor do grupo que perde um dos seus membros».
Por outro lado, Arnold Van Gennep chama-nos à atenção para o facto de que ao atravessarmos uma «soleira», significa ingressarmos num mundo novo. Ainda segundo ele, tal é o motivo que confere a esse acto grande importância, nomeadamente e a título de exemplo, nos cerimoniais de casamento, de adopção, de ordenação e dos funerais. Para este autor, os ritos realizados na própria «soleira» são ritos de margem: como rito de separação do meio anterior há ritos de «purificação» (a pessoa se lava, se limpa, etc.), em seguida ritos de agregação (apresentação do sal, refeição em comum, etc.). Concluindo o seu raciocínio, os chamados ritos da soleira, não são por conseguinte ritos «de aliança» propriamente ditos, mas ritos de preparação para a aliança, os quais são procedidos por ritos de preparação para a margem.
Para Claude Lévi-Strauss, por exemplo, a sociedade é feita de indivíduos e de grupos que se comunicam entre si. Entretanto, e ainda segundo ele, a presença ou a ausência de comunicação não poderia ser definida de maneira absoluta, dado que mais do que fronteiras rígidas, trata-se de limiares, marcados por um enfraquecimento ou deformação da comunicação, e onde, sem desaparecer, esta passa a um nível mínimo.
Congratulamo-nos com o propósito do Município Barquense em querer sair dos ritos de soleira e expandir os ritos de preparação para a aliança, nomeadamente quando sabemos da investigação em curso para despoletar o património imaterial da Festa de S. Bartolomeu, partindo dos “ritos de preparação para a aliança, os quais são procedidos por ritos de preparação para a margem”.
        De facto, vale a pena lutar pelas referências multidimensionais, de que são exemplo, entre outras, os “baptizados da meia-noite”. Estabelecer pontes pode muito bem ajudar a descodificar a “certeza” de que a mesma lógica se produz no pensamento mítico e no pensamento científico. E nunca esquecer: Scribitur ad narradum, non ad probadum!

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1250, 20 de Julho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-25)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A sociedade humana e o conceito de justiça distributiva!

«A questão política essencial é a da justiça das quotas de reserva de cargos para os quais é necessário ser membro de determinado grupo, embora, presumivelmente, tal não constitua qualificação suficiente…»

Michael Walzer

Da leitura que fizemos – e continuamos a fazer – de Michael Walzer, nomeadamente da sua obra mais emblemática «As Esferas da Justiça», concluiríamos que numa sociedade em que os significados sociais se encontram definidos e hierarquizados, a justiça deveria vir em auxílio da desigualdade, e a sociedade humana reunir-se para compartilhar, dividir e trocar. E quando falamos do conceito de justiça distributiva referimo-nos ao ser, fazer e ter, quer ao nível da produção quer ao nível do consumo, abarcando a identidade e a posição social, a terra, o capital ou os bens pessoais de cada um de nós. Por isso, é que identificamos diferentes ideologias e diferentes combinações políticas perante esta realidade. Dado que nunca existiu um meio universal de trocas, também não há um único acesso ao universo de combinações e ideologias distributivas.
Apesar de o dinheiro ser ao longo da aventura humana o meio mais comum de troca, identificamos vasta impotência das autoridades públicas em assegurar uma regulação total na sociedade. Além de redes familiares e mercados negros são sobejamente conhecidas as alianças burocráticas e organizações políticas e religiosas clandestinas. Segundo Michael Walzer, o particularismo da história, da cultura e da qualidade de membro constitui, cada dia mais, este pluralismo complexo que condiciona a construção humana da justiça. Sendo certo que os bens objecto da justiça distributiva são bens sociais, estamos perante um cenário onde as mulheres e os homens possuem identidades concretas devido ao modo como concebem e criam e depois possuem e utilizam os mesmos bens sociais. Cada um deles determina os seus bens primários ou básicos e os universos morais ou materiais em que caminham ou sonham.


A história testemunha-nos que o significado dos bens determina ou orienta a deslocação humana. Daí, que as distribuições, justas ou injustas, e os respectivos significados sociais se alteram com os tempos. Na teoria, o poder político será, em democracia, o bem predominante, passível de ser convertível em qualquer modo que os cidadãos queiram. À partida todos nos devemos concentrar na atenuação do predomínio e não, ou não essencialmente, na destruição ou limitação do monopólio. Tal como a livre troca também o merecimento nos dá impressão de ser tanto ilimitado como pluralista. Todavia, sabemos que o merecimento é uma pretensão sólida, mas que reivindica um juízo difícil e só em condições muito excepcionais potenciará distribuições específicas.
A história também nos demonstrou que cada época se caracterizou por um quadro ou quadros de um mundo social especial, onde os significados sociais se sobrepõem e aderem uns aos outros. Temos a noção de quanto mais perfeita é essa adesão, menos possibilidade teremos de pensar sequer na igualdade complexa, dado que todos os bens se apresentam, em república, como “coroas e tronos numa monarquia hereditária”. E aqui falámos do contraditório e da negação de uma república hierarquizada.
A igualdade complexa exige a defesa dos limites; funciona por meio da diferenciação dos bens, assim como a hierarquia funciona por meio da diferenciação das pessoas. A política presente é produto, ainda que o tentem negar, da política passada, criando um cenário inevitável para a apreciação da justiça distributiva, quando a única alternativa plausível à comunidade política é a própria Humanidade, a sociedade das nações, o mundo inteiro. A providência comunitária é importante porque nos mostra o valor da qualidade de membro. Sob a égide da cultura, religião e política é que todas as outras coisas que carecemos se transformam em necessidades socialmente reconhecidas e assumem uma forma histórica e definida. O mais vulgar na história das lutas populares é a exigência, não da libertação, mas sim do cumprimento: que o Estado satisfaça os objectivos que afirma satisfazer e relativamente a todos os seus membros. A comunidade política cresce por invasão sempre que grupos até aí excluídos, um após outro, exigem o seu quinhão de segurança e previdência.
A justiça distributiva na esfera da segurança e da previdência tem um duplo significado: em primeiro lugar, reporta-se ao reconhecimento da necessidade e, em segundo, ao reconhecimento de qualidade de membro. O direito que os membros podem legitimamente reivindicar é de carácter mais geral. Assim, nenhuma comunidade pode permitir que os seus membros morram de fome, havendo víveres disponíveis para os alimentar. A previdência tem geralmente como objectivo abolir o predomínio do dinheiro na esfera da necessidade, assim a participação activa dos cidadãos em matéria de previdência, e também de segurança, tem como objectivo assegurar que o predomínio do dinheiro não venha a ser substituído pelo predomínio do poder político.
Segundo o Eclesiastes o dinheiro paga todas as coisas. Karl Marx apelidou-o de alcoviteiro universal, dada a propensão que revela para ajustar uniões escandalosas entre as pessoas e os bens e por dizimar todas as barreiras naturais e morais. O seu endeusamento é a alavanca suprema da sociedade capitalista.
Pena é que os políticos – detractores e coveiros da nobre arte de fazer política – leiam muito pouco, mas se achem no direito de se sentirem iluminados pelo predomínio do dinheiro na esfera da necessidade. E falam de economia, excluindo a participação activa dos cidadãos em matéria de previdência e segurança. O dinheiro (em papel), esse, está em “offshores” e quase todos os dias lá vai saindo da cartola mais um “presumível inocente” até ao seu julgamento e condenação pelas esferas da justiça. É apenas um arguido! – dizem-nos com alguma safadeza.     
        Para terminarmos, uma questão se coloca: – Que esferas da justiça, para a Europa e o Portugal de hoje?

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1249, 9/10 de Julho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-24)

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Spieghel der Zeevaert (O Espelho da Navegação)


Frontispício da obra Spieghel der Zeevaert (O Espelho da Navegação), um compêndio de arte de navegação escrito pelo piloto holandês Lucas Janszoon Waghenaer e publicado em 1579 (Biblioteca Pública de Londres).

sexta-feira, 1 de julho de 2016

«Do cavalo e da jovem rapariga» à hermenêutica de uma Europa em desconstrução!

«De entre os Códridas já não se elegiam reis, por se considerar que se tinham tornado efeminados e brandos. Hipómenes, um dos Códridas, quis afastar esta acusação. Tendo surpreendido um amante com a sua filha Leimônê, matou-o amarrando-o ao carro com sua filha, e a esta encerrou-a com um cavalo até que morreu…»

Aristóteles

Um dia propuseram-nos um exercício, onde nos confrontamos com dois pequenos excertos dos textos de Ésquines (Contra Timarco) e de Aristóteles (Fragmento da Constituição dos Atenienses), e por acharmos que, tal como afirmaria Richard E. Palmer, em hermenêutica o processo de interpretação “vai de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente ou escondido ”, aventamos a hipótese de o objecto de interpretação, neste caso concreto os dois pequenos textos, poder ser constituído por símbolos mitológicos, sociais ou literários.
Inicialmente, espelhando uma certa desarticulação de raciocínio, só porque fomos iludidos pelo cenário, desprezamos o conteúdo ou o tema nevrálgico de tais “construções literárias”. Na altura, tomaríamos a interpretação certa, envoltos na máxima grega «Antes a Morte que a Desonra», sendo que o castigo corporal era encarado, na antiga Grécia, como modelar. Os condimentos que nos poderiam conduzir a tal interpretação estavam lá, mesmo quando o fizemos – ou procuramos fazer – à luz da história, sem esquecermos o tempo e o espaço. Mas, sem querer, apenas estávamos a dissimular uma construção interpretativa de “pescadinha de rabo na boca”. Apesar de termos tomado em linha de conta o sentido figurado ou metafórico, levados pelos conceitos do exemplo moral, numa Grécia da sabedoria, da beleza e da justiça, dado que as mulheres estavam sujeitas a restrições – eram bastante dominadas pelos maridos, pais ou irmãos e raramente participavam na política ou em qualquer outra forma da vida social –, só posteriormente nos apercebemos do nosso erro de raciocínio.
Enquanto nos enredávamos na teia “Do cavalo e da jovem rapariga”, sentíamos – ou ficaríamos com a sensação de – que, como uma centelha, a verdadeira “jurisprudência” do zeloso e guardião pai, da virgindade da jovem rapariga, ocultava algo bem mais grave do que a simples disciplina exemplar do castigo corporal, pela agravada desonra perpetrada por sua casta filha. Os termos, quer num quer noutro texto – “...ao descobrir a sua própria filha seduzida e que não tinha guardado a sua virgindade com decoro...” (Contra Timarco) ou “Tendo surpreendido um amante com a sua filha...” (Constituição dos Atenienses) – levar-nos-iam a pensar, ainda que erradamente, na exemplaridade moral, tendo em conta que na Grécia Antiga a violência fazia parte da sua cultura e, quiçá, do seu subconsciente. A acidentalidade do espaço geográfico; a luta pela hegemonia; as querelas locais – de que é exemplo o duelo entre Ésquines e Demóstenes –; a expressão e sobrevivência dos próprios deuses, ainda que simbolizados pelas forças da Natureza, ostentavam também os sentimentos bons ou maus dos seres humanos – para os Gregos, todos os homens se transformavam em deuses logo após a morte –, revestindo-se em histórias mitológicas, ora poéticas e graciosas, ora absurdas e pueris, ora imorais e grosseiras; e a própria “Tragédia Grega”, levar-nos-ia a equacionar a própria violência como factor preponderante para a interpretação dos textos.


É com base no sentido de interpretarmos as palavras, leis, códices ou textos sagrados, que utilizamos a hermenêutica, porque se nos configura como um método afastado da arbitrariedade interpretativa romântica e da redução naturalista. Abominamos o autoflagelo e o assoberbado pacifismo do sofrimento como expiação. Toda (ou quase toda) a gente sabe que escrevemos uma deambulação trágico-literária, «Baliza Trágica de Um Naufrágio», que ao passar pela “mãos” de uma prestigiada editora, chegaríamos a entender a resposta à nossa proposta da sua publicação, e que registamos com apreço: Conquanto comece com uma proposta de romance, opta depois o autor por um colóquio com vários amigos, onde são debatidas múltiplas questões de teor filosófico, político e social, com recorrência a uma erudição tão rica quanto vasta, que atravessam vários períodos da história contemporânea e actual, incluindo a do nosso país. / Pese embora o interesse de todas elas, põem-se-me muitas dúvidas quanto à receptividade que o livro poderá ter junto de um público que na sua grande maioria está mais virado para uma literatura de evasão que não exija muito da sua massa cinzenta. / É ver o êxito que têm os livros que vão de encontro a essa preferência, como é o caso do José Rodrigues dos Santos... – Assim não, obrigado. Antes escritor da aldeia, sem rosto, que mercenário… bebendo nas águas do Lethes, observando, lendo e escrevendo: «Gaspar Malheiro, conhecendo bem João Rosas como bem conhece e admira, partilha da sua bem fundamentada ideia de que a tarefa ciclópica para mudar o paradigma dessa “desconstrução”, será preciso incomodar milhares de tecnocratas e sobretudo políticos cuja razão de ser – e rendimentos – advêm da União Europeia tal como existe hoje. – Mas o processo de desconstrução europeia é inevitável e o país melhor preparado para liderá-lo é a Grã-Bretanha, uma vez que sempre manifestou um saudável cepticismo em relação ao construtivismo continental… – afiança João Cardoso Rosas» (In, p. 332 do Baliza Trágica de Um Naufrágio). E não somos videntes…
Esquecendo-nos por completo do cavalo e da jovem rapariga, assistimos serenamente à saída da Grã-Bretanha da União Europeia, mantendo a televisão em “off”, face às incursões dos malogrados “objectores de consciência” (com prognósticos no fim do jogo) e aos ignorantes, e/ou ajumentados, economistas e políticos de pacotilha. Tal como questionaria Eça de Queiroz, em 1891: Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: – mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não – pelo menos o Estado não tem: – e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior – e sem cura –, sentimos algum cansaço e cepticismo na mudança das fraldas.
Afinal, resolvemos voltar à hermenêutica “do cavalo e da jovem rapariga”, porque acabamos por descobrir que a nossa própria filha Europa foi seduzida e não soube guardar a sua virgindade com decoro… Scribitur ad narrandum!

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1248, 30 de Junho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-23)