sexta-feira, 1 de julho de 2016

«Do cavalo e da jovem rapariga» à hermenêutica de uma Europa em desconstrução!

«De entre os Códridas já não se elegiam reis, por se considerar que se tinham tornado efeminados e brandos. Hipómenes, um dos Códridas, quis afastar esta acusação. Tendo surpreendido um amante com a sua filha Leimônê, matou-o amarrando-o ao carro com sua filha, e a esta encerrou-a com um cavalo até que morreu…»

Aristóteles

Um dia propuseram-nos um exercício, onde nos confrontamos com dois pequenos excertos dos textos de Ésquines (Contra Timarco) e de Aristóteles (Fragmento da Constituição dos Atenienses), e por acharmos que, tal como afirmaria Richard E. Palmer, em hermenêutica o processo de interpretação “vai de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente ou escondido ”, aventamos a hipótese de o objecto de interpretação, neste caso concreto os dois pequenos textos, poder ser constituído por símbolos mitológicos, sociais ou literários.
Inicialmente, espelhando uma certa desarticulação de raciocínio, só porque fomos iludidos pelo cenário, desprezamos o conteúdo ou o tema nevrálgico de tais “construções literárias”. Na altura, tomaríamos a interpretação certa, envoltos na máxima grega «Antes a Morte que a Desonra», sendo que o castigo corporal era encarado, na antiga Grécia, como modelar. Os condimentos que nos poderiam conduzir a tal interpretação estavam lá, mesmo quando o fizemos – ou procuramos fazer – à luz da história, sem esquecermos o tempo e o espaço. Mas, sem querer, apenas estávamos a dissimular uma construção interpretativa de “pescadinha de rabo na boca”. Apesar de termos tomado em linha de conta o sentido figurado ou metafórico, levados pelos conceitos do exemplo moral, numa Grécia da sabedoria, da beleza e da justiça, dado que as mulheres estavam sujeitas a restrições – eram bastante dominadas pelos maridos, pais ou irmãos e raramente participavam na política ou em qualquer outra forma da vida social –, só posteriormente nos apercebemos do nosso erro de raciocínio.
Enquanto nos enredávamos na teia “Do cavalo e da jovem rapariga”, sentíamos – ou ficaríamos com a sensação de – que, como uma centelha, a verdadeira “jurisprudência” do zeloso e guardião pai, da virgindade da jovem rapariga, ocultava algo bem mais grave do que a simples disciplina exemplar do castigo corporal, pela agravada desonra perpetrada por sua casta filha. Os termos, quer num quer noutro texto – “...ao descobrir a sua própria filha seduzida e que não tinha guardado a sua virgindade com decoro...” (Contra Timarco) ou “Tendo surpreendido um amante com a sua filha...” (Constituição dos Atenienses) – levar-nos-iam a pensar, ainda que erradamente, na exemplaridade moral, tendo em conta que na Grécia Antiga a violência fazia parte da sua cultura e, quiçá, do seu subconsciente. A acidentalidade do espaço geográfico; a luta pela hegemonia; as querelas locais – de que é exemplo o duelo entre Ésquines e Demóstenes –; a expressão e sobrevivência dos próprios deuses, ainda que simbolizados pelas forças da Natureza, ostentavam também os sentimentos bons ou maus dos seres humanos – para os Gregos, todos os homens se transformavam em deuses logo após a morte –, revestindo-se em histórias mitológicas, ora poéticas e graciosas, ora absurdas e pueris, ora imorais e grosseiras; e a própria “Tragédia Grega”, levar-nos-ia a equacionar a própria violência como factor preponderante para a interpretação dos textos.


É com base no sentido de interpretarmos as palavras, leis, códices ou textos sagrados, que utilizamos a hermenêutica, porque se nos configura como um método afastado da arbitrariedade interpretativa romântica e da redução naturalista. Abominamos o autoflagelo e o assoberbado pacifismo do sofrimento como expiação. Toda (ou quase toda) a gente sabe que escrevemos uma deambulação trágico-literária, «Baliza Trágica de Um Naufrágio», que ao passar pela “mãos” de uma prestigiada editora, chegaríamos a entender a resposta à nossa proposta da sua publicação, e que registamos com apreço: Conquanto comece com uma proposta de romance, opta depois o autor por um colóquio com vários amigos, onde são debatidas múltiplas questões de teor filosófico, político e social, com recorrência a uma erudição tão rica quanto vasta, que atravessam vários períodos da história contemporânea e actual, incluindo a do nosso país. / Pese embora o interesse de todas elas, põem-se-me muitas dúvidas quanto à receptividade que o livro poderá ter junto de um público que na sua grande maioria está mais virado para uma literatura de evasão que não exija muito da sua massa cinzenta. / É ver o êxito que têm os livros que vão de encontro a essa preferência, como é o caso do José Rodrigues dos Santos... – Assim não, obrigado. Antes escritor da aldeia, sem rosto, que mercenário… bebendo nas águas do Lethes, observando, lendo e escrevendo: «Gaspar Malheiro, conhecendo bem João Rosas como bem conhece e admira, partilha da sua bem fundamentada ideia de que a tarefa ciclópica para mudar o paradigma dessa “desconstrução”, será preciso incomodar milhares de tecnocratas e sobretudo políticos cuja razão de ser – e rendimentos – advêm da União Europeia tal como existe hoje. – Mas o processo de desconstrução europeia é inevitável e o país melhor preparado para liderá-lo é a Grã-Bretanha, uma vez que sempre manifestou um saudável cepticismo em relação ao construtivismo continental… – afiança João Cardoso Rosas» (In, p. 332 do Baliza Trágica de Um Naufrágio). E não somos videntes…
Esquecendo-nos por completo do cavalo e da jovem rapariga, assistimos serenamente à saída da Grã-Bretanha da União Europeia, mantendo a televisão em “off”, face às incursões dos malogrados “objectores de consciência” (com prognósticos no fim do jogo) e aos ignorantes, e/ou ajumentados, economistas e políticos de pacotilha. Tal como questionaria Eça de Queiroz, em 1891: Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: – mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não – pelo menos o Estado não tem: – e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior – e sem cura –, sentimos algum cansaço e cepticismo na mudança das fraldas.
Afinal, resolvemos voltar à hermenêutica “do cavalo e da jovem rapariga”, porque acabamos por descobrir que a nossa própria filha Europa foi seduzida e não soube guardar a sua virgindade com decoro… Scribitur ad narrandum!

(In, Notícias da Barca, Ano XL, N.º 1248, 30 de Junho de 2016, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes-23)

1 comentário:

  1. Quando a tal editora diz que "põem-se-me muitas dúvidas quanto à receptividade que o livro poderá ter junto de um público que na sua grande maioria está mais virado para uma literatura de evasão que não exija muito da sua massa cinzenta", julgo ter interpretado bem, mesmo sem recorrer à hermenêutica, que queriam dizer apenas "o livro não é comercial".
    Mas o papel das editoras será publicar o que os leitores gostam ou o que eles devem ler?
    Do mesmo mal padecem canais de televisão, revistas, etc., etc., pelo que a sociedade vai sendo formatada para a estupidez natural (o Salazar não conseguiu melhor...).
    Li o "Baliza trágica de um naufrágio" e gostei. Não é um livro fácil, na verdade, mas só porque faz pensar (coisa que as Editoras não querem, para não maçar os seus queridos leitores...).
    A Europa está nas mãos de gente fiel ao capital e ao neoliberalismo selvagem, cuja missão já não é explorar trabalhadores mas sim países inteiros (é muito mais rentável). Mas vai acabar mal, muito mal. E o princípio do fim já começou com a saída da Inglaterra. Mas a culpada é a Europa, que nunca devia ter permitido à Inglaterra manter a Libra, porque se tivesse aderido ao Euro não sairia tão facilmente.
    Escusado será dizer que gostei desta crónica em particular e do blog em geral (tal como do Muxicongo).
    Um abraço, caro amigo Porfírio.

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