«Se ligarmos o
fim de Camilo ao desnorteamento da sua existência, entenderemos melhor que os
homens não são diferentes das ideias que os regem. Camilo sofreu paixão e
morte, porque o individualismo frenético do seu ambiente cultivou e engrossou o
individualismo frenético que o escritor reflectia como herança estrutural. A
não ser outra a causa da diminuição da sua personalidade, do desencontrado da
sua obra. Invertam-se pois, os dados da questão – e seja para se afirmar contra
os preconceitos lombrosianos, que em Camilo a doença, longe de lhe alimentar o
génio, só lho mutilou e desfigurou, acabando por extingui-lo…»
(ANTÓNIO SARDINHA, 1925:688).
Com esta pequena nota
de abertura, assinada por António Sardinha[1],
acabamos por impor a nós próprios, um certo contraditório, ao que, nas jornadas
anteriores, nos sugestionaria, nos tempos que correm, a definição de “Génio de
Camilo”, aventada pelo mesmo António Sardinha, que nas suas manifestações tão
desencontradas como variadíssimas, só nos poderia ser dada pelo estudo
psicológico da hereditariedade do escritor, mesmo que não se procure
ressuscitar os velhos processos lombrosianos; e a resposta de Alberto Pimentel à
pergunta se a doença houvera prejudicado a obra de Camilo: Não só não prejudicou como até
lhe imprimiu uma feição genial.
Esse presumível
contraditório, fruto da releitura que temos vindo a fazer de estados emocionais
de Camilo, através de cartas e outros meios, e menos pelo lado
criativo-literário, somos, contudo, confrontados com a opinião de António
Sardinha, através de um extenso apontamento, a que deu o título “O Génio de
Camilo”, publicado «In Memoriam de
Camillo», obra comemorativa do centenário do nascimento deste insigne
historiador, romancista e poeta, quando afirma, a dado momento, que «Camilo, na sua espontaneidade fecundíssima,
foi sempre governado por uma “disputa de mortos” como certamente diria Léon
Daudet. Na verdade, se considerarmos a obra literária desse escritor como a
libertação das imagens ancestrais que lhe povoam o subconsciente, Camilo
Castelo Branco aparece-nos como da estirpe dos Shakspeare e dos Balzac. Mais
dos Balzac que dos Shakspeares…»[2],
porque – segundo ele –, em Balzac Camilo encontrou a fórmula para a libertação
dos seus demónios interiores, quiçá, avivados através da «linhagem irrequieta de inadaptados que são os ascendentes de Camilo,
cheios de tatuagens sociais e morais, a que não faltava nem a nota infamante do
judaísmo…»[3]. É o
mesmo Sardinha que lhe confere esse ajuste balzaquiano: Havia em Camilo, como
em Balzac, um intenso sentido da história. Mas Camilo sofria, tanto na sua
inteligência como na sua sensibilidade, as consequências do duelo que nele
travavam incessantemente duas hereditariedades hostis, referindo-se à acentuada
luta entre o Camilo regido por “avós bem plantados no coração eterno da
pátria”, e o Camilo sacudido, “num sabbat
violento, pela constante intervenção da sua ancestralidade israelita”[4].
Paulo Osório[5],
por exemplo, prejudicado pelo excessivo espírito clínico com que por vezes
encara a psicologia atormentada de Camilo, insiste no elemento do judaísmo da
parte dos antepassados do romancista, como factor predominante e/ou
preponderante na determinação do temperamento de Camilo: «Espiolhando bem as costelas de criatura a quem genealogistas diversos
tão várias profissões atribuíram, vem-se a saber da existência, em seu nobre
sangue, de laivos judeus, oriundos de duas cristãs novas que respectivamente
conviveram com seu pai e seu avô. Para o cadastro patológico que é lícito
formar nesta família, convém não perder o indício que nos pode dar um facto
tal, por isso que é hoje já vulgar na ciência que a raça hebraica é, dentre
todas as raças, uma das que maior contingente fornecem para o grupo das doenças
nervosas…[6]».
Casa, hoje inexistente, que serviu de residência a Camilo Castelo Branco, em Viana do Castelo (1857) |
Não nos admiramos com
esta desconstruída rotulação, principalmente no que concerne à expressão de
“laivos judeus” na procura da hereditariedade, quando J. Lúcio de Azevedo
traz-nos à coacção, no seu dizer, a pena do medíocre foliculário Vicente da
Costa Matos, autor que, na linguagem pedante daquele período (1625) de
decadência literária, pedia a expulsão dos heréticos, e coligia as opiniões
correntes sobre a gente de Israel, opiniões que simultaneamente revelam o ódio
inspirado por ela, e o estado triste da mentalidade contemporânea: «Os judeus, dizia ele, são feios de rosto, e
assim os tem Deus assinalado, como expressão do seu desprezo; exalam cheiro
mau, que só com o baptismo se dissipa; ao falarem, cospem-se por si e uns aos
outros nas barbas, em castigo de haverem cuspido a Cristo, quando o
martirizaram; os do sexo masculino são menstruados, provavelmente também por
castigo; e outras semelhantes inépcias. Além disso, increpa-os de homossexuais,
e de haverem introduzido o vício no país…»[7]
– citamos.
Mais tarde, ao citar
Charcot, «as nevroses resultam de dois
factores: um, essencial e invariável: a hereditariedade nevropática; outro,
contingente e polimorfo: os agentes provocadores», Paulo Osório acaba por
ainda juntar à hereditariedade nevropática os factores congenitais, adquiridos
na vida fetal, que a excessiva concisão daquela fórmula exclui: «Quanto ao primeiro factor, essencial e
invariável, é notório como em Camilo ele influiu. Eu penso que dificilmente se
encontrará estirpe mais opulenta para a guarda avançada dum caso esplendido de
génio. E pelo que se refere aos factores adquiridos na vida fetal, basta
recordar as primeiras palavras desta nosografia: “Camilo Castelo Branco foi
gerado no período mais doloroso dum amor violento”. Citar agora, um a um os
agentes provocadores seria repetir o que está dito, contar de novo toda essa
biografia acidentada, essa vida errante, de paixão e amargura…»[8].
Paulo Osório, acabou
por ancorar-se na certeza de que os sintomas mórbidos observados em Camilo
poder-se-iam dividir metodicamente em três grupos: 1.º – Nevralgias, impressão do ferro em brasa na cabeça, insónia,
fobias, abulia, obsessões e impulsões, irregularidade no trabalho, tendência
para a auto-observação, vagabundagem, e primeiras perturbações visuais; 2.º – Espasmo nervoso no esófago,
versatilidade, instabilidade, egoísmo, grande poder imaginativo, interpretação
mística dos factos mais simples, desigualdades psíquicas, exagero de todas as
sensações, perturbações auditivas – ainda algumas perturbações visuais (como a
diplopia) –, assomo de megalómano e perseguido, sonhos, pavores nocturnos,
pesadelos e tendência para o suicídio; 3.º
– Dores fulgurantes, silvos nos ouvidos, surdez, ataxia, perturbações visuais
mais adiantadas (tais como a epífora, a ambliopia, a nevrite óptica, a
imobilidade da pupila e a amaurose). Conclui que os sintomas no primeiro grupo
denunciam-nos o neurasténico[9];
no segundo como pertencendo ao quadro de histeria; e no terceiro, Paulo
Osório atribui-lhe o tabes[10],
uma doença orgânica do sistema nervoso, na sua forma clínica cérebro-bulbar[11].
Estas considerações aventadas
por Paulo Osório, acabariam por suscitar em Miguel Bombarda um esboço crítico,
onde o ilustre psiquiatra, procurou refutar a tese apresentada, principalmente
quando ventila a nosologia[12],
o exame psicopático, de Camilo: «…O autor
procura demonstrar que Camilo era um neurasténico, e para isso vale-se, valha a
verdade, do avolumamento de muito pormenor que não contém, longe disso, a
significação que se lhe quer conceder. É assim que se faz um montão de fobias
onde nem uma talvez se possa apurar: porque a verdade é que a fobia não é só o
simples horror à doença ou à morte, porque então seria neurasténico, mais ou
menos, todo o ser humano, do mesmo modo que não é fonófobo quem não tem ouvido
musical, como enfim senão acha possuído, do neurasténico horror à luz aquele
que dela foge, fisicamente sofrendo dos órgãos visuais…[13]».
Para Miguel Bombarda, psiquicamente, Camilo não era neurasténico. Sem se querer
pronunciar, porque não possuía o conhecimento bastante do homem nem da sua obra,
sempre acabaria por vinculá-lo à ataxia[14]:
«…E fisicamente, como doença que o levou
ao desespero final, julgo não poderá haver dúvida para nenhum médico que Camilo
era um atáxico. A ataxia acorrentou-o à dor nos últimos anos da vida, e foi ela
que o conduziu ao suicídio…[15]».
Para o mesmo psiquiatra a ataxia não era um mal neurasténico, tendo em conta
que, para os médicos da época, a ataxia locomotora, do mesmo modo que a paralisia
geral, não era mais que um derradeiro golpe sífilis.
Nesta troca de mimos
entre médicos, com Camilo a premeio, o insigne escritor não só se
incompatibilizou com muitos dos médicos do seu tempo, como acabaria por provocar
alguma escaramuça entre eles.
Vejamos outro exemplo, que nos reporta até ao ano
de 1879, altura em que, pela segunda vez, a Princesa Rattazi – de seu nome de
solteira Maria Letícia Wyse), filha de um diplomata inglês Tomás Wyse e de
Lectícia Bonaparte, filha de Luciano Bonaparte, sendo seu tio-avô o grande
Corso –, veio a Portugal, por forma a colher impressões para um livro célebre
que intitulou Portugal à vol d’oiseau
e que saiu em 1880. Ora, dessa segunda vez, veio ao Porto, festejada por uns e
outros. Camilo foi chamado pelo seu livreiro editor a ir ao beija-mão. Eximiu-se
na carta seguinte com o seu salpico de chiste e de pessimismo:
Meu
prezado Chardron:
Com
muito prazer iria cumprimentar a Senhora Princesa se o meu crescente desbarate
de saúde me não obrigasse a sair daqui amanhã para Ponte de Lima, onde me
espera um médico que me quer aplicar a dosimetria – um sistema moderno mediante
o qual se morre à antiga.
Eu
fiz um voto de nunca mais voltar ao Porto.
Sempre
que aí vou, retiro em pior estado.
Não
obstante, se não fosse esta saída para Ponte de Lima, iria prestar à insigne
escritora a cortesia devida aos seus talentos. Queira o meu amigo apresentar a
S. Alteza as minhas desculpas e os meus respeitos.
Do
seu amigo obrigado
Camilo
Castelo Branco.
Esta curiosa carta
presta-se a comentários. Assim, pode encarar-se aquela vinda do escritor a
Ponte de Lima como momentânea fantasia, apenas como pretexto ocasional para se
livrar da estopada de ter de se deslocar de Seide por motivo do que se lhe
afigurava tão fútil. Mas se era verdadeiro, qual seria o médico da vila que
então gozava de tal prestígio que mereceu a honra da atenção de Camilo? E
Camilo teria feito, efectivamente, essa jornada para se sujeitar à tal
aplicação do tal sistema da dosimetria? O par de interrogações lançou em nós
uma redobrada curiosidade.
Sobre uma das perguntas
suscitadas por esta carta de Camilo, viria a obter-se uma resposta infalível,
por sugestão de José Benvindo Martins de Araújo: – Quem era o médico de Ponte
de Lima que foi consultado por Camilo? É o próprio Camilo que, em carta
dirigida a Tomás Norton[16],
um dos limianos com quem, juntamente com João Gomes de Abreu, Camilo se
carteava, acaba por revelar o médico a quem, dado o seu prestígio e reputação
clínica, recorreu: «Obrigado à dedicada
benevolência dos seus cuidados pela minha irreparável saúde. Não há que esperar
na velhice quando a mocidade foi desbaratada, contraindo empréstimos adiantados
às forças da vida porvindoura. Não me admiro deste esfacelamento: o que me
espanta é viver. Há 4 meses consultei em Vizela um médico conterrâneo de V.
Ex., Freitas. Capitulou de esgotamento nervoso a minha enfermidade, e mandou-me
tomar fósforo pelo sistema de Bourggrave. Veja V. Ex.ª! com o fósforo tenho eu
de reconstituir um regenerado sistema nervoso! Mas o pior foi que, antes de
renovar a massa encefálica, ia arranjando uma intoxicação de arseniatos que por
pouco o não aliviava a V. Ex.ª de ler este boletim sanitário…»[17]
– carta datada de 6.ª feira, 7 de Novembro de 1884.
Temos, por conseguinte,
que em Agosto (três meses antes) Camilo encontrou-se nas águas de Vizela, onde
costumava veranear, com o célebre doutor Freitas – António Inácio Pereira de
Freitas[18]
– a quem consultou, que com certeza o examinou e que o medicou.
Outra carta, de 12 do
mesmo mês e ano, refere-se ainda ao Dr. Freitas:
«V. Ex.ª é ingrato à terapêutica do Freitas. Os grânulos cabalísticos do
homem, ingeridos nas vísceras do cancro, mataram-lho. O cancro é um micróbio,
em forma de vírgula, com o feitio de caranguejo, que V. Ex.ª terá a curiosidade
de ver no Zodíaco (Câncer). Verdade é que o Freitas intoxicou o parasita
inconscientemente; matou-o por acaso como o Colombo descobriu a India
ocidental; mas nem por isso havemos de esbulha-lo de ter subido pelos
alcatruzes do bambúrrio a uma eminencia de glória que V. Ex.ª parece querer
empalhar-lhe, atribuindo a sua cura à Natureza, mãe fecunda de todos os cancros
e de todos os Freitas.
Seriamente,
o meu incessante penar de 20 anos, tenho estudado a infâmia com que os
charlatães de todas as seitas médicas mangam com os enfermos – com a dor
física, esta coisa que, por ser horrorosa, deveria ser sagrada. Tenho
encontrado dois médicos catedráticos que, com os olhos quase lacrimosos como os
do Freitas, me disseram que me deixasse morrer nos braços da “Alma Mater”, esta
coisa que nos desova cá fora e depois nos retrai ao seu ventre, como quem
engole um porco vómito, cheio de fezes, de apostemas, de cancros, do diabo…»[19].
A relação de Camilo com
o Ricardo Jorge, António Maria de Sena e o subsequente Júlio de Matos, aquando do
internamento do seu filho Jorge, em 1886, dos quais falamos nas Jornadas
anteriores, não foi de todo pacífica. Se Ricardo Jorge teve um papel importante
no internamento do filho de Camilo, ao passar o atestado que as formalidades
regulamentares exigiam para a mesma admissão, aduzindo-lhe um problema
degenerativo hereditário, chamando à coacção a ancestralidade do avô paterno e
de dois tios como alienados, e Camilo, apesar de homem de talento, um nevropata
e um sifilítico, também não é menos verdade que Ricardo Jorge, perante uma
menor assiduidade na sua correspondência com Camilo, informando-o do estado de
saúde do Jorge, mereceu da parte do escritor, em carta dirigida a Eduardo Costa
Santos, o seguinte desabafo: «Não sei
nada do Dr. Ricardo. Parece que está zangado com a gente. Paciência. Não tem
razão…»[20].
Dois anos antes, Camilo
escrevera a Tomás Norton: «(…) Como me
sinto sem forças para escrever falo-lhe da minha doença. Fui antes de ontem ao
Porto para consultar um especialista de nevroses, Ricardo Jorge. Não cheguei a
falar ao médico por que a noite foi tão cruel que tive de retirar de manhã,
aterrado com uma coisa nova – a asfixia. Isto é irremediável, e cheguei a
termos de encarar alegremente a morte, apesar de levar muitas saudades de um
filho de 21 anos que aos 12 endoudeceu em Coimbra onde eu estava com ele, e com
outro – um doudo d’outra espécie de que não sei nada, senão o que me ressoa do
estrondo das suas estravagâncias. Este rapaz herdou há 3 meses da mulher e da
filha 150 contos. Se ele viver 6 anos, e eu tiver a desgraça de lhe sobreviver,
hei-de recebe-lo em minha casa para ele não pedir esmola ou sair nas
encruzilhadas. Tem 20 anos. A minha pior enfermidade são estes dois filhos. / Desejo-lhe
a V. Ex.ª a suprema felicidade de se honrar no procedimento dos seus.[21]»
Tal como o afirmara Alberto
Pimentel, a vida de Camilo havia de ser até ao fim «uma elegia continuada».
Sofria a nevrose do génio romântico; era um emotivo. Segundo Luís Norton, Sócio
da Academia Portuguesa da História e do Instituto Histórico Brasileiro, o
próprio Camilo confessava viver mais pelo coração do que pelo cérebro. Era fiel
aos seus sentimentos de amizade e de amor paterno. Foi com desespero de pai que
acompanhou a loucura do seu filho primogénito, Jorge Camilo, que faleceu em S.
Miguel de Seide aos nove dias de Setembro de 1900. O outro filho, Nuno Plácido
Castelo Branco, viveu até ao dia 23 de Janeiro de 1896. Este era extravagante,
o estroina[22].
Camilo Castelo Branco
chegou a escrever a Ricardo Jorge, que chegava a atingir a baliza do ridículo o
desgraçado da sua estatura quando invocava reminiscências da sua velha graça
para se fingir superior ao seu descompensado infortúnio. Há muitos anos que ele,
tão alegre nos seus livros, se indemnizava dessa ficção, chorando amargamente
no recesso da sua vida solitária. Eram as lágrimas proféticas desse martírio
que ele nunca pôde antever com a perspicácia da sua imaginação tão fértil, tão
prostentada em desgraças. Quando, a relanços de trevas, se lhe prefigurava o
horrendo transe da cegueira, acudia-lhe como um anjo redentor a intensão
resoluta, heróica e briosa do suicídio, como se pode inferir das suas próprias
palavras: «Hoje que apenas tenho olhos
para ver a condensação das trevas, não tenho a fácil coragem de me matar. As
lágrimas de uma mulher trinta anos adorada, e as mãos valiosas de dois amigos têm
sido para mim a âncora lançada ao prego desta incomportável tormenta. Quando
essas mãos benfazejas esmorecerem, e essas lágrimas se gelarem na face morta de
Ana Plácido, então terei a coragem do suicídio – esse heroísmo banal que tem
levantado muitos miseráveis à estatura dum Catão[23]».
O estigma das
avaliações menos positivas ao estado psicológico ou comportamental em Camilo
Castelo Branco, para além de ter começado muito cedo, era muitas vezes
sinalizado, a tinta ferrosa, pela sua própria pena. Atentemos a uma carta
dirigida ao seu amigo José Barbosa e Silva – aquele que, até morrer, foi um dos
seus mais dedicados e compreensivos amigos, sempre de bolsa aberta para o
socorrer –, em 11 de Setembro de 1856, a propósito da Freira do Convento de S.
Bento da Ave-Maria, do Porto, Isabel Cândida Vaz Mourão, com quem manteve uma
prolongada relação amorosa:
«Meu Caro Barbosa.
Causa-te
espanto uma carta minha depois de outra que ontem receberias? Também a mim me
maravilha escrever-ta. São 11 horas da noite, e chego ao Porto, com estes
restos de coração atravessados numa roda de navalhas. É o caso:
Eu
nunca disse a Isabel Cândida as minhas intenções a respeito de ir para Viana,
por que previa o abalo, e receava os efeitos por ela e por mim, que sou um
imbecil, quando sou causa e ao mesmo tempo testemunha duma grande dor. Era
minha intenção deixá-la recolher ao convento, e depois cá de fora escrever-lhe
uma carta, longamente meditada, de modo que o golpe fosse dado com punhal dum
só gume: isto é – tencionava mentir-lhe, dizendo que a minha ida era
simplesmente uma tentativa para o melhoramento da minha saúde.
Hoje,
indo eu levar-lhe minha filha, que se achava aqui há 3 dias, recebeu-a
chorando, sem querer dizer-me a razão por quê. Muito instada, prorrompeu numa
acusação quase violenta à minha ingratidão, e acabou por me dizer que sendo ela
minha amiga era a última que devia saber que eu saía do Porto. Da violência
passou para a mansidão das lágrimas suplicantes, e por fim acabou por ser
assaltada dum terrível incómodo que me assustou. Neste estado, foi-me
impossível dizer-lhe uma só palavra de consolação. Minha filha chorava, e o
médico Ferreira que eventualmente ocorreu neste ensejo, fez-me sentir que a
organização enfraquecida da pobre mulher podia sucumbir a semelhante choque. Eu
estava parvo, e parvo saí quando a noite já adiantada me obrigou.
Aqui
tens uma situação bem especial – uma das minhas diabólicas situações, em que o
coração revive em toda a compaixão que as minhas próprias desgraças não têm
podido desvanecer para com os outros. Isto é uma fatalidade de que não há
partido a tirar. É-me impossível, já agora, ser meu. Há-de haver sempre em mim
um pensamento bom que me escravize ao mal. Sou como aquele que mede a
profundidade do abismo, e não tem a resolução de recuar…»[24]
O médico referido nesta
mesma carta, era um amigo íntimo de Camilo, Joaquim José Ferreira, nascido em
Coimbra, onde concluiu o curso em 1846, tomando pouco tempo depois o partido
médico de Celorico de Basto. Em 1854, transferiu-se para o Porto, onde teve
justa nomeada de habilíssimo clínico e de impudente namorador. De excessivo
esmero no vestuário, era conhecido pelo Ferreira janota. As suas relações de
amizade com Camilo Castelo Branco datam de 1849, o período frenético da boémia
portuense. Joaquim José Ferreira foi testemunha de Camilo no processo de
adultério (1861), exigindo, para depor, que a sessão fosse secreta. Nesse mesmo
ano, pretendendo Camilo fazer uma cura na Casa de Saúde deste mesmo médico,
como já acontecera de outras vezes, em carta de 29 de Janeiro dirigida a
Joaquim Ferreira Moutinho, confidenciar-lhe-ia a suspeita da má disposição do
Dr. Ferreira a seu respeito, pedindo a Joaquim Moutinho para sondar no sentido
de conhecer os seus reais sentimentos.
Como escreveria Maximiano
Lemos, fazendo denotar alguma peculiar conflitualidade de Camilo para com o Dr.
Ferreira, com ressalva deste incidente (talvez uma fantasia de Camilo), Joaquim
José Ferreira manteve-se fiel à amizade cimentada nos delírios da juventude: em
1888 participou na conferência médica, realizada no Porto, sobre a preocupante
saúde do escritor, com os colegas Ricardo Jorge, José de Andrade Gramaxo e
Manuel Lopes Santiago, e em 1890 foi dos poucos que acompanhou o cadáver do infeliz
amigo ao cemitério da Lapa[25].
Segundo Maximiano
Lemos, durante a sua vida, Joaquim José Ferreira «manteve sempre as melhores relações com o grande romancista, mas este
nunca teve em qualquer médico por muito tempo confiança.[26]»
Terminaremos em dois
registos que melhor poderão definir o desnorteamento da existência de Camilo e a
doença que, “longe de lhe alimentar o génio, só lho mutilou e desfigurou,
acabando por extingui-lo”:
«Camilo Castelo Branco foi um nevropata hereditário e ao desvio
patológico da sua função nervosa devem atribuir-se os seus males físicos, as
suas desigualdades de carácter – e o seu génio. A doença, causa primeira de
todo o drama da sua vida, incompatibilizou-o com o meio e daí os ódios que
concitou contra si no largo período de combate de quarenta anos, ódios que,
ainda mal instintos, têm sido o maior entrave à realização da homenagem devida
à memória do seu nome e ao mérito altíssimo da sua obra.[27]»
– escreveu Paulo Osório, em jeito de conclusão, ao seu “esboço de crítica”,
sobre Camilo Castelo Branco.
Por outro lado,
tornando o facto tão actual como à época, a merecer uma reflexão da nossa
parte, citaremos Miguel Bombarda: «O
sofrimento, debaixo dos seus múltiplos aspectos – condições, modalidades,
efeitos –, tem sido objecto de muitas e profundas análises. Mas onde os
psicologistas têm parado é no estudo da acção que a dor, qualquer que seja a
sua forma, vem a exercer sobre aqueles que lhe são menos espectadores. O lugar-comum
de que a dor alheia move à própria dor e a bondade dum coração é aferida pelo
seu compadecimento é, aos parece, o extremo limite até onde se tem ido neste
campo que se ofereceu hoje à nossa consideração e que antevemos fértil em
observações ilustrativas (…)[28]».
E porque estas
extraordinárias considerações de Miguel Bombarda, em jeito de resposta a outras
de Paulo Osório, só por si, ocupariam todo o tempo da nossa modesta
intervenção, ficaremos por uma espécie de “imperativo categórico” à boa maneira
kantiana, mas assente no pensamento de Miguel Bombarda: «E todavia a acção do
médico em estados desses é tão altamente poderosa que faz lástima andem ao
abandono tantos miseráveis, que uma psicoterapia regrada, longe das
brutalidades da sugestão teatral e do hipnotismo, poderia ressuscitar à
felicidade da vida (…). É que não há uma base física que se possa apalpar, nem
ao menos uma base que se figure como representação do espírito…[29]».
Bibliografia:
ARQUIVO CLÍNICO do Centro Hospitalar Conde Ferreira
– SCMP.
AZEVEDO, J. Lúcio de – História dos Cristãos Novos Portugueses (1921). 2.ª ed. Lisboa:
Livraria Clássica Editora, 1975.
BARBOSA, Luiz Xavier – Cem cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada Sociedade
Editora, 1919.
CABRAL, Alexandre – Dicionário de Camilo Castelo Branco. 2.ª ed. revista e aumentada.
Lisboa: Caminho, 2003.
FIER, David – As
(Trans)Figurações do Eu nos Romances de Camilo Castelo Branco (1850-1870).
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
JORGE, Ricardo – Camilo
Castelo Branco: Recordações e impressões-Camilo e António Aires. Lisboa:
Editorial Minerva, s/d.
LEITÃO, Joaquim – Genio da desgraça. Lisboa: Ottosgrafica, 1925.
LEMOS, Maximiano Lemos – Camilo e os médicos. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1920.
NORTON, Luís – Doze
Cartas Inéditas de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Portugália Editora, 1964.
OSÓRIO, Paulo – Camillo
Castello Branco e o Snr. Dr. Bombarda. Porto: Typ. da Empreza Litteraria e
Typographica, 1905.
–
Camillo Castello Branco: Esboço de Crítica.
Lisboa: Livraria Moderna–Editora , 1905.
–
Camilo, a sua vida, o seu génio, a sua
obra. 2.ª ed. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1920.
SARDINHA, António – “O génio de Camilo”. In, In Memoriam
de Camillo. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1925, p.
633-688.
NOTA: Comunicação
apresentada nas VII Jornadas Internacionais
de História da Loucura, Psiquiatria e Saúde Mental, realizadas em Coimbra,
nos dias 9 e 10 de Maio de 2016, numa organização do Centro de Estudos Interdisciplinares
do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS 20 / Grupo de História e Sociologia
da Ciência e da Tecnologia – GHSCT / Sociedade de História Interdisciplinar da
Saúde – SHIS.
[1] António Sardinha foi um adversário da Monarquia da
Carta (1834-1910) chegando, no tempo de estudante na Universidade de
Coimbra, a defender a implantação de uma república em Portugal. Depois de 5 de
Outubro de 1910, durante a Primeira República ficou profundamente desiludido
com ela e acabou por se converter ao ideário realista da monarquia orgânica,
tradicionalista, antiparlamentar do “Integralismo Lusitano”, de que foi um
dos mais destacados defensores. Em 1911 já estava formado em Direito pela
respectiva universidade e no final do ano de 1912, escrevia a comunicar a sua «conversão à Monarquia e ao Catolicismo».
Seus principais inspiradores, ou “pais espirituais”, de acordo com o
pensador e político espanhol Ramiro de Maeztu, foram Eça de Queiroz, Guerra
Junqueiro, Ramalho Ortigão, Fialho d´Almeida e, “um pouco mais atrás”, Oliveira
Martins, Antero de Quental e Camilo Castelo Branco.
[3] Cit. Idem, ibidem, p.
[4] Cf. Idem, ibidem, p. 636.
[5] Paulo Mendes Osório, nascido no
Porto em 1882, e falecido em Graches (arredores de Paris) em 1965, foi escritor
e jornalista de renome, depois de ter desistido do curso da Escola
Médico-Cirúrgica para se dedicar à carreira literária. Depois de fundar o
periódico Alvorada (1896-1897) e de
colaborar intensamente em diversos jornais do País, e defender a política
franquista, acabou por fixar residência em Paris, em 1911, onde se tornou
colaborador de O Século,
correspondente do Diário de Notícias
e director, já em 1922, da versão parisiense deste diário, o Paris-Notícias. (…) Entre as suas obras
destaca-se a biografia de Camilo Castelo Branco, em que o autor intenta
explicar o génio literário deste escritor através da sublimação das tendências
criminais dos seus antepassados. Bem aceite por inúmeras figuras prestigiadas
da sua época – entre eles Teófilo Braga –, esta obra deu origem a uma
prolongada polémica com Miguel Bombarda, que põe em causa, em termos médicos, o
exame psicopático de camilo aí exposto. (In, Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Org. Instituto da
Biblioteca Nacional e do Livro. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994, Volume
III, p. 259-260).
[6] Cit. OSÓRIO, Paulo – Camillo Castello Branco: Esboço de Crítica,
p. 10.
[7] Cit. AZEVEDO, J. Lúcio de – História dos Cristãos Novos Portugueses,
p. 179-180
[8] Cit. OSÓRIO, Paulo – Camilo, a sua vida, o seu génio, a sua obra,
p. 248-249.
[9] Neurose com enfraquecimento da força nervosa, perturbações mentais do tipo tristeza, apatia e, muitas vezes, com indisposições físicas como dores de cabeça, perturbações digestivas,
etc.
[10] Doença nervosa de origem
sifilítica que prova ataxia progressiva dos membros locomotores, pela
degeneração dos cordões posteriores da espinal medula.
[11] Cf. Idem, ibidem, p. 249-250.
[12] Parte da Medicina que descreve,
estuda e classifica as doenças.
[13] Cit. BOMBARDA, Miguel – “Psychologia
de soffrimento… nos que não soffrem”. In, A
Medicina Contemporânea, Anno XIII, N.º 28, Série II – Tomo VIII, 9 de Julho de 1905, p. 217-218.
[14] Incoordenação patológica dos
movimentos do corpo e desordem nos fenómenos psicológicos.
[15] Cit. Idem, ibidem, p. 218.
[16] Tomás Mendes Norton, avô paterno
de Luís Norton (Sócio da Academia Portuguesa de História e do Instituto
Histórico Brasileiro), terminado o curso de Matemática, em Coimbra, isolou-se
romanticamente numa aldeia minhota, perto de Ponte de Lima. Segundo Luís
Norton, o seu avô era um sonhador, um visionário, muito lúcido, de imaginação
vivíssima. Grande proprietário rural no Alto Minho, comprou o Mosteiro de
Refojos do Lima, e ali, naquela antiga fundação teve o infortúnio de encontrar
quadros a óleo, azulejos e esculturas de valor artístico. Utopista como era,
sonhou e convenceu-se que toda a arquitectura do seu convento, restaurado no
século XVI, era obra de Bramante, o mesmo Bramante autor do Templeto e do
Belvedere, do Vaticano. Foi naquele tempo, por volta do ano de 1884, quando o
senhor do Mosteiro de Refojos do Lima consumia febrilmente a sua vida para
provar que Rafael fora o pintor dos quadros existentes naquele mosteiro, que se
iniciou sua correspondência epistolar com Camilo Castelo Branco. Tomás Mendes
Norton era sobrinho de um grande bibliófilo que se chamava também Tomás Norton.
Este e Vieira de Castro foram os amigos que apresentaram o proprietário de
Refojos ao romancista exilado, na altura, em S. Miguel de Seide. Foi em redor
da descoberta feita por Tomás Mendes Norton, que começou uma troca de cartas
entre ele e Camilo, versando principalmente a fantasmagórica tese sobre a
autoria das pinturas de Refojos, tese à qual Camilo deu crédito inteiro. (Cf.
In, NORTON, Luís – Doze cartas inéditas
de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Portugália Editora, 1964, p. 9-13).
[17] Cit. NORTON, Luís – Doze cartas inéditas de Camilo Castelo
Branco, p. 43.
[18]
António Inácio Pereira de Freitas nasceu em S. Miguel de Vizela
(Guimarães), em 1 de Fevereiro de 1842, filho do farmacêutico José de Freitas
Oliveira e de sua mulher D. Cecília Rosa da Silva Pereira. Em 1866, concluiu a
licenciatura na antiga Escola Médico-Cirúrgica do Porto, com a tese «Das águas minerais em geral e da sua
aplicação em particular nas moléstias cirúrgicas». Cerca de um ano depois
veio para Ponte de Lima, onde exerceu clínica durante trinta e oito anos e
deixou o seu nome bem lembrado, não só pela superioridade da sua competência
profissional, mas ainda pelos feitos que em múltiplas actividades culturais o
seu espírito talentoso se expandiu. Profissionalmente sempre a par dos últimos
progressos da arte médica, foi pioneiro na aplicação da dosimetria e da
hipnoterapia, novidades terapêuticas que o entusiasmaram e lhe deram reputação
clinica por toda a Província do Minho. Contava apenas sessenta e três anos de
idade quando morreu em 7 de Setembro de 1905, viúvo de D. Antónia Adelina
Saldanha e sem geração, na casa que mandara edificar na Rua de D. Pedro, hoje
Rua General Norton de Matos – In, Figuras
Limianas, coord. ABREU, João Gomes d’. Ponte de Lima: Município de Ponte de
Lima, 2007, p. 241-242.
[19] Cit. NORTON, Luís – Doze cartas inéditas de Camilo Castelo
Branco, p. 48.
[20] Carta a Costa Santos recebida a
20 de Outubro de 1886.
[21] Cit. Idem, ibidem, p. 60.
[22] Cf. Idem, ibidem, p. 34.
[23] JORGE, Ricardo – Camilo Castelo Branco: Recordações e
impressões…, p. 370-372.
[24] BARBOSA, Luiz Xavier – Cem cartas de Camillo, p. 17-18.
[25] Cf. LEMOS, Maximiano – Camilo e os médicos, p. 294-305.
[26] Cit. Idem, ibidem, p. 303.
[27] Cit. OSÓRIO, Paulo – Camillo Castello Branco: Esboço de Crítica,
p. 149.
[28] Cit. BOMBARDA, Miguel –
“Psychologia de soffrimento… nos que não soffrem”. In, A Medicina Contemporânea, Anno XIII, N.º 28, Série II – Tomo VIII,
9 de Julho de 1905, p. 217.
[29] Cit. Idem, ibidem.
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