Estamos em Maio 1917, e tal como
acontecia um pouco por todo o país e por terras de França, em Ponte de Lima, os
acontecimentos da Grande Guerra iam-se sucedendo como um turbilhão em volta de
um abismo. A imprensa alemã dá conta da preocupação da série de fracassos que
vem sofrendo o seu exército na campanha da primavera no ocidente, acerca de
cujos êxitos se tinham concebido em todo o império as mais belas esperanças. Na
altura, não havia um único crítico militar alemão que não reconhecesse a grande
superioridade dos aliados tanto em material de guerra como em força numérica
das tropas de ofensiva. Contudo, a “guerra infame”, como os jornais a classificavam,
ainda estava longe de ser resolvida.
É precisamente neste período primaveril,
flagelado pela guerra, que os jornais regionais do Alto Minho[1]
dão conta do passamento do escultor limiano Aleixo de Queiroz Ribeiro, Conde de
Santa Eulália:
Na
egreja de Refojos, concelho de Ponte do Lima, realisou-se na quarta-feira o
funeral do sr. conde de Santa Eulalia, assistindo grande numero de pessoas de
categoria social.
Em
differentes turnos pegaram ás toalhas do féretro os srs. dr. Agostinho A.
Figueiredo Lobo e Silva, dr. Gaspar Malheiro Pereira Peixoto, João Teixeira de
Queiroz e Vasconcellos, dr. Francisco Teixeira de Queiroz, dr. Francisco
Lacerda, José Candido da Silva Ramalho, Francisco Antonio do Valle, Antonio J.
Cerqueira de Souza, João de Brito Lima, Gonçalo de Abreu Coutinho, Antonio de
Abreu Calheiros de Noronha Pereira Coutinho (Paço de Victorino), dr. Francisco
de Magalhães, Gaspar Castro, Antonio Costa Pereira Lacerda.
A
chave da urna foi entregue ao snr. dr. Antonio Homem da Silveira Sampaio e
Mello.
Entre
as varias corôas e bouquets depostas no ataúde destacava-se um lindo ramo de
flôres das exmas. filhas do sr. dr. Antonio Homem da Silveira Sampaio e Mello.
Este
respeitável cavalheiro, suffragando a alma do finado mandou distribuir 20$000
réis pelos seguintes estabelecimentos de beneficencia de Ponte do Lima: Asylo
Camões e Associação de Caridade 7$000 a cada, e Asylo D. Maria Pia 6$000[2].
Após uma longa e torturante enfermidade,
torturado “há cerca de três meses por uma doença incurável”[3],
faleceu a 6 de Maio de 1917, com quarenta e nove anos de idade, na sua quinta
de Refóios do Lima, Aleixo de Queiroz Ribeiro de Sotto-Mayor d’Almeida e Vasconcelos[4],
Conde de Santa Eulália. «Reza a lenda que o seu cão apareceu morto, na
madrugada seguinte, à porta do quarto onde o corpo jazia em câmara ardente. O
enterro teve lugar a 10 de Maio, no cemitério de Refojos do Lima e, segundo os
jornais da época, a ele assistiram mais de oitenta eclesiásticos, bem como um
grande número de pessoas oriundas de Ponte de Lima, de Viana, dos Arcos de
Valdevez e de Ponte da Barca, no que foi considerado pelo Jornal de Vianna uma “eloquente manifestação de saudade prestada à
memória de tão ínclito cidadão”».[5]
Dando conta da sua morte, os jornais
regionais penalizavam-se por este triste acontecimento e lamentavam o
desaparecimento do homem que, o sucumbindo em idade ainda não avançada, teve
uma vida agitada, invulgar, entretecida de incidentes originais e de lances de
larga notoriedade.
Sem querermos fazer deste pequeno
apontamento um trabalho exaustivo, e porque tal “atrevimento” não se
configuraria (ou ajustaria) ao propósito desta publicação “anunciadora” das Feiras
Novas, apenas referiremos algumas notas, muito curtas, dadas à estampa
pelos jornais regionais, quando salientam que Aleixo de Queiroz Ribeiro, ainda
muito moço, sentindo em si uma vocação irresistível, dedicou-se apaixonadamente
à escultura. Com leves noções desta arte maravilhosa produziu desde logo alguns
trabalhos que surpreenderam pelo mérito da modelação e pela firmeza e arte bem
cuidada do cinzel. “Que nos lembre”[6], a
sua primeira revelação de artista, após alguns trabalhos preliminares, foi
nesta cidade (Viana do Castelo) a feitura em gesso do busto de Luiz Pinto de
Mesquita Carvalho, então coronel de Infantaria, que morreu general reformado.
Depois disso, Aleixo de Queiroz Ribeiro retirou para Paris, onde frequentou a
Escola de Belas Artes. Ali produziu trabalhos que sobre ele chamaram
imediatamente a atenção dos meios artísticos.
Entre esses trabalhos destacaram-se um
busto de um imperador romano e o medalhão em bronze do imperador Menelik, da Abissínia,
que pessoalmente foi oferecer ao Negus
então triunfante pela sua retumbante vitória sobre os exércitos italianos[7].
Regressado a Portugal fez,
gratuitamente, e por apreço pela cidade de Viana do Castelo, a estátua de bronze,
representando o Coração de Jesus, que ali se ergueu em modesto pedestal no alto
de Santa Luzia. E da obra, com laivos dos trabalhos do ilustre Rodin, especialmente ao semblante da
imagem, que é deveras notável, foi na altura muito discutida pelos críticos
provocando grandes controvérsias quando esteve exposta e Lisboa antes de ser
expedida para Viana do Castelo.
Depois entrou no concurso para o
monumento ao grande homem da ciência Dr. Souza Martins e o seu projecto foi
adoptado unanimemente pelo júri.
Executado o trabalho, foi inaugurada
solenemente a estátua. Mais tarde, após uma série de críticas percucientes e
duma guerra a outrance, que para ser
justa deveria ter sido muito antes, a estátua foi condenada e demolida, sendo
substituída pela que actualmente se ergue no mesmo local.
Desgostoso com este facto Aleixo de
Queiroz Ribeiro resolveu sair do país e, em 1902, foi para os Estados Unidos da
América, para trabalhar na exposição de St. Louis Missouri, realizada em 1904.
Em 1905 foi nomeado cônsul de Portugal em Chicago e em 3 de Setembro de 1908
foi-lhe atribuído pelo Rei D. Manuel II o título de Conde de Santa Eulália. Ali
continuou o trabalho, mas o seu casamento com uma senhora americana, Sarah
Elizabeth Stetson, viúva do multimilionário e filantropo John B. Stetson, dono
da maior fábrica de chapéus do mundo, a Stetson Hats & Company, distinta e
respeitável, possuidora de uma enorme fortuna, distraiu-o da arte, que ele
abandonou por completo, vindo então muitas vezes a Portugal, onde adquiriu
vastas propriedades, dedicando-se afanosamente à lavoura, e à criação e
mantença duma caudelaria, onde por vezes teve magníficos e custosos exemplares.
A energia do seu temperamento e um tal ou qual desequilíbrio mórbido das suas
faculdades, que eram notáveis, deram uma vida tempestuosa a este homem que
poderia gozar uma existência despreocupada e feliz, invejável sobre todos os
pontos de vista.
Assim
morreu ainda novo, quase isolado numa aldeia, longe da sua respeitabilíssima
esposa, que a estas horas, segundo nos consta, vem em viagem da América, de
onde saiu, apesar dos enormes riscos da viagem, para vir acompanhar o marido na
sua doença, logo que dela teve notícia.
Como
se vê, por isto que aí deixamos escrito muito à pressa, morreu alguém, um homem
que não era vulgar nem banal, um artista notável e um cidadão que para os seus
compatriotas teve sempre carinhos e prelecções especiais, e tanto que podendo
na América, em plena opulência e sem cuidados, no egoísmo que tantos teriam,
veio encerrar-se na linda região que lhe foi berço e onde agora caiu prostrado
pela morte, depois de uma longa e trabalhosa agonia[8].
Segundo José Luís Branco, Aleixo de
Queiroz Ribeiro foi sepultado no centro
do cemitério da freguesia de Refoios, donde foi trasladado para a sepultura do
antigo feitor da Casa da Boavista, aí por 1989.
Em
fins de Julho de 1998, procedeu-se a uma terceira trasladação para nova
sepultura, adquirida pelos familiares que, vindos de diversas partes do País e
dos Estados Unidos da América, se juntaram para lhe prestarem sentida homenagem
póstuma, em que o pároco da freguesia, Mons. José Ribeiro, também esteve
presente[9].
A sepultura térrea está coberta por uma
laje, onde se salienta uma cruz da mesma peça com uma configuração singular e,
à sua cabeceira, pode ler-se, gravada numa lápide, a seguinte legenda:
N
+ F
1868 1917
HOMENAGEM
PÓSTUMA
A
ALEIXO DE QUEIROZ RIBEIRO
DE
SOTTO MAYOR D’ALMEIDA VAS
CONCELOS,
CONDE DE SANTA + …
EULALIA,
NOTAVEL ESCULTOR E
DIPLOMATA,
FEITA EM REFOIOS DO
LIMA
EM 1998 PELOS SEUS FAMI
LIARES
DAS CASAS DA BOAVISTA
ONDE
NASCEU, DA GLORIA ONDE
VIVEU,
DE BOA VIAGEM, COUTADA
DO
CRUZEIRO, DA LOUREIRA, E DE
CA,
BURGO BOSTON (U.S.A,) CA BOCO
Um facto curioso a registar é-nos
revelado pela “pena” do nosso prezado amigo Amândio Sousa Vieira, a propósito
das excentricidades de Aleixo de Queiroz Ribeiro, tendo por base uma pequena
notícia inserida no jornal “O Commercio do Lima”, dando conta da festa de
casamento do Conde de Santa Eulália, em 1908, da qual reproduzimos um pequeno
excerto: …Barcos vistosamente
embandeirados sulcavam as águas serenas do rio, transportando, de uma para a outra
margem, alegres ranchos de raparigas das aldeias próximas, domingueiramente
vestidas, que vinham trazer à festa a nota alegre e vibrante das suas danças e
cantares… / Às quatro horas da tarde, no seu tirado por uma magnífica parelha
de raça Alter, chegaram os Senhores Condes de Santa Eulália. Neste momento a
excelente banda de S. Martinho da Gandra, que estacionava no cais, tocou o Hino
Nacional… num barco instalou-se a banda de música e enche-se ainda outro com a
alegre tripulação das graciosas cantadeiras.[10]
Para terminarmos, anotemos algumas
curiosidades registadas por Manuel de Queiroz, arquitecto e sobrinho-neto de
Aleixo de Queiroz Ribeiro: A compra da Quinta da Glória, que então passou a
designar-se como Paço da Glória, ocorreu em 1909, um ano depois do casamento,
tendo a casa sido toda restaurada por Aleixo de Queiroz Ribeiro para aí receber
condignamente a sua mulher sempre que vinha a Portugal, o que aconteceu por
diversas vezes, quer antes quer depois da morte do marido, ocorrida em 1917. Elizabeth
tinha dois filhos do seu primeiro casamento, os quais, após a morte dela, em
1929[11],
herdaram as suas propriedades em Portugal, John Stetson o Mosteiro de Refóios e
G. Henry o Paço da Glória. Este último, no entanto, desinteressou-se por
completo da propriedade, deixando de pagar os impostos devidos, pelo que esta
acabou por ir a hasta pública, tendo sido arrematada em 1937 por William Pitt.
Outro facto curioso é que, também revelado pelo nosso particular amigo e
arquitecto Manuel de Queiroz, em 1922, John
Stetson Júnior, filho mais velho de Elizabeth, doou à Biblioteca da
Universidade de Harvard, onde fez os seus estudos, um acervo de cerca de nove
mil livros em português, em memória do padrasto, Conde de Santa Eulália,
completado com novas doações durante os anos que se seguiram, o qual ainda hoje
está disponível naquela biblioteca para consulta[12].
Infelizmente, e ainda segundo o
arquitecto Manuel de Queiroz, não chegaram até nós quaisquer escritos, memórias
ou textos da autoria de Queiroz Ribeiro que nos ajudassem a perceber melhor o
seu pensamento, as suas motivações, ou as suas opiniões sobre a arte e a
realidade do seu tempo. Apenas aparecem alguns postais e cartas, nos quais
revela um apurado senso de humor, e um artigo publicado num jornal de Lisboa[13].
Resta-nos lamentar, num lamento apenas
construtivo, que esta data memorável tenha passado despercebida às gentes da
nossa terra. E aqui referimo-nos aos que bebem da ancestralidade e das águas do
Lima. Este ano, a não haver tempo para fazer algo, condigno e à dimensão deste
ilustríssimo escultor, que a memória nos ilumine para 2018, altura em que se
comemorará o 150.º Aniversário do seu nascimento!
BIBLIOGRAFIA:
–
A AURORA DO LIMA (Decano dos jornaes do Minho). Viana do Castelo, 1917.
–
BRANCO, José Luís – Aleixo Queiroz
Ribeiro: autor da estátua de bronze do Sagrado Coração de Jesus, em Santa
Luzia, Viana do Castelo. Viana do Castelo: Confraria de Santa Luzia, 1999.
–
QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória.
Lisboa: Bertrand Editora, 2008.
– “Aleixo de
Queiroz Ribeiro: Conde de Santa Eulália: Escultor Laureado”. In, Figuras Limianas. Ponte de Lima:
Município de Ponte de Lima, 2007, p. 296-300.
– VIEIRA, Amândio Amorim
de Sousa – P’ra que Viva Ponte de Lima! –
Terra de Tradições. Ponte de Lima: Município de Ponte de Lima, 2017.
(In, «O Anunciador das Feiras Novas», Ano XXXIV, N.º 34, 2017, p. 65-69)
[1] Nomeadamente A Aurora do Lima, Cardeal Saraiva e Jornal de
Vianna.
[2] Cit. A Aurora do Lima, 62.º anno, n.º 9002, Terça-feira, 15 de Maio de
1917.
[3]
José Luís Branco aponta a causa da morte, associando-a ao facto de ter
sido vitimado por um acidente ocorrido com um carro de cavalos (In, Aleixo Queiroz Ribeiro: Autor da Estátua de
bronze do Sagrado Coração de Jesus, em Santa Luzia, Viana do Castelo, p.
13). Por outro lado, Manuel de Queiroz, sobrinho-neto de Aleixo de Queiroz
Ribeiro, refere o seguinte: Em Abril de
1916, sofre um grave acidente num carro de cavalos. Morre a 6 de Maio de 1917,
no Mosteiro de Refoios, mas ao contrário do que referem vários autores, tudo
indica que a sua morte não terá sido causada pelos ferimentos sofridos neste
acidente e sim por doença do foro oncológico (In, Figuras Limianas, p. 300).
[4] Filho de Gaspar de Queiroz
Botelho d’Almeida e Vasconcelos, Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, e de Mariana
Cláudia de Ribeiro de Sotto-Mayor Pereira Pinto de Morais Sarmento, da Casa de
Santa Eulália de Seia, nasceu na Casa da Boavista, situada entre as freguesias
de S. Maria Madalena de Jolda, Arcos de Valdevez, e Refóios do Lima, Ponte de
Lima, a 18 de Abril de 1868.
[5] QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória, p. 487.
[6] Expressão utilizada pelo jornal A Aurora do Lima, para de imediato
descrever algumas notas sobre o percurso de Aleixo de Queiroz Ribeiro, o que
leva a cometer algumas imprecisões, felizmente colmatadas, nos anos 90, pelo
rigor científico do seu sobrinho-neto Manuel de Queiroz, com a publicação do
“Passos da Glória” (romance) e uma Exposição, em Viana do Castelo (11 de Julho a
30 de Outubro de 2009), no Museu de Arte e Arqueologia, com o título «Aleixo de
Queiroz Ribeiro (1868-1917): Entre a Europa e a América, um percurso controverso
e singular». O nome de Aleixo de Queiroz Ribeiro está contemplado na toponímia
vianense.
[7] Cf. QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória, p. 41. No que
concerne à obra de Aleixo de Queiroz Ribeiro, Manuel de Queiroz refere que
“pese embora a dedicação e a investigação de familiares e os vários esforços
para as localizar, não deixa de ser impressionante o número de obras de QR que
se encontram perdidas. Das trinta e cinco conhecidas, apenas se sabe do
paradeiro de quinze, e assim se torna difícil a apreciação global da sua obra
(…)” – citamos.
[8] Cit. A Aurora do Lima, 62.º anno, n.º 9000, Terça-feira, 8 de Maio de
1917.
[9] Cit. BRANCO, José Luís – Aleixo Queiroz Ribeiro: autor da estátua de
bronze do Sagrado Coração de Jesus, em Santa Luzia, Viana do Castelo, p.
13.
[10] VIEIRA, Amândio Amorim de Sousa
– P’ra que Viva Ponte de Lima! – Terra de
Tradições, p. 224.
[11] “Elizabeth morreu em 1929,
vítima de gripe pneumónica, quando visitava o filho mais novo, G. Henry, na sua
propriedade Sombrero Rancho, em
Pasadena, Califórnia.” – Cit. QUEIROZ, Manuel de – Os Passos da Glória, p. 488.
[12] Ob. cit., p. 487-488.
[13] Cf. QUEIROZ, Manuel de – “Aleixo
de Queiroz Ribeiro: uma vida agitada, invulgar, não raro entretecida de
acidentes originais e lances de grande notoriedade…”. In, Catálogo da Exposição Aleixo de Queiroz Ribeiro (1868-1917):
Entre a Europa e a América, um percurso controverso e singular, p. 13.
Terei que ler a ERMIDA caro Porfirio.
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