«Acham que a chuva se pergunta, enquanto cai,
se vai favorecer a vida, ou se a vai tirar? A chuva cai sem consciência ética.
A chuva é sempre boa, mesmo quando destrói. Eu sou como a chuva…»
José Eduardo Agualusa
Muitas vezes, em família e em memória dos tempos, e do tempo que está
para lá dos tempos, recorremos esporadicamente aos livros e aos autores que
vamos deixando para trás nas prateleiras da nossa biblioteca particular. É uma
questão de segurança, de companhia permanente e de afrontamento à nossa
aparente desilusão.
Quase seis translações passadas, recordando o amigo/irmão José Eduardo
Agualusa, e o seu livro A Educação Sentimental dos Pássaros, onde
reúne onze maravilhosos contos, onze histórias, onze cenários – e, como ele
mesmo escreve, onze possibilidades que têm em comum uma mesma preocupação sobre
a origem e a natureza do Mal.
José Eduardo Agualusa, autor do mundo, angolano de nascença e de coração,
qual menino do Huambo à volta da fogueira, que continua a viver entre ideias,
realidades, sonhos e medos, sempre nos soube dizer que os anjos e os demónios
caminham entre nós e nem sempre se distinguem uns aos outros. Às vezes as
histórias aparecem-lhe enquanto dorme. Assim, sem tirar nem pôr.
Envoltos na ambição de nosso avô “Sakaita”, do qual herdamos também de discursar em provérbios. Dentro da “filosofia de elevador”, «Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vokapako.», o cágado não sobe sozinho às árvores, alguém o colocou lá: «QUASE NINGUÉM REPARA EM MIM. As pessoas não me veem. Sopram na minha direção, “quinto piso”, “décimo quarto”, e logo me esquecem. A invisibilidade é uma questão de prática, como engolir espadas. Não falo em engolir espadas por acaso, amigo. Sei do que falo. Antes de ser ascensorista trabalhei quarenta e cinco anos num circo. Aprendi a engolir espadas, fogo, cacos de vidro, escorpiões, inclusive arame farpado. Com a prática um homem consegue engolir qualquer coisa. Estava a preparar-me para inovar o número, seria o primeiro artista a engolir armas de fogo e explosivos, granadas, cartuchos de dinamite, pistolas, talvez metralhadoras, quando me comecei a sentir mal, muito mal, fortes dores no epigastro, violentas náuseas, e descobri que tinha uma úlcera no estômago. Abandonei o circo…» (Agualusa, 2018: 75).
Realidades paralelas, onde ambos ficamos com a noção clara de que há
poucas desgraças mais ridículas do que a traição, tendo em conta que esta «chega
a ser mais ridícula do que levar com uma tartaruga na cabeça»: O
ridículo é a lepra dos políticos. Nenhum político se atreve a apertar a mão de
outro que tenha contraído o ridículo.
(Agualusa, 2018: 108).
Soubemo-lo pelo nosso amigo/irmão José Eduardo Agualusa, que Deus ao
criar o primeiro Anjo, ofereceu-lhe um poderoso par de asas, explicando-lhe,
contudo, que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo.
Passadas seis translações, acabamos por abandonar o circo. E sempre vamos sabendo sorrir para quem nos faça sorrir e saiba sorrir!
(In, Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4910, 02 de junho de 2023.)
Sem comentários:
Enviar um comentário