“As
suas palavras, apesar da inquietude que deixam transparecer, questionam
sentimentos e atitudes, fazem repensar, mas deixam quase sempre um apelo de
esperança, de amor e alegria…”
Fernando Pereira
(Director do Jornal Alto Minho)
Não é poeta quem quer… Dissemo-lo
antes como o diremos hoje, se tivermos em conta a ética e a coerência das
nossas palavras quando afirmamos que Amândio Sousa Dantas é um Poeta na
verdadeira acessão da palavra, dada a circunstância de podermos beber das suas
próprias palavras um profundo sentimento existencial, vivido e aprofundado pela
experiência e interioridade de cada poema, enquanto instrumentos da própria
vida. O conceito do eterno retorno permanece na poesia de Amândio Sousa Dantas.
Daí, a intemporalidade do poeta e da sua poesia.
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Amândio Sousa Dantas
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Não fosse o confinamento
forçado a que temos estado sujeitos, a par da desencarnação da Mãe do Poeta,
por certo que a nossa proximidade manter-se-ia, à boa maneira berkeliana, longe
da realidade material independente dos nossos pensamentos, aconchegada ao mundo
das nossas representações, onde o SER
é ser percebido ou perceber. Com o desabafo enlutado – em “purificação pelo
delírio” – do Amândio Sousa Dantas, viajou até nós, a uns tempos a esta parte,
o seu último brado poético, O SILÊNCIO
DAS NUVENS (Agosto de 2019). Estava feita a catarse – Katharsis, na obra POÉTICA de Aristóteles –, sentido pela
“depuração” da musicalidade harmoniosa, quando nos traz (levando) o seu poema
para o nosso silêncio, tendo em conta que, no dizer do Poeta, cada um de nós leva a prova do seu silêncio, vozes em
fios invisíveis que tecem o próprio labirinto de cada um de nós, conhecendo o
peso do coração, sem saber(mos) de onde vem tanta inquietação: Compreendi, sim, e concordo que existem duas
formas de Katharsis; uma é a que diz
respeito à alma; e outra, a que se refere ao corpo, e que é distinta desta. –
no dizer de Aristóteles.
Já uma vez o Poeta
escreveu, a propósito das vivências “com o fogo da memória”, sem que o tornemos
repetitivo, nesta forma e desejo de conhecer o mundo entre a multidão,
dando-lhe o espaço que ela pede, visionando-a entre os plátanos: Há em todos nós uma morada existencial,
assim, pelo que sei da minha experiência, a interioridade do poema é
instrumento comum (e solitário) da própria vida. Não se consegue ver o
essencial sem os mistérios da existência: Ora levantando os olhos face às
injustiças, ora com um olhar conciliador à justa decisão.
O Silêncio das Nuvens
abre a mão do criador, talvez mão do Poeta que escuta a sede demorada, / aquele adeus que não volta, / o abraço
desejado, o pranto, / e todo o silêncio dos teus (seus) passos; / a fonte, a perda: / Ai, a nascente
que se afasta. / O golpe do amor – por sua asa. / A ferida, o sangue… (p.
15), qual simulação do subconsciente faz renascer os “germes de restituição”
para um novo estado do mundo, íntimo, evoluindo sempre, e cujo próximo será o
último. O Poeta voltou ao “eterno retorno” que se funde com a Mãe Natureza,
cujo espaço físico o faz acreditar “que o signo da linguagem nos mostra a chave
do tempo”, mesmo quando o Verão parece anunciar que acabaram os meses do
silêncio, só porque o céu cobre-se de vozes. Premonição nas noites mal
dormidas, onde “todas coisas repousam no seu lugar”, até na descoberta de um
deus adormecido: Quando morre um homem [mulher]
de uma rua / é, assim, como se o nome
dessa rua / fosse fechada: / na luz dos seus próprios olhos… (p. 25),
porque, no dizer do Poeta, “o tempo de uma vida é um relógio que se apaga”.
Apesar de não manifestar
qualquer tipo de desalento, Amândio Sousa Dantas acredita que nem tudo são
pétalas no caminho, nosso e dele, tendo em conta a “beleza da flor tem o seu
próprio tempo”. O confronto maniqueísta entre o bem e o mal continua a ser uma
das suas preocupações cognitivas. Daí não estranhar o tempo do absurdo, mesmo
quando tem a plena consciência de que irá “morrer com toda essa solidão por
descobrir”. Há sempre um rosto que atravessa a noite. Várias vezes. Repetidas
vezes.
Há um percurso cadenciado
neste seu Silêncio das Nuvens, através da espada que o fere e faz
sangrar, o sangue do amor que não tem medida, qual elegia ao seu irmão, porque
do seu cálice provo, a espada que o fere é a mesma que o sara. Vale-lhe o
conhecimento do Universo, numa espécie de transmutação – quiçá, metafísica –
onde Outro homem / Do outro lado da
Terra: Ia semeando o seu trigo (p. 28). O canto permanece na grandiosidade
do coração de Amândio Sousa Dantas, nem que seja para questionar a falta de pão
em outra mesa; as mentiras dos dias, os silêncios; saber o que a palavra quer
de qualquer um de nós; o vento que não corta a alma, porque “ali se abre a
trincheira do sentimento”. De facto, a poesia, sendo bem feita, mesmo
contrariando o Poeta, tem morada de cristal. Daí, estar feliz quando chove e
triste quando faz sol. O quarto, com todo o peso do seu silêncio, qual lágrima
vertida, faz transparecer o fundo da
saudade / que anda às voltas pelo quarto / e sem que o sono se aproxime (p.
39). Nada que o Poeta, sem ser vidente, não o diga no poema: O coração da nossa mãe sabe muito de nós; /
porém, o melhor é escutar o seu silêncio (p. 43).
Vai longa a nossa
perscrutação à Alma do Poeta, quando nunca foi nosso propósito ou presunção
explicar a poesia. Faz unicamente sentido, sentir, cada um à sua maneira, as
palavras do Poeta: a saudade que nos prende ao instante; o silêncio que nos
leva à funda palavra que repousa; a coragem de vencer o próprio medo; o caber
em nós o que mais queremos; o verso que se inclina como um ramo; os céus que
não escrevem o nosso destino; a existência pelo nosso silêncio, mesmo quando há
tantas vozes de olhos no chão; cada página que se abre num livro: O Verbo, / a Iniciação. / o mistério, / e
por ele – / um coro antigo. / até ao infinito (p. 66). O infinito apesar
algo indefinido, por carecer de fim, limite ou termo, torna-se potencialmente
positivo n’O Silêncio das Nuvens, quando o Poeta segue a existência do
poema.
Terminaríamos em momentos
em que o Poeta parece descansar, aparentemente virando o olhar mais para as
flores do campo, esquecendo ou procurando esquecer a imensidão do mar,
levantando uma casa nas margens do poema e deixando o desejo no espaço imaginado,
fruto apenas do silêncio muito seu e da herança de seus sonhos: Tanta quietude entre o verde e o espaço das
nuvens. / Aqui: só a canção do silêncio é a única fonte, / e tão poucos a sabem
escutar. O canto do silêncio subindo a montanha, alquimicamente plasmado na
sombra e na descoberta – a noite que não
dorme, / o sorriso do dia, / a vida de óculos escuros, / o sol fugidio –, no
céu azul, no fogo, na ternura do mar, na nuvem, na tempestade, e o coração no
éter, fórmula mágica que assegura o calor dos corpos e a função dos cinco
sentidos, gravando todos os acontecimentos: MEMÓRIA.
Ainda que através do nosso subjectivo sentir, este é o nosso “retrato do
poeta”. O POETA a resgatar!
(In, O Anunciador das Feiras Novas, Ano XXXVIII, n.º 38, Setembro 2021, p. 146-148)