A Capela das Almas, antiga matriz de Viana do Castelo, ergue-se
como um limiar onde o humano e o espiritual se entretecem numa respiração
comum. O seu corpo românico do século XIII, silencioso e milenar, acolhe não
apenas pedras, mas as vibrações etéreas de todos os que ali viveram, morreram e
rezaram. É um lugar onde a memória se converte em presença, e onde cada sombra
parece conter o eco de passos ancestrais. Nas imediações nasceu a cidade; e
assim como o corpo humano nasce do útero, também Viana brotou deste espaço
sagrado, fazendo da capela uma espécie de matriz física e metafísica.
Os antigos painéis de azulejo de Nossa Senhora da Guia e de Cristo
Crucificado-Divino Salvador não são apenas imagens: são janelas interiores,
caminhos que convertem o olhar em meditação. O retábulo das Alminhas, protegido
pela grade de ferro, lembra-nos que a vulnerabilidade humana encontra aqui
abrigo, uma casa onde os vivos dialogam com os mortos e lhes oferecem memória.
O Senhor do pão dos pobres devolve ao espaço a sua vocação ética, lembrando que
o sagrado é também cuidado, partilha e carne.
O cruzeiro do Senhor da Boa Lembrança, repousando junto ao alpendre, parece guardar o tempo, como se cada sulco da pedra fosse um suspiro do passado. Apesar das inúmeras transfigurações do edifício, a relação dos vianenses com este lugar permaneceu intacta: não se trata apenas de arquitetura, mas de uma extensão da alma coletiva.
Na sacristia, existiram (sem que lhes conheçamos o rasto), em tempos idos, imagens policromadas dos Reis Magos, que revelavam que a espiritualidade se faz também de viagem e procura. Antes pertencentes à capela dos Cirne, ali repousaram neste corredor de silêncio, lembrando que cada deslocação humana é, no fundo, uma peregrinação interior. Assim, a Capela das Almas permanece como ponte entre tempos, entre vidas, entre mundos – um espelho onde o humano encontra, no espaço físico, o rasto do eterno.
(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 38, quinta-feira, 20 de novembro de 2025, p. 17)