terça-feira, 5 de setembro de 2017

PONTE DE LIMA HÁ CEM ANOS …NO CENTENÁRIO DA MORTE DO CONDE DE SANTA EULÁLIA!

Estamos em Maio 1917, e tal como acontecia um pouco por todo o país e por terras de França, em Ponte de Lima, os acontecimentos da Grande Guerra iam-se sucedendo como um turbilhão em volta de um abismo. A imprensa alemã dá conta da preocupação da série de fracassos que vem sofrendo o seu exército na campanha da primavera no ocidente, acerca de cujos êxitos se tinham concebido em todo o império as mais belas esperanças. Na altura, não havia um único crítico militar alemão que não reconhecesse a grande superioridade dos aliados tanto em material de guerra como em força numérica das tropas de ofensiva. Contudo, a “guerra infame”, como os jornais a classificavam, ainda estava longe de ser resolvida.
É precisamente neste período primaveril, flagelado pela guerra, que os jornais regionais do Alto Minho[1] dão conta do passamento do escultor limiano Aleixo de Queiroz Ribeiro, Conde de Santa Eulália:  

Na egreja de Refojos, concelho de Ponte do Lima, realisou-se na quarta-feira o funeral do sr. conde de Santa Eulalia, assistindo grande numero de pessoas de categoria social.
Em differentes turnos pegaram ás toalhas do féretro os srs. dr. Agostinho A. Figueiredo Lobo e Silva, dr. Gaspar Malheiro Pereira Peixoto, João Teixeira de Queiroz e Vasconcellos, dr. Francisco Teixeira de Queiroz, dr. Francisco Lacerda, José Candido da Silva Ramalho, Francisco Antonio do Valle, Antonio J. Cerqueira de Souza, João de Brito Lima, Gonçalo de Abreu Coutinho, Antonio de Abreu Calheiros de Noronha Pereira Coutinho (Paço de Victorino), dr. Francisco de Magalhães, Gaspar Castro, Antonio Costa Pereira Lacerda.
A chave da urna foi entregue ao snr. dr. Antonio Homem da Silveira Sampaio e Mello.
Entre as varias corôas e bouquets depostas no ataúde destacava-se um lindo ramo de flôres das exmas. filhas do sr. dr. Antonio Homem da Silveira Sampaio e Mello.
Este respeitável cavalheiro, suffragando a alma do finado mandou distribuir 20$000 réis pelos seguintes estabelecimentos de beneficencia de Ponte do Lima: Asylo Camões e Associação de Caridade 7$000 a cada, e Asylo D. Maria Pia 6$000[2].


Após uma longa e torturante enfermidade, torturado “há cerca de três meses por uma doença incurável”[3], faleceu a 6 de Maio de 1917, com quarenta e nove anos de idade, na sua quinta de Refóios do Lima, Aleixo de Queiroz Ribeiro de Sotto-Mayor d’Almeida e Vasconcelos[4], Conde de Santa Eulália. «Reza a lenda que o seu cão apareceu morto, na madrugada seguinte, à porta do quarto onde o corpo jazia em câmara ardente. O enterro teve lugar a 10 de Maio, no cemitério de Refojos do Lima e, segundo os jornais da época, a ele assistiram mais de oitenta eclesiásticos, bem como um grande número de pessoas oriundas de Ponte de Lima, de Viana, dos Arcos de Valdevez e de Ponte da Barca, no que foi considerado pelo Jornal de Vianna uma “eloquente manifestação de saudade prestada à memória de tão ínclito cidadão”».[5]
Dando conta da sua morte, os jornais regionais penalizavam-se por este triste acontecimento e lamentavam o desaparecimento do homem que, o sucumbindo em idade ainda não avançada, teve uma vida agitada, invulgar, entretecida de incidentes originais e de lances de larga notoriedade.
Sem querermos fazer deste pequeno apontamento um trabalho exaustivo, e porque tal “atrevimento” não se configuraria (ou ajustaria) ao propósito desta publicação “anunciadora” das Feiras Novas, apenas referiremos algumas notas, muito curtas, dadas à estampa pelos jornais regionais, quando salientam que Aleixo de Queiroz Ribeiro, ainda muito moço, sentindo em si uma vocação irresistível, dedicou-se apaixonadamente à escultura. Com leves noções desta arte maravilhosa produziu desde logo alguns trabalhos que surpreenderam pelo mérito da modelação e pela firmeza e arte bem cuidada do cinzel. “Que nos lembre”[6], a sua primeira revelação de artista, após alguns trabalhos preliminares, foi nesta cidade (Viana do Castelo) a feitura em gesso do busto de Luiz Pinto de Mesquita Carvalho, então coronel de Infantaria, que morreu general reformado. Depois disso, Aleixo de Queiroz Ribeiro retirou para Paris, onde frequentou a Escola de Belas Artes. Ali produziu trabalhos que sobre ele chamaram imediatamente a atenção dos meios artísticos.
Entre esses trabalhos destacaram-se um busto de um imperador romano e o medalhão em bronze do imperador Menelik, da Abissínia, que pessoalmente foi oferecer ao Negus então triunfante pela sua retumbante vitória sobre os exércitos italianos[7].
Regressado a Portugal fez, gratuitamente, e por apreço pela cidade de Viana do Castelo, a estátua de bronze, representando o Coração de Jesus, que ali se ergueu em modesto pedestal no alto de Santa Luzia. E da obra, com laivos dos trabalhos do ilustre Rodin, especialmente ao semblante da imagem, que é deveras notável, foi na altura muito discutida pelos críticos provocando grandes controvérsias quando esteve exposta e Lisboa antes de ser expedida para Viana do Castelo.
Depois entrou no concurso para o monumento ao grande homem da ciência Dr. Souza Martins e o seu projecto foi adoptado unanimemente pelo júri.
Executado o trabalho, foi inaugurada solenemente a estátua. Mais tarde, após uma série de críticas percucientes e duma guerra a outrance, que para ser justa deveria ter sido muito antes, a estátua foi condenada e demolida, sendo substituída pela que actualmente se ergue no mesmo local.
Desgostoso com este facto Aleixo de Queiroz Ribeiro resolveu sair do país e, em 1902, foi para os Estados Unidos da América, para trabalhar na exposição de St. Louis Missouri, realizada em 1904. Em 1905 foi nomeado cônsul de Portugal em Chicago e em 3 de Setembro de 1908 foi-lhe atribuído pelo Rei D. Manuel II o título de Conde de Santa Eulália. Ali continuou o trabalho, mas o seu casamento com uma senhora americana, Sarah Elizabeth Stetson, viúva do multimilionário e filantropo John B. Stetson, dono da maior fábrica de chapéus do mundo, a Stetson Hats & Company, distinta e respeitável, possuidora de uma enorme fortuna, distraiu-o da arte, que ele abandonou por completo, vindo então muitas vezes a Portugal, onde adquiriu vastas propriedades, dedicando-se afanosamente à lavoura, e à criação e mantença duma caudelaria, onde por vezes teve magníficos e custosos exemplares. A energia do seu temperamento e um tal ou qual desequilíbrio mórbido das suas faculdades, que eram notáveis, deram uma vida tempestuosa a este homem que poderia gozar uma existência despreocupada e feliz, invejável sobre todos os pontos de vista.

Assim morreu ainda novo, quase isolado numa aldeia, longe da sua respeitabilíssima esposa, que a estas horas, segundo nos consta, vem em viagem da América, de onde saiu, apesar dos enormes riscos da viagem, para vir acompanhar o marido na sua doença, logo que dela teve notícia.
Como se vê, por isto que aí deixamos escrito muito à pressa, morreu alguém, um homem que não era vulgar nem banal, um artista notável e um cidadão que para os seus compatriotas teve sempre carinhos e prelecções especiais, e tanto que podendo na América, em plena opulência e sem cuidados, no egoísmo que tantos teriam, veio encerrar-se na linda região que lhe foi berço e onde agora caiu prostrado pela morte, depois de uma longa e trabalhosa agonia[8].

Segundo José Luís Branco, Aleixo de Queiroz Ribeiro foi sepultado no centro do cemitério da freguesia de Refoios, donde foi trasladado para a sepultura do antigo feitor da Casa da Boavista, aí por 1989.
Em fins de Julho de 1998, procedeu-se a uma terceira trasladação para nova sepultura, adquirida pelos familiares que, vindos de diversas partes do País e dos Estados Unidos da América, se juntaram para lhe prestarem sentida homenagem póstuma, em que o pároco da freguesia, Mons. José Ribeiro, também esteve presente[9].
A sepultura térrea está coberta por uma laje, onde se salienta uma cruz da mesma peça com uma configuração singular e, à sua cabeceira, pode ler-se, gravada numa lápide, a seguinte legenda:

   N      +      F

1868         1917

HOMENAGEM PÓSTUMA
A ALEIXO DE QUEIROZ RIBEIRO
DE SOTTO MAYOR D’ALMEIDA VAS
CONCELOS, CONDE DE SANTA + …
EULALIA, NOTAVEL ESCULTOR E
DIPLOMATA, FEITA EM REFOIOS DO
LIMA EM 1998 PELOS SEUS FAMI
LIARES DAS CASAS DA BOAVISTA
ONDE NASCEU, DA GLORIA ONDE
VIVEU, DE BOA VIAGEM, COUTADA
DO CRUZEIRO, DA LOUREIRA, E DE
CA, BURGO BOSTON (U.S.A,) CA BOCO

Um facto curioso a registar é-nos revelado pela “pena” do nosso prezado amigo Amândio Sousa Vieira, a propósito das excentricidades de Aleixo de Queiroz Ribeiro, tendo por base uma pequena notícia inserida no jornal “O Commercio do Lima”, dando conta da festa de casamento do Conde de Santa Eulália, em 1908, da qual reproduzimos um pequeno excerto: …Barcos vistosamente embandeirados sulcavam as águas serenas do rio, transportando, de uma para a outra margem, alegres ranchos de raparigas das aldeias próximas, domingueiramente vestidas, que vinham trazer à festa a nota alegre e vibrante das suas danças e cantares… / Às quatro horas da tarde, no seu tirado por uma magnífica parelha de raça Alter, chegaram os Senhores Condes de Santa Eulália. Neste momento a excelente banda de S. Martinho da Gandra, que estacionava no cais, tocou o Hino Nacional… num barco instalou-se a banda de música e enche-se ainda outro com a alegre tripulação das graciosas cantadeiras.[10]
 Para terminarmos, anotemos algumas curiosidades registadas por Manuel de Queiroz, arquitecto e sobrinho-neto de Aleixo de Queiroz Ribeiro: A compra da Quinta da Glória, que então passou a designar-se como Paço da Glória, ocorreu em 1909, um ano depois do casamento, tendo a casa sido toda restaurada por Aleixo de Queiroz Ribeiro para aí receber condignamente a sua mulher sempre que vinha a Portugal, o que aconteceu por diversas vezes, quer antes quer depois da morte do marido, ocorrida em 1917. Elizabeth tinha dois filhos do seu primeiro casamento, os quais, após a morte dela, em 1929[11], herdaram as suas propriedades em Portugal, John Stetson o Mosteiro de Refóios e G. Henry o Paço da Glória. Este último, no entanto, desinteressou-se por completo da propriedade, deixando de pagar os impostos devidos, pelo que esta acabou por ir a hasta pública, tendo sido arrematada em 1937 por William Pitt. Outro facto curioso é que, também revelado pelo nosso particular amigo e arquitecto Manuel de Queiroz, em 1922, John Stetson Júnior, filho mais velho de Elizabeth, doou à Biblioteca da Universidade de Harvard, onde fez os seus estudos, um acervo de cerca de nove mil livros em português, em memória do padrasto, Conde de Santa Eulália, completado com novas doações durante os anos que se seguiram, o qual ainda hoje está disponível naquela biblioteca para consulta[12].
Infelizmente, e ainda segundo o arquitecto Manuel de Queiroz, não chegaram até nós quaisquer escritos, memórias ou textos da autoria de Queiroz Ribeiro que nos ajudassem a perceber melhor o seu pensamento, as suas motivações, ou as suas opiniões sobre a arte e a realidade do seu tempo. Apenas aparecem alguns postais e cartas, nos quais revela um apurado senso de humor, e um artigo publicado num jornal de Lisboa[13].  
Resta-nos lamentar, num lamento apenas construtivo, que esta data memorável tenha passado despercebida às gentes da nossa terra. E aqui referimo-nos aos que bebem da ancestralidade e das águas do Lima. Este ano, a não haver tempo para fazer algo, condigno e à dimensão deste ilustríssimo escultor, que a memória nos ilumine para 2018, altura em que se comemorará o 150.º Aniversário do seu nascimento!

BIBLIOGRAFIA:

– A AURORA DO LIMA (Decano dos jornaes do Minho). Viana do Castelo, 1917.
– BRANCO, José Luís – Aleixo Queiroz Ribeiro: autor da estátua de bronze do Sagrado Coração de Jesus, em Santa Luzia, Viana do Castelo. Viana do Castelo: Confraria de Santa Luzia, 1999.
– QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória. Lisboa: Bertrand Editora, 2008.
– “Aleixo de Queiroz Ribeiro: Conde de Santa Eulália: Escultor Laureado”. In, Figuras Limianas. Ponte de Lima: Município de Ponte de Lima, 2007, p. 296-300.  
– VIEIRA, Amândio Amorim de Sousa – P’ra que Viva Ponte de Lima! – Terra de Tradições. Ponte de Lima: Município de Ponte de Lima, 2017.

(In, «O Anunciador das Feiras Novas», Ano XXXIV, N.º 34, 2017, p. 65-69)


[1] Nomeadamente A Aurora do Lima, Cardeal Saraiva e Jornal de Vianna.
[2] Cit. A Aurora do Lima, 62.º anno, n.º 9002, Terça-feira, 15 de Maio de 1917.
[3]  José Luís Branco aponta a causa da morte, associando-a ao facto de ter sido vitimado por um acidente ocorrido com um carro de cavalos (In, Aleixo Queiroz Ribeiro: Autor da Estátua de bronze do Sagrado Coração de Jesus, em Santa Luzia, Viana do Castelo, p. 13). Por outro lado, Manuel de Queiroz, sobrinho-neto de Aleixo de Queiroz Ribeiro, refere o seguinte: Em Abril de 1916, sofre um grave acidente num carro de cavalos. Morre a 6 de Maio de 1917, no Mosteiro de Refoios, mas ao contrário do que referem vários autores, tudo indica que a sua morte não terá sido causada pelos ferimentos sofridos neste acidente e sim por doença do foro oncológico (In, Figuras Limianas, p. 300).
[4] Filho de Gaspar de Queiroz Botelho d’Almeida e Vasconcelos, Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, e de Mariana Cláudia de Ribeiro de Sotto-Mayor Pereira Pinto de Morais Sarmento, da Casa de Santa Eulália de Seia, nasceu na Casa da Boavista, situada entre as freguesias de S. Maria Madalena de Jolda, Arcos de Valdevez, e Refóios do Lima, Ponte de Lima, a 18 de Abril de 1868.
[5] QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória, p. 487.
[6] Expressão utilizada pelo jornal A Aurora do Lima, para de imediato descrever algumas notas sobre o percurso de Aleixo de Queiroz Ribeiro, o que leva a cometer algumas imprecisões, felizmente colmatadas, nos anos 90, pelo rigor científico do seu sobrinho-neto Manuel de Queiroz, com a publicação do “Passos da Glória” (romance) e uma Exposição, em Viana do Castelo (11 de Julho a 30 de Outubro de 2009), no Museu de Arte e Arqueologia, com o título «Aleixo de Queiroz Ribeiro (1868-1917): Entre a Europa e a América, um percurso controverso e singular». O nome de Aleixo de Queiroz Ribeiro está contemplado na toponímia vianense.
[7] Cf. QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória, p. 41. No que concerne à obra de Aleixo de Queiroz Ribeiro, Manuel de Queiroz refere que “pese embora a dedicação e a investigação de familiares e os vários esforços para as localizar, não deixa de ser impressionante o número de obras de QR que se encontram perdidas. Das trinta e cinco conhecidas, apenas se sabe do paradeiro de quinze, e assim se torna difícil a apreciação global da sua obra (…)” – citamos.
[8] Cit. A Aurora do Lima, 62.º anno, n.º 9000, Terça-feira, 8 de Maio de 1917.
[9] Cit. BRANCO, José Luís – Aleixo Queiroz Ribeiro: autor da estátua de bronze do Sagrado Coração de Jesus, em Santa Luzia, Viana do Castelo, p. 13.
[10] VIEIRA, Amândio Amorim de Sousa – P’ra que Viva Ponte de Lima! – Terra de Tradições, p. 224.
[11] “Elizabeth morreu em 1929, vítima de gripe pneumónica, quando visitava o filho mais novo, G. Henry, na sua propriedade Sombrero Rancho, em Pasadena, Califórnia.” – Cit. QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória, p. 488.
[12] Ob. cit., p. 487-488.
[13] Cf. QUEIROZ, Manuel de – “Aleixo de Queiroz Ribeiro: uma vida agitada, invulgar, não raro entretecida de acidentes originais e lances de grande notoriedade…”. In, Catálogo da Exposição Aleixo de Queiroz Ribeiro (1868-1917): Entre a Europa e a América, um percurso controverso e singular, p. 13.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

O campo da antropologia e o conceito de Jean-Jacques Rousseau enquanto fundador das Ciências do Homem, no pensamento de Lévi-Strauss!...



«A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na “história” que é relatada…»

Lévi-Strauss

Há cerca de seis meses que não dávamos sinal de vida activa, em face da fractura do braço escrevente, voltamos ao convívio dos nossos leitores, penitenciamos desde já por essa inadvertida falta, pelo respeito e consideração que nos merecem e, normalmente, retribuem. Mas, voltemos ao que nos interessa.
Na aula inaugural da cadeira de antropologia social dada no Collège de France, em 5 de Janeiro de 1960, Lévi-Strauss faz realçar o facto de que a antropologia social, cadeira introduzida no mesmo colégio francês em 1958, é por demais fiel às formas de pensamento que nomeamos supersticiosas quando as encontramos entre nós, para que não lhe fosse permitido prestar à superstição uma homenagem liminar; o próprio dos mitos, que ocupam um lugar tão importante em nossas pesquisas, não será evocar o passado abolido, e aplicá-lo como um parâmetro sobre a dimensão do presente, a fim de decifrar um sentido, onde coincidem as duas faces – histórica e estrutural –, que opõe ao homem sua própria realidade?


O caminho da antropologia social inicia-se com Sir James George Frazer na Universidade de Liverpool, “ressuscitando” os estudos de Franz Boas, na América, e de Émile Durkheim, na França. Segue-se Marcel Mauss, no Collège de France, que foi o primeiro a introduzir os termos “antropologia social” na nomenclatura francesa, em 1938. Na linha Saussure podemos renovar que é a natureza dos factos que estudamos que nos incita a distinguir neles o que decorre da estrutura e ao que pertence ao acontecimento. Se a sociedade está na antropologia, a antropologia, ela própria, está na sociedade: assim, a antropologia ampliou progressivamente o seu objecto de estudo, até abarcar nele a totalidade das sociedades humanas.
No discurso pronunciado em Genebra a 28 de Junho de 1962, por ocasião das cerimónias do 250.º aniversário do nascimento de Jean-Jacques Rousseau, Lévi-Strauss afirmou que Rousseau não foi somente um observador penetrante da vida campestre, um leitor apaixonado dos livros de viagem, um analista atento dos costumes e das crenças exóticas: sem receio de ser desmentido, pode-se afirmar que ele havia concebido, querido e anunciado a etnologia um século inteiro antes que ela fizesse a sua aparição, colocando-a, de pronto, entre as ciências naturais e humanas já constituídas.
Por exemplo, Jean-Jacques Rousseau define a botânica como uma “cadeia de relações e de combinações”, mas que a natureza nos apresenta encarnados nos “objectos sensíveis”. Desta forma – e segundo Lévi-Strauss – ele aspira também a reencontrar a união do sensível e do inteligível, porque essa mesma união constitui para o homem um estado primário, acompanhando o despertar da consciência; e que não deveria sobreviver-lhe, salvo em raras e preciosas ocasiões.
Para Lévi-Strauss, o pensamento de Rousseau desabrocha a partir de um duplo princípio: o da identificação com o outro, e mesmo com o mais “outro” de todos os outros, ou seja, um animal; e o da recusa da identificação consigo mesmo, isto é, a recusa de tudo o que pode tornar o eu “aceitável”. Para o mesmo antropólogo, estas duas atitudes complementam-se, e a segunda chega mesmo a fundar a primeira: na verdade, eu não sou “eu”, mas o mais fraco, o mais humilde dos “outros”.
Em suma, a revolução rousseauniana, preformando e iniciando a revolução etnológica consiste em recusar as identificações forçadas, quer seja a de uma cultura a outra cultura, ou a de um indivíduo, membro de uma cultura, a um personagem ou a uma função social que esta mesma cultura procura impor-lhe.
Também nós, só assim entendemos a ANTROPOLOGIA!

N.A.: O francês Claude Lévi-Strauss nasceu a 28 de Novembro de 1908 e notabilizou-se como antropólogo, professor e filósofo. Desencarnou em 30 de Outubro de 2009, com 100 anos de idade, e é considerado um dos grandes intelectuais do século XX.

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1276, 10 de Junho de 2017, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes 32)

sexta-feira, 3 de março de 2017

RUI PINTO: Sempre estive próximo de ser feliz... Ainda hoje é assim!...



Rui Pinto nasceu em Viana do Castelo em 1946

Entretantos:

-          Desde 1971 expõe com regularidade, individual e colectivamente, em Portugal e no estrangeiro.
-          Integrou o Grupo de Artistas Portugueses que mostrou à Europa a I Exposição Nacional de Gravura Contemporânea.
-          Participou, no Salão das Nações – Centro de Arte Contemporânea de Paris – numa Colectiva Internacional.
-          Fez parte do Projecto 1990 d.C.
-          Foi premiado – Medalha de Prata – no XIX Salão da Primavera (Estoril); Menção Honrosa na Exposição Temática sobre Lisboa e Menção Honrosa no 1.º Concurso Internacional de Cartaz Turístico.
-          Nos últimos anos tem executado vários painéis em azulejo para edifícios públicos ou privados.
-          Criou 32 medalhas destinadas a organismos ou eventos tanto em Portugal como em Espanha.
-          Recentemente criou a “Nova Cerâmica de Viana” em estreita colaboração com a Fábrica de Cerâmica Vianagrés.
-          Ilustrou dezenas de obras literárias.
-          Está referido no “Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses” do Prof. Fernando de Pamplona, da Academia Nacional de Belas-Artes.

Rui Pinto (auto-retrato)

Como se define como artista?
Aceitar a questão, sem falsas modéstias, é perturbador.
Soubesse eu definir, em mim, o homem!... E isto não é uma mera questão existencialista. É, muito mais, uma consciencialização ética que assumo e começa na complexidade do vocábulo artista em si próprio e, de imediato, no jogo com o outro que o antecede na pergunte, define.
Sejamos minimamente esclarecidos ou resvalaremos para lugares comuns e banalidades que, para além de estafados, só contribuem para a proliferação da mediocridade e, logo, do desinteresse.
Feitas estas considerações, à defesa, vou subtrair-me à complexidade do “todo” e responder, liminarmente, à questão que me é colocada.
Desde há muito rejeitei, por idiossincrasia, a designação de autodidacta face à multiplicidade da oferta de conhecimento através da qual podemos, quando interessados, desenvolver habilidades inatas, particulares, conhecer e trabalhar sobre técnicas e tendências, navegar em universos sem fronteiras mais ou menos apaixonantes. Parece-me oportuno questionar: afinal, em que grandes academias ou escolas, e de que forma, se formaram os grandes mestres, que fizeram a História... do Mundo?
Vou aterrar!
Gosto de pintar, sobretudo, pelo imenso Amor e indizível respeito que sinto pela Natureza. N’Ela vou encontrando resposta para quase tudo o que, em mim, são dúvidas. E, estas, são tantas!
A Luz, a Água, a Atmosfera, a Terra, o Vento, o Dia, a Noite... são, desde o meu ponto de vista, a essência do que somos. Mas também, é óbvio, do que não somos quando nos descuidamos ou nos divorciamos d’Ela.
Assim me sinto pessoa de algumas habilidades para o exercício de um ofício, ou ofícios, que apaixonadamente, sim, vou desenvolvendo.

Rui Pinto (Foto de Porfírio Silva, Dezembro 2016)

Fale-nos um pouco do seu percurso pessoal.
Filho de famílias muito humildes cedo fui cumprir a tarefa de ajudar os meus. Nada de extraordinário na época. – a propósito, como é hoje? – Era o Portugal dos anos cinquenta e sessenta do século passado e as exigências da vida – que não tínhamos, enquanto Vida, porque o poder encarregava-se de “A” determinar – assim o estabeleceram. Comecei por encadernador, à tarefa, em casa, de pequenos livros destinados às Missões das, então, colónias portuguesas em África. Mais tarde fui ajudante de electricista dos Estaleiros Navais e daí transitei para os Serviços Municipais da Câmara Municipal, à época responsável pelas redes de abastecimento de água e electricidade do concelho.
Foi entre dois tempos que me ocorreu algo de relevante influência na minha relação com a Arte... da Literatura.
Eu vivia com meus avós maternos, ali, na antiga Rua do Martim Velho, uma rua estreita que hoje não se reconhece. O quintal da casa de meus avós confinava com o quintal da casa, de um ilustre vianense de seu nome Júlio de Lemos, cuja fachada dava para a Rua da Bandeira. De Júlio de Lemos a lembrança é mesmo vaga. Ao contrário da sua esposa, D. Geminiana, lembro-me bastante bem... enquanto, já, viúva. A Senhora enfermara de diabetes. As perturbações daí resultantes provocaram-lhe a cegueira. Após a dolorosa perda do marido aquele era o mais dramático dos cenários para quem repartia a vida com a paixão pelo esposo e a paixão pela paixão – de vida – daquele mesmo: a literatura, a escrita.
D. Geminiana, agora, tampouco podia ler!...
Em família, dizia-se, que eu lia bem. E as boas relações criadas sob as glicínias do muro que separava os dois quintais depressa resolveram, em parte, a questão. A partir dos meus doze/ treze anos comecei a ir, diariamente, todos os fins de tarde, durante cerca de uma hora, ler para D. Geminiana. (e não é que a Senhora me convenceu que eu lia bem!?...) Não posso precisar o tempo que isto durou. Se lia bem, era a desditosa ouvinte que o dizia. Tenho, hoje, consciência de que pouco compreendia. Todavia ficou-me o hábito, a percepção do mundo que ali estava. Quase o vício. E fui “aprendendo” a ler, relendo. Fui “aprendendo” a pensar. Fui “aprendendo” a ver e a sentir.
Cerca dos dezasseis anos aventurei-me ao confronto com as folhas de papel em branco. E ora desenhava (experimentava) ora escrevia. Não demorei a descobrir a cor e aos dezassete anos assinei (Rupi) as minhas primeiras pinturas.
Aos dezoito anos, imediatamente antes da minha ida para a capital, onde fui funcionário do Tribunal de Trabalho, vendi os primeiros quadros: “O Amolador” e “A Velha”. Recebi, justamente, duzentos escudos por cada qual.
Durante o tempo que passei em Lisboa desfrutei, sempre a partir do meu próprio espaço e a ele regressando, dos benefícios culturais de uma metrópole que, mesmo castrada, tinha outra dimensão. Muitas vezes me senti “desistente” pelo deslumbramento. No interior, porém, algo persistia. Cumprido o serviço militar onde “vendi” muito trabalho através de rifas, regressei, de passagem, a Lisboa. Aos vinte e cinco anos fiz a minha primeira exposição em Viana, apresentada pelo Professor Aníbal Alcino (Obrigado, Professor!!!). Em 1971 “introduziram-me” na cerâmica. Hoje, aqui estou! Os “entretantos” já os leram.

Soajo, aguarela, 1993

O que pensa da Arte Contemporânea Portuguesa?
Quem não é ignorante dificilmente poderá ser inocente. Se não sou de todo ignorante não serei, em igual medida, inocente. E tenho opinião. Considerando a Arte no seu todo não encontro significativas diferenças entre o que se faz em Portugal e no Resto do Mundo. A globalização, matéria aparentemente recente, não o é tanto nos domínios da Arte. Desde há algumas décadas que o significado das diferentes culturas se esbateu, sobre os conceitos passaram a estabelecer-se mais permutas expericiais do que discussões por diferentes objectivos. Existe, a meu ver, uma espécie de “stand-by” que não beneficia nem o todo nem as partes.
Talvez convenha ressalvar o fenómeno da música nas décadas de sessenta e setenta do século XX.
As novas tecnologias perturbaram o ónus da criatividade, não no sentido de a reduzir, mas pelo facilitismo que permite.
Não conheço, à escala planetária, em muitas décadas já, nenhum fenómeno puramente artístico de grande projecção.
É a minha opinião: a de um empírico.

Será que podemos arriscar em pensar que sofreu a influência de alguma corrente de Arte?
Passe o aforismo o único homem que não recebeu influências de outro homem foi Adão.
De mim, alguém que muito estimo disse um dia: é um lírico-anarquista. Confesso uma certa “vaidade”, vindo de quem vem.
Eu direi que só o sentido do Belo me fascina. Ora, o Belo é indefinível. Fernando Pessoa considera-o mesmo secundário. Pessoalmente, porém, encontro-o em muitas coisas e em muito diferenciadas situações. Sendo objectivamente diferenciadas têm, por comum, para mim, o sentido do belo, a sublimação da harmonia. Sinto-me um animal intuitivo e instintivo e nessa forma de caminhar como que me distraio do humano ao encontro da inesperada gestualidade da Natureza.
Ensinaram-me – a vida também – que uma das mais elementares demonstrações e da importância da integência do homem é a sua capacidade de adaptação. Aí desempenho o meu papel e vivo as paixões. Correntes artísticas? Não hesito: os impressionistas seguidos pelos expressionistas escalaram o Everest da pintura.

Outono, técnica mista s/ tela, 2004 (pormenor)

Escrita, pintura, desenho... cerâmica?
Sou de natureza apaixonada... Quase desiquilibradamente. Mas estou de pé, e sempre perto de ser feliz. Na questão que me é colocada amo a pintura e o acto de escrever. Dou-me bem com o desenho embora desejasse conhecê-lo melhor. A cerâmica será sempre, numa linguagem passional, a “outra”.
De tudo resulta que me falta ambição o que me remete para o (des)conforto das dúvidas. Sempre aceitarei ser julgado pelo que não fiz neste estar de quase cinzentismo iluminado (sim, iluminado) pelo quotidiano amanhecer num rio que é o meu sacrário, a minha fonte.
Por agora, pouco mais...

A Arte pela Arte ou a Arte pelo Homem?
Tal como existem frases-feitas ou clichés também há ideias que não fogem a essa matriz. Parece-me o caso. Que me perdoem os mais letrados e conhecedores mas não encontrei nunca comunidade, cultura ou civilização onde a liberdade cultural do indivíduo não conhecesse oposição. Se baralharmos, partirmos e voltarmos a dar vem-nos calhar à mão o mesmo jogo. O desempenho é sempre do Homem. Foi sempre do Homem. Talvez que a Arte para o Homem. Se não, definitivamente, o Homem pela Arte.

Entrevista: Porfírio Pereira da Silva

TERRA MINHA, MINHA TERRA

Uma tela imensa, desenfreada
na côr, na luz, na água decantada
entre vales luminosos e abundantes...
as veigas litorais tão deslumbrantes,
o brilho dos olhos das moçoilas
e na boca delas as papoilas...

Nos milénios dos castros, nas “alminhas”
sempre floridas nas estradas...
e as romarias!... de um povo inteiro,
inteiro e verdadeiro!... as mordomias
e o orgulho dos canteiros nas fachadas,
em granito, das “nossas” fidalguias...

Depois, à mesa, uma paleta
policromada de vinhos e sabores,
tão generosa de tudo que os deuses
no final do banquete adormeceram
como os deuses adormecem, meus senhores!

Sobrou-nos o chão p’ra caminhar e a quietude
de um povo tisnado, sim, mas manso e pouco mais
que o delírio de poetas e pintores.

Rui Pinto
Abril / 1992

(In, «MEALIBRA: Revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho», N.º 16, Série 3, Verão 2005, p. 116-120)