«A questão política
essencial é a da justiça das quotas de reserva de cargos para os quais é
necessário ser membro de determinado grupo, embora, presumivelmente, tal não
constitua qualificação suficiente…»
Michael Walzer
Da leitura que fizemos – e continuamos a fazer – de Michael
Walzer, nomeadamente da sua obra mais emblemática «As Esferas da Justiça»,
concluiríamos que numa sociedade em que os significados sociais se encontram
definidos e hierarquizados, a justiça deveria vir em auxílio da desigualdade, e
a sociedade humana reunir-se para compartilhar, dividir e trocar. E quando
falamos do conceito de justiça distributiva referimo-nos ao ser, fazer e ter,
quer ao nível da produção quer ao nível do consumo, abarcando a identidade e a
posição social, a terra, o capital ou os bens pessoais de cada um de nós. Por
isso, é que identificamos diferentes ideologias e diferentes combinações
políticas perante esta realidade. Dado que nunca existiu um meio universal de
trocas, também não há um único acesso ao universo de combinações e ideologias
distributivas.
Apesar de o dinheiro ser ao longo da aventura humana o meio
mais comum de troca, identificamos vasta impotência das autoridades públicas em
assegurar uma regulação total na sociedade. Além de redes familiares e mercados
negros são sobejamente conhecidas as alianças burocráticas e organizações
políticas e religiosas clandestinas. Segundo Michael Walzer, o particularismo
da história, da cultura e da qualidade de membro constitui, cada dia mais, este
pluralismo complexo que condiciona a construção humana da justiça. Sendo certo
que os bens objecto da justiça distributiva são bens sociais, estamos perante
um cenário onde as mulheres e os homens possuem identidades concretas devido ao
modo como concebem e criam e depois possuem e utilizam os mesmos bens sociais.
Cada um deles determina os seus bens primários ou básicos e os universos morais
ou materiais em que caminham ou sonham.
A história testemunha-nos que o significado dos bens
determina ou orienta a deslocação humana. Daí, que as distribuições, justas ou
injustas, e os respectivos significados sociais se alteram com os tempos. Na teoria,
o poder político será, em democracia, o bem predominante, passível de ser
convertível em qualquer modo que os cidadãos queiram. À partida todos nos
devemos concentrar na atenuação do predomínio e não, ou não essencialmente, na
destruição ou limitação do monopólio. Tal como a livre troca também o
merecimento nos dá impressão de ser tanto ilimitado como pluralista. Todavia,
sabemos que o merecimento é uma pretensão sólida, mas que reivindica um juízo
difícil e só em condições muito excepcionais potenciará distribuições
específicas.
A história também nos demonstrou que cada época se
caracterizou por um quadro ou quadros de um mundo social especial, onde os
significados sociais se sobrepõem e aderem uns aos outros. Temos a noção de
quanto mais perfeita é essa adesão, menos possibilidade teremos de pensar
sequer na igualdade complexa, dado que todos os bens se apresentam, em
república, como “coroas e tronos numa monarquia hereditária”. E aqui falámos do
contraditório e da negação de uma república hierarquizada.
A igualdade complexa exige a defesa dos limites; funciona
por meio da diferenciação dos bens, assim como a hierarquia funciona por meio
da diferenciação das pessoas. A política presente é produto, ainda que o tentem
negar, da política passada, criando um cenário inevitável para a apreciação da
justiça distributiva, quando a única alternativa plausível à comunidade
política é a própria Humanidade, a sociedade das nações, o mundo inteiro. A
providência comunitária é importante porque nos mostra o valor da qualidade de
membro. Sob a égide da cultura, religião e política é que todas as outras
coisas que carecemos se transformam em necessidades socialmente reconhecidas e
assumem uma forma histórica e definida. O mais vulgar na história das lutas
populares é a exigência, não da libertação, mas sim do cumprimento: que o Estado
satisfaça os objectivos que afirma satisfazer e relativamente a todos os seus
membros. A comunidade política cresce por invasão sempre que grupos até aí
excluídos, um após outro, exigem o seu quinhão de segurança e previdência.
A justiça distributiva na esfera da segurança e da
previdência tem um duplo significado: em primeiro lugar, reporta-se ao
reconhecimento da necessidade e, em segundo, ao reconhecimento de qualidade de
membro. O direito que os membros podem legitimamente reivindicar é de carácter
mais geral. Assim, nenhuma comunidade pode permitir que os seus membros morram
de fome, havendo víveres disponíveis para os alimentar. A previdência tem
geralmente como objectivo abolir o predomínio do dinheiro na esfera da
necessidade, assim a participação activa dos cidadãos em matéria de
previdência, e também de segurança, tem como objectivo assegurar que o
predomínio do dinheiro não venha a ser substituído pelo predomínio do poder
político.
Segundo o Eclesiastes o dinheiro paga todas as coisas. Karl
Marx apelidou-o de alcoviteiro universal, dada a propensão que revela para
ajustar uniões escandalosas entre as pessoas e os bens e por dizimar todas as
barreiras naturais e morais. O seu endeusamento é a alavanca suprema da
sociedade capitalista.
Pena é que os políticos – detractores e coveiros da nobre
arte de fazer política – leiam muito pouco, mas se achem no direito de se
sentirem iluminados pelo predomínio do dinheiro na esfera da necessidade. E
falam de economia, excluindo a participação activa dos cidadãos em matéria de
previdência e segurança. O dinheiro (em papel), esse, está em “offshores” e quase
todos os dias lá vai saindo da cartola mais um “presumível inocente” até ao seu
julgamento e condenação pelas esferas da justiça. É apenas um arguido! – dizem-nos com alguma safadeza.
Para terminarmos, uma questão se coloca: – Que esferas da justiça, para a Europa e o
Portugal de hoje?
(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1249, 9/10 de Julho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-24)
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