terça-feira, 11 de outubro de 2016

O conceito de trabalho, pensamento ou cognição em Hannah Arendt!...

«A passagem da sociedade – a ascensão da administração caseira, das suas actividades, problemas e recursos organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não diluiu apenas a antiga divisão entre o privado e o político, mas alterou também o significado dos dois termos…»

Hannah Arendt

«A Condição Humana» de Hannah Arendt é quase, obrigatoriamente, a nossa “bíblia” de cabeceira, sempre que sentimos alguma fragilidade cognitiva, face às tropelias ou às bífidas afrontas psicológicas dos detentores do poder, ou daqueles que transitoriamente dele estão arredados. Hannah Arendt, lemo-la para descomprimir e para carregar baterias.
Precisamos dela como do pão para a boca. E porquê? Porque a durabilidade do artifício humano não é absoluta e o uso que dele fazemos, embora não o consuma, desgasta-o. O uso e o consumo, tal como o trabalho e o labor, não são a mesma coisa, embora aparentemente coincidam em certas áreas importantes, o que leva a opinião pública e a opinião dos eruditos a identificar numa só estas duas questões bem diferentes.
Para Hannah Arendt, o processo de “fazer” é inteiramente determinado pelas categorias de meios e fins. A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina com ela e de que é apenas um meio de produzir esse fim. A característica da fabricação é ter um começo definido e um fim definido e previsível, e esta característica é suficiente para a distinguir de todas as outras actividades humanas. Segundo ela, ao longo da aventura humana os instrumentos e ferramentas são objectos tão inteiramente mundanos que chegam a servir de critério para a classificação de civilizações inteiras.
No mundo moderno e contemporâneo as máquinas tornaram-se uma condição tão inalienável da nossa existência como foram os utensílios e ferramentas em todas as épocas anteriores. Hoje é o uso da electricidade que continua a determinar o desenvolvimento técnico, representando a automação o estado mais recente da evolução humana.


Ao contrário das coisas, dos actos ou das ideias, os valores nunca são produtos de uma actividade humana específica, mas passam a existir sempre que os objectos são trazidos para a relatividade da troca, em constante mutação, entre os membros da sociedade. A tão lamentada desvalorização de todas as coisas, isto é, a perda de toda a valia intrínseca, começa com a sua transformação em valores ou mercadorias, uma vez que, daí em diante, passam a existir apenas em relação a alguma outra coisa que pode ser adquirida em seu lugar (Cf. Arendt, 2001: 206).
É esta perda de padrões e normas universais, sem os quais o homem jamais poderia ter construído um mundo, que Platão pressentia já proposta protagórica de estabelecer o homem, fabricante de coisas, e o uso que delas faz, como suprema medida destas últimas. Em virtude da sua suma permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis. A sua durabilidade é superior àquela de que todas as coisas precisam para existir, e, através do tempo, pode atingir a permanência. A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma que a «propensão para a troca e o comércio» é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se, no dizer de Hannah Arendt, de capacidades do homem, e não meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem o seu conteúdo.
No caso das obras de arte, a reificação é algo mais que mera transformação; é transfiguração, verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza, que requer que tudo queime até ficar em cinzas, fosse invertido de modo que até as cinzas pudessem irromper em chamas. As obras de arte são frutos do pensamento, mas nem por isto deixam de ser coisas.
A poesia, por exemplo, cujo material é a linguagem, é talvez a mais humana e a menos mundana das artes, aquela cujo produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou.
O pensamento difere da cognição. O pensamento manifesta-se, sem transformação ou transfiguração como fonte das obras de arte e em todas as grandes filosofias, ao passo que a principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências. Devemos distinguir tanto o pensamento como a cognição da capacidade de raciocínio lógico, que se manifesta em operações tais como deduções de enunciados axiomáticos ou evidentes por si mesmos, na subordinação de ocorrências isoladas a regras gerais, ou nas técnicas de obter cadeias sistemáticas de conclusões (Cf. Arendt, 2001: 212).
A vida no seu sentido não biológico, isto é, o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte do homem, manifesta-se na acção e no discurso, que têm em comum com a vida o facto de serem essencialmente fúteis.
        Fiquem bem e até à próxima, se, eventualmente, não recairmos!

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1254, 8/10 de Outubro de 2016, p. 6 - Crónicas do Átrio e do Lethes-29)

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