quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O SILÊNCIO DAS NUVENS: A prova do silêncio em Amândio Sousa Dantas.

“As suas palavras, apesar da inquietude que deixam transparecer, questionam sentimentos e atitudes, fazem repensar, mas deixam quase sempre um apelo de esperança, de amor e alegria…”

 

Fernando Pereira

(Director do Jornal Alto Minho)

 Não é poeta quem quer… Dissemo-lo antes como o diremos hoje, se tivermos em conta a ética e a coerência das nossas palavras quando afirmamos que Amândio Sousa Dantas é um Poeta na verdadeira acessão da palavra, dada a circunstância de podermos beber das suas próprias palavras um profundo sentimento existencial, vivido e aprofundado pela experiência e interioridade de cada poema, enquanto instrumentos da própria vida. O conceito do eterno retorno permanece na poesia de Amândio Sousa Dantas. Daí, a intemporalidade do poeta e da sua poesia.

Amândio Sousa Dantas

Não fosse o confinamento forçado a que temos estado sujeitos, a par da desencarnação da Mãe do Poeta, por certo que a nossa proximidade manter-se-ia, à boa maneira berkeliana, longe da realidade material independente dos nossos pensamentos, aconchegada ao mundo das nossas representações, onde o SER é ser percebido ou perceber. Com o desabafo enlutado – em “purificação pelo delírio” – do Amândio Sousa Dantas, viajou até nós, a uns tempos a esta parte, o seu último brado poético, O SILÊNCIO DAS NUVENS (Agosto de 2019). Estava feita a catarse – Katharsis, na obra POÉTICA de Aristóteles –, sentido pela “depuração” da musicalidade harmoniosa, quando nos traz (levando) o seu poema para o nosso silêncio, tendo em conta que, no dizer do Poeta, cada um de nós leva a prova do seu silêncio, vozes em fios invisíveis que tecem o próprio labirinto de cada um de nós, conhecendo o peso do coração, sem saber(mos) de onde vem tanta inquietação: Compreendi, sim, e concordo que existem duas formas de Katharsis; uma é a que diz respeito à alma; e outra, a que se refere ao corpo, e que é distinta desta. – no dizer de Aristóteles.

Já uma vez o Poeta escreveu, a propósito das vivências “com o fogo da memória”, sem que o tornemos repetitivo, nesta forma e desejo de conhecer o mundo entre a multidão, dando-lhe o espaço que ela pede, visionando-a entre os plátanos: Há em todos nós uma morada existencial, assim, pelo que sei da minha experiência, a interioridade do poema é instrumento comum (e solitário) da própria vida. Não se consegue ver o essencial sem os mistérios da existência: Ora levantando os olhos face às injustiças, ora com um olhar conciliador à justa decisão.

O Silêncio das Nuvens abre a mão do criador, talvez mão do Poeta que escuta a sede demorada, / aquele adeus que não volta, / o abraço desejado, o pranto, / e todo o silêncio dos teus (seus) passos; / a fonte, a perda: / Ai, a nascente que se afasta. / O golpe do amor – por sua asa. / A ferida, o sangue… (p. 15), qual simulação do subconsciente faz renascer os “germes de restituição” para um novo estado do mundo, íntimo, evoluindo sempre, e cujo próximo será o último. O Poeta voltou ao “eterno retorno” que se funde com a Mãe Natureza, cujo espaço físico o faz acreditar “que o signo da linguagem nos mostra a chave do tempo”, mesmo quando o Verão parece anunciar que acabaram os meses do silêncio, só porque o céu cobre-se de vozes. Premonição nas noites mal dormidas, onde “todas coisas repousam no seu lugar”, até na descoberta de um deus adormecido: Quando morre um homem [mulher] de uma rua / é, assim, como se o nome dessa rua / fosse fechada: / na luz dos seus próprios olhos… (p. 25), porque, no dizer do Poeta, “o tempo de uma vida é um relógio que se apaga”.

Apesar de não manifestar qualquer tipo de desalento, Amândio Sousa Dantas acredita que nem tudo são pétalas no caminho, nosso e dele, tendo em conta a “beleza da flor tem o seu próprio tempo”. O confronto maniqueísta entre o bem e o mal continua a ser uma das suas preocupações cognitivas. Daí não estranhar o tempo do absurdo, mesmo quando tem a plena consciência de que irá “morrer com toda essa solidão por descobrir”. Há sempre um rosto que atravessa a noite. Várias vezes. Repetidas vezes.

Há um percurso cadenciado neste seu Silêncio das Nuvens, através da espada que o fere e faz sangrar, o sangue do amor que não tem medida, qual elegia ao seu irmão, porque do seu cálice provo, a espada que o fere é a mesma que o sara. Vale-lhe o conhecimento do Universo, numa espécie de transmutação – quiçá, metafísica – onde Outro homem / Do outro lado da Terra: Ia semeando o seu trigo (p. 28). O canto permanece na grandiosidade do coração de Amândio Sousa Dantas, nem que seja para questionar a falta de pão em outra mesa; as mentiras dos dias, os silêncios; saber o que a palavra quer de qualquer um de nós; o vento que não corta a alma, porque “ali se abre a trincheira do sentimento”. De facto, a poesia, sendo bem feita, mesmo contrariando o Poeta, tem morada de cristal. Daí, estar feliz quando chove e triste quando faz sol. O quarto, com todo o peso do seu silêncio, qual lágrima vertida, faz transparecer o fundo da saudade / que anda às voltas pelo quarto / e sem que o sono se aproxime (p. 39). Nada que o Poeta, sem ser vidente, não o diga no poema: O coração da nossa mãe sabe muito de nós; / porém, o melhor é escutar o seu silêncio (p. 43).

Vai longa a nossa perscrutação à Alma do Poeta, quando nunca foi nosso propósito ou presunção explicar a poesia. Faz unicamente sentido, sentir, cada um à sua maneira, as palavras do Poeta: a saudade que nos prende ao instante; o silêncio que nos leva à funda palavra que repousa; a coragem de vencer o próprio medo; o caber em nós o que mais queremos; o verso que se inclina como um ramo; os céus que não escrevem o nosso destino; a existência pelo nosso silêncio, mesmo quando há tantas vozes de olhos no chão; cada página que se abre num livro: O Verbo, / a Iniciação. / o mistério, / e por ele – / um coro antigo. / até ao infinito (p. 66). O infinito apesar algo indefinido, por carecer de fim, limite ou termo, torna-se potencialmente positivo n’O Silêncio das Nuvens, quando o Poeta segue a existência do poema.           

Terminaríamos em momentos em que o Poeta parece descansar, aparentemente virando o olhar mais para as flores do campo, esquecendo ou procurando esquecer a imensidão do mar, levantando uma casa nas margens do poema e deixando o desejo no espaço imaginado, fruto apenas do silêncio muito seu e da herança de seus sonhos: Tanta quietude entre o verde e o espaço das nuvens. / Aqui: só a canção do silêncio é a única fonte, / e tão poucos a sabem escutar. O canto do silêncio subindo a montanha, alquimicamente plasmado na sombra e na descoberta – a noite que não dorme, / o sorriso do dia, / a vida de óculos escuros, / o sol fugidio –, no céu azul, no fogo, na ternura do mar, na nuvem, na tempestade, e o coração no éter, fórmula mágica que assegura o calor dos corpos e a função dos cinco sentidos, gravando todos os acontecimentos: MEMÓRIA.

Ainda que através do nosso subjectivo sentir, este é o nosso “retrato do poeta”. O POETA a resgatar!
 
(In, O Anunciador das Feiras Novas, Ano XXXVIII, n.º 38, Setembro 2021, p. 146-148)

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