«A passagem da sociedade – a ascensão da
administração caseira, das suas actividades, problemas e recursos
organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não
diluiu apenas a antiga divisão entre o privado e o político, mas alterou também
o significado dos dois termos…»
Hannah Arendt
«A Condição Humana» de Hannah Arendt é quase, obrigatoriamente, a
nossa “bíblia” de cabeceira, sempre que sentimos alguma fragilidade cognitiva,
face às tropelias ou às bífidas afrontas psicológicas dos detentores do poder,
ou daqueles que transitoriamente dele estão arredados. Hannah Arendt, lemo-la
para descomprimir e para carregar baterias.
Precisamos dela como do
pão para a boca. E porquê? Porque a durabilidade do artifício humano não é
absoluta e o uso que dele fazemos, embora não o consuma, desgasta-o. O uso e o
consumo, tal como o trabalho e o labor, não são a mesma coisa, embora aparentemente
coincidam em certas áreas importantes, o que leva a opinião pública e a opinião
dos eruditos a identificar numa só estas duas questões bem diferentes.
Para Hannah Arendt, o
processo de “fazer” é inteiramente determinado pelas categorias de meios e fins.
A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de
produção termina com ela e de que é apenas um meio de produzir esse fim. A
característica da fabricação é ter um começo definido e um fim definido e
previsível, e esta característica é suficiente para a distinguir de todas as
outras actividades humanas. Segundo ela, ao longo da aventura humana os
instrumentos e ferramentas são objectos tão inteiramente mundanos que chegam a
servir de critério para a classificação de civilizações inteiras.
No mundo moderno e
contemporâneo as máquinas tornaram-se uma condição tão inalienável da nossa
existência como foram os utensílios e ferramentas em todas as épocas
anteriores. Hoje é o uso da electricidade que continua a determinar o
desenvolvimento técnico, representando a automação o estado mais recente da
evolução humana.
Ao contrário das
coisas, dos actos ou das ideias, os valores nunca são produtos de uma
actividade humana específica, mas passam a existir sempre que os objectos são
trazidos para a relatividade da troca, em constante mutação, entre os membros
da sociedade. A tão lamentada desvalorização de todas as coisas, isto é, a
perda de toda a valia intrínseca, começa com a sua transformação em valores ou
mercadorias, uma vez que, daí em diante, passam a existir apenas em relação a
alguma outra coisa que pode ser adquirida em seu lugar (Cf. Arendt, 2001: 206).
É esta perda de padrões
e normas universais, sem os quais o homem jamais poderia ter construído um
mundo, que Platão pressentia já proposta protagórica de estabelecer o homem,
fabricante de coisas, e o uso que delas faz, como suprema medida destas
últimas. Em virtude da sua suma permanência, as obras de arte são as mais
intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis. A sua durabilidade é
superior àquela de que todas as coisas precisam para existir, e, através do
tempo, pode atingir a permanência. A fonte imediata da obra de arte é a
capacidade humana de pensar, da mesma forma que a «propensão para a troca e o
comércio» é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se, no dizer de Hannah Arendt,
de capacidades do homem, e não meros atributos do animal humano, como
sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes
constituem o seu conteúdo.
No caso das obras de
arte, a reificação é algo mais que mera transformação; é transfiguração,
verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza, que requer que tudo queime
até ficar em cinzas, fosse invertido de modo que até as cinzas pudessem
irromper em chamas. As obras de arte são frutos do pensamento, mas nem por isto
deixam de ser coisas.
A poesia, por exemplo,
cujo material é a linguagem, é talvez a mais humana e a menos mundana das
artes, aquela cujo produto final permanece mais próximo do pensamento que o
inspirou.
O pensamento difere da
cognição. O pensamento manifesta-se, sem transformação ou transfiguração como
fonte das obras de arte e em todas as grandes filosofias, ao passo que a
principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais adquirimos e
armazenamos conhecimento, são as ciências. Devemos distinguir tanto o
pensamento como a cognição da capacidade de raciocínio lógico, que se manifesta
em operações tais como deduções de enunciados axiomáticos ou evidentes por si
mesmos, na subordinação de ocorrências isoladas a regras gerais, ou nas
técnicas de obter cadeias sistemáticas de conclusões (Cf. Arendt, 2001: 212).
A vida no seu sentido
não biológico, isto é, o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte do
homem, manifesta-se na acção e no discurso, que têm em comum com a vida o facto
de serem essencialmente fúteis.
Fiquem bem e até à próxima, se, eventualmente, não recairmos!
(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1254, 8/10 de Outubro de 2016, p. 6 - Crónicas do Átrio e do Lethes-29)
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