«De entre os Códridas já
não se elegiam reis, por se considerar que se tinham tornado efeminados e
brandos. Hipómenes, um dos Códridas, quis afastar esta acusação. Tendo
surpreendido um amante com a sua filha Leimônê, matou-o amarrando-o ao carro
com sua filha, e a esta encerrou-a com um cavalo até que morreu…»
Aristóteles
Um dia propuseram-nos um exercício, onde nos confrontamos
com dois pequenos excertos dos textos de Ésquines (Contra Timarco) e de Aristóteles (Fragmento da Constituição dos Atenienses), e por acharmos que, tal
como afirmaria Richard E. Palmer, em hermenêutica o processo de interpretação
“vai de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente
ou escondido ”, aventamos a hipótese de o objecto de interpretação, neste caso
concreto os dois pequenos textos, poder ser constituído por símbolos
mitológicos, sociais ou literários.
Inicialmente, espelhando uma certa desarticulação de
raciocínio, só porque fomos iludidos pelo cenário, desprezamos o conteúdo ou o
tema nevrálgico de tais “construções literárias”. Na altura, tomaríamos a
interpretação certa, envoltos na máxima grega «Antes a Morte que a Desonra», sendo que o castigo corporal era
encarado, na antiga Grécia, como modelar. Os condimentos que nos poderiam
conduzir a tal interpretação estavam lá, mesmo quando o fizemos – ou procuramos
fazer – à luz da história, sem esquecermos o tempo e o espaço. Mas, sem querer,
apenas estávamos a dissimular uma construção interpretativa de “pescadinha de
rabo na boca”. Apesar de termos tomado em linha de conta o sentido figurado ou
metafórico, levados pelos conceitos do exemplo moral, numa Grécia da sabedoria,
da beleza e da justiça, dado que as mulheres estavam sujeitas a restrições –
eram bastante dominadas pelos maridos, pais ou irmãos e raramente participavam
na política ou em qualquer outra forma da vida social –, só posteriormente nos
apercebemos do nosso erro de raciocínio.
Enquanto nos enredávamos na teia “Do cavalo e da jovem
rapariga”, sentíamos – ou ficaríamos com a sensação de – que, como uma
centelha, a verdadeira “jurisprudência” do zeloso e guardião pai, da virgindade
da jovem rapariga, ocultava algo bem mais grave do que a simples disciplina
exemplar do castigo corporal, pela agravada desonra perpetrada por sua casta
filha. Os termos, quer num quer noutro texto – “...ao descobrir a sua própria
filha seduzida e que não tinha guardado a sua virgindade com decoro...” (Contra Timarco) ou “Tendo surpreendido
um amante com a sua filha...” (Constituição
dos Atenienses) – levar-nos-iam a pensar, ainda que erradamente, na
exemplaridade moral, tendo em conta que na Grécia Antiga a violência fazia
parte da sua cultura e, quiçá, do seu subconsciente. A acidentalidade do espaço
geográfico; a luta pela hegemonia; as querelas locais – de que é exemplo o
duelo entre Ésquines e Demóstenes –; a expressão e sobrevivência dos próprios
deuses, ainda que simbolizados pelas forças da Natureza, ostentavam também os
sentimentos bons ou maus dos seres humanos – para os Gregos, todos os homens se
transformavam em deuses logo após a morte –, revestindo-se em histórias
mitológicas, ora poéticas e graciosas, ora absurdas e pueris, ora imorais e
grosseiras; e a própria “Tragédia Grega”, levar-nos-ia a equacionar a própria
violência como factor preponderante para a interpretação dos textos.
É com base no sentido de interpretarmos as palavras, leis,
códices ou textos sagrados, que utilizamos a hermenêutica, porque se nos
configura como um método afastado da arbitrariedade interpretativa romântica e
da redução naturalista. Abominamos o autoflagelo e o assoberbado pacifismo do
sofrimento como expiação. Toda (ou quase toda) a gente sabe que escrevemos uma
deambulação trágico-literária, «Baliza Trágica de Um Naufrágio», que ao passar
pela “mãos” de uma prestigiada editora, chegaríamos a entender a resposta à
nossa proposta da sua publicação, e que registamos com apreço: Conquanto comece com uma proposta de
romance, opta depois o autor por um colóquio com vários amigos, onde são
debatidas múltiplas questões de teor filosófico, político e social, com
recorrência a uma erudição tão rica quanto vasta, que atravessam vários
períodos da história contemporânea e actual, incluindo a do nosso país. / Pese
embora o interesse de todas elas, põem-se-me muitas dúvidas quanto à
receptividade que o livro poderá ter junto de um público que na sua grande
maioria está mais virado para uma literatura de evasão que não exija muito da
sua massa cinzenta. / É ver o êxito que têm os livros que vão de encontro a
essa preferência, como é o caso do José Rodrigues dos Santos... – Assim
não, obrigado. Antes escritor da aldeia, sem rosto, que mercenário… bebendo nas
águas do Lethes, observando, lendo e escrevendo: «Gaspar Malheiro, conhecendo
bem João Rosas como bem conhece e admira, partilha da sua bem fundamentada
ideia de que a tarefa ciclópica para mudar o paradigma dessa “desconstrução”,
será preciso incomodar milhares de tecnocratas e sobretudo políticos cuja razão
de ser – e rendimentos – advêm da União Europeia tal como existe hoje. – Mas o processo de desconstrução europeia é
inevitável e o país melhor preparado para liderá-lo é a Grã-Bretanha, uma vez
que sempre manifestou um saudável cepticismo em relação ao construtivismo
continental… – afiança João Cardoso Rosas» (In, p. 332 do Baliza Trágica de
Um Naufrágio). E não somos videntes…
Esquecendo-nos por completo do cavalo e da jovem rapariga,
assistimos serenamente à saída da Grã-Bretanha da União Europeia, mantendo a
televisão em “off”, face às incursões dos malogrados “objectores de
consciência” (com prognósticos no fim do jogo) e aos ignorantes, e/ou
ajumentados, economistas e políticos de pacotilha. Tal como questionaria Eça de
Queiroz, em 1891: Que fazer? Que esperar?
Portugal tem atravessado crises igualmente más: – mas nelas nunca nos faltaram
nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não
temos, dinheiro também não – pelo menos o Estado não tem: – e homens não os há,
ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise
me parece a pior – e sem cura –, sentimos algum cansaço e cepticismo na
mudança das fraldas.
Afinal, resolvemos voltar à hermenêutica “do cavalo e
da jovem rapariga”, porque acabamos por descobrir que a nossa própria filha
Europa foi seduzida e não soube guardar a sua virgindade com decoro… Scribitur ad narrandum!
(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1248, 30 de Junho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-23)
Quando a tal editora diz que "põem-se-me muitas dúvidas quanto à receptividade que o livro poderá ter junto de um público que na sua grande maioria está mais virado para uma literatura de evasão que não exija muito da sua massa cinzenta", julgo ter interpretado bem, mesmo sem recorrer à hermenêutica, que queriam dizer apenas "o livro não é comercial".
ResponderEliminarMas o papel das editoras será publicar o que os leitores gostam ou o que eles devem ler?
Do mesmo mal padecem canais de televisão, revistas, etc., etc., pelo que a sociedade vai sendo formatada para a estupidez natural (o Salazar não conseguiu melhor...).
Li o "Baliza trágica de um naufrágio" e gostei. Não é um livro fácil, na verdade, mas só porque faz pensar (coisa que as Editoras não querem, para não maçar os seus queridos leitores...).
A Europa está nas mãos de gente fiel ao capital e ao neoliberalismo selvagem, cuja missão já não é explorar trabalhadores mas sim países inteiros (é muito mais rentável). Mas vai acabar mal, muito mal. E o princípio do fim já começou com a saída da Inglaterra. Mas a culpada é a Europa, que nunca devia ter permitido à Inglaterra manter a Libra, porque se tivesse aderido ao Euro não sairia tão facilmente.
Escusado será dizer que gostei desta crónica em particular e do blog em geral (tal como do Muxicongo).
Um abraço, caro amigo Porfírio.