Lá
ao longe a floresta ardia. Sentia-se o cheiro a eucalipto queimado. O monte de
S. Lourenço parecia um inferno. Não é que estivessem motivados para divagarem –
com a construção e a força das palavras – por entre os escombros e as desgraças
alheias, que sentissem alguma apreensão acerca da catástrofe reinante no país.
Mas, também não podiam ficar indiferentes ao manifesto espírito de revolta (com
razão) de quem sente na pele a apatia dos governantes, soletradores de
promessas em tempo de “campanhas” e muito pouco fora delas. O país estava a
arder, quando haviam sido prometidos planos económicos e revigoradas
“Protecções Civis”, mão pesada para os criminosos e uma maior segurança das
riquezas naturais, quase os únicos garantes de subsistência da maioria dos
portugueses. E ainda havia quem achasse estranho que, no meio de tanta desgraça
(com perda de pessoas e bens), houvesse alguém que apelasse a vinda de Salazar!
Era
ali que a democracia estava em perigo. A desorientação era total. O planeamento
do território, o aproveitamento dos recursos naturais, os incentivos à economia
rural – que bem poderia passar pela limpeza e conservação das matas – davam
lugar à preocupação economicista do pagamento do déficit e das balanças
económicas impostas por quem cresce à custa das desgraças alheias. Salazar
matava-nos à fome, mas mantinha as matas limpas!... – dizia um dos muitos revoltados, face à inércia dos
democratas de hoje, que nos vão enganando com a barriga cheia, em deficiente
alimentação e de costas viradas às reais potencialidades económicas do país.
Isaías e Anne tinham consciência de que a democracia estava em perigo se
mantivessem este tipo de política de subserviência aos interesses económicos de
outros, aqueles que se estão “borrifando” para a produção leiteira, florestal
ou mesmo industrial dos portugueses.
Para
eles, os incêndios eram o corolário da inércia dos nossos políticos.
— Não nos venham dizer
que – como afirmou aquela senhora dirigente de um parque natural – o mal reside
no povo que não cuida das suas matas, marcada espectaculosidade dos seguidores
de “Pilatos”... Bem que podem lavar as mãos na água barrenta das cinzas –
murmurou Isaías, contemplando o horizonte devastado pelas chamas.
— Isaías! Mas, afinal,
quem é que pagou aos portugueses para cortar as suas vinhas, abater as cabeças
de gado para produzir menos leite e deixar crescer mato em campos de cultivo?
Era de tradição “astrar” as cortes com o mato roçado. A biodinâmica perdeu-se
com o estrangulamento perpetrado pelas economias ditatoriais, onde o plástico é
alimento.
O país estava a arder e a democracia em perigo. Teria
que haver coragem para reconhecer as fragilidades e as incompetências.
Serenamente!
Ainda
ambos debatiam, entre grupos de amigos, a tragédia que avassalava – e tem
avassalado – o país, quando leram em bom tom num matutino nacional que o arq.º
Ribeiro Teles alertava para o facto de que seria um erro calamitoso se a
reflorestação das áreas ardidas fosse feita como antes. Essa figura pública,
tal como lhe era peculiar, punha o dedo na ferida, a ponto de reforçar as suas
modestas opiniões.
Se
alguém poderia ficar escandalizado com as afirmações proferidas na Tasca
do Zé do Inácio, de que os incêndios
são corolário da inércia dos políticos, depressa se molestariam com o modelo
defendido pelo arq.º Ribeiro Teles, onde a floresta ideal deveria ser uma mata
completamente integrada no sistema agrícola. A sua “teoria” faria aumentar
ainda mais a indignação e a “revolta” daqueles que pensavam de igual forma: Todas
estas regiões que são hoje pinhal e eucaliptal, que têm aldeias e pessoas a
viver dentro, não devem continuar a ser exclusivamente uma floresta. Era o sinal dado por uma das mais avalizadas – senão a mais
avalizada – vozes do “Ambiente” em Portugal. As palavras acabaram por atenuar o pressuposto sentimento de
revolta pela interrogada afirmação de quem havia pago aos portugueses para
cortar as suas vinhas; abater as cabeças de gado para produzir menos leite; e
deixar crescer mato em campos de cultivo...
Isaías e Anne tinham a plena convicção de que o
ordenamento do território é da responsabilidade dos políticos, articulando com
gente que sabe e tem, verdadeiramente, sensibilidade para estas melindrosas
questões. Poder-se-ia discordar da expressão viva dos sentimentos de revolta,
mas não era possível ficar indiferente quando vozes discordantes lhes provocavam
alguma culpabilidade da causa-efeito dos erros cometidos. O arq.º Ribeiro Teles
achava – e também eles achavam – que a floresta tem que ser simultaneamente
agrícola: A mata deve ocupar as encostas mais declivosas; os
vales devem ser aproveitados para a agricultura local; e os solos planálticos
devem ser reservados para uma agricultura tipo vinha ou olival. Os matos devem,
por sua vez, ser aproveitados também para a pecuária, bem como para a produção
do mel, aguardente de medronho e, ainda, para as plantas aromáticas, que podem
dar lugar a uma indústria de perfumes – diria Mestre Ribeiro Teles. Anne e
Isaías só não entendiam o porquê de tanta indignação quando, convictamente,
acreditavam que a biodinâmica perdera-se com o estrangulamento perpetrado pelas
economias ditatoriais, onde o plástico é alimento. Por isso, persistiam na
afirmação resultante da reflexão de que, enquanto se mantiver este tipo de
política, a democracia estará sempre em perigo.
(In, SILVA, Porfírio Pereira da - Agramonte: ou o mundo astral dos profetas. Porto: Papiro Editora, 2012, p. 61-63)
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