Salvador Vieira (1937–2017) e Cardeal Saraiva (1766–1845) são dois
nomes separados por séculos, mas unidos por um mesmo território e por uma mesma
inquietação espiritual: a de dar forma à permanência no seio do efémero. Ponte
de Lima é o ponto de confluência entre ambos – o espaço onde o tempo parece
dobrar-se sobre si mesmo, permitindo que o gesto do escultor reencontre o
pensamento do estadista e teólogo. O ato moldado por Salvador Vieira torna-se,
assim, mais do que uma homenagem; é a tentativa de restituir à matéria o sopro
que o tempo dissipou.
O Cardeal Saraiva, homem de fé e de razão, viveu entre as convulsões
políticas e morais de um século que procurava o equilíbrio entre a tradição e a
liberdade. Presidente da Câmara dos Deputados em 1826, guarda-mor da Torre do
Tombo, Patriarca de Lisboa em 1840 e, finalmente, Cardeal em 1843 – a sua
trajetória reflete o drama da consciência portuguesa: a de um povo que oscila entre
a submissão e a transcendência. O seu desterro, em 1828, é também símbolo do
exílio interior que o pensamento enfrenta quando a verdade é adiada.
Salvador Vieira, por sua vez, moldou o tempo. O seu gesto não é apenas
técnico, é filosófico. Cada ajuste das suas mãos sobre o ‘barro-gesso’
interroga o que resta do humano após o desgaste das eras. Ao erguer a estátua
do Cardeal Saraiva, o artista não ergue apenas uma figura histórica, mas um
espelho. Nessa superfície do bronze repousa a memória de um rio – o Lima – que
transporta, nas suas águas, a metáfora da vida que flui e retorna, que separa e
une.
Entre o artista e o cardeal, entre o século XIX e o século XX, corre o mesmo fio de prumo que liga a fé à arte, a matéria ao espírito, o local ao universal. As águas do Lima, descendo até Viana, desaguam no Atlântico como a obra de ambos – destinada a perder-se e a permanecer, a dissolver-se no mar do tempo e, paradoxalmente, a vencer a morte através da beleza e da memória.
No silêncio da escultura, o pensamento reencontra a sua morada: o instante em que o tempo deixa de passar e se torna presença. Vieira e Saraiva, filhos da mesma terra, são, afinal, a mesma busca – a da eternidade que habita no efémero.
(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 34, quinta-feira, 16 de outubro de 2025, p. 17)
Sem comentários:
Enviar um comentário