terça-feira, 11 de novembro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXVIII)

A existência humana encontra na natureza o seu mais antigo espelho. O rio, com o seu curso perene, recorda ao homem que a vida é fluxo e retorno, princípio e fim que se renovam. Assim, nas margens do Lima, a tradição dos “Batizados da Meia-Noite” em Ponte da Barca, ergue-se como um vestígio sagrado da ligação entre o Ser e a Terra. Ali, a mulher grávida não era apenas indivíduo, mas portadora da continuidade da comunidade e da memória.

O ventre, tocado pelas águas, tornava-se recetáculo do mistério. O púcaro de barro, humilde e frágil, simbolizava a união entre o elemento humano e o elemento natural. A água colhida não era apenas líquido, mas essência vital, herança da nascente que percorre as serras. O ramo de oliveira, aspergindo o ventre, evocava a paz e a fertilidade que atravessam séculos de crença.

Cada gesto ritual transportava consigo o eco da ancestralidade. A ponte, lugar de passagem, transformava--se em altar, onde o visível e o invisível se tocavam. Na hora silenciosa da noite, o badalar do sino confundia-se com o coração da terra. E a escolha do padrinho não era fortuita, mas selava um pacto espiritual, mais profundo que o laço social.

A confraternização, depois do rito, celebrava não apenas a vida que viria, mas também a comunhão entre os homens. O vinho verde, o presunto, a boroa – eram, mais que alimento, sinais de partilha, vínculos de pertença. A natureza, aqui, não se limitava a servir, mas participava ativamente da criação. A serra, o rio, o vento noturno – todos eram testemunhas e cúmplices da fecundidade.

O nascimento não era ato biológico isolado, mas acontecimento cósmico. Na crença popular, o invisível encarnava-se nos ritos simples, sustentando a esperança. Assim, a tradição preservava a harmonia entre homem e mundo. E mesmo que envolta em lendas, guardava em si uma verdade mais profunda que a razão.

A verdade de que somos, antes de tudo, filhos da terra e das águas. Que cada geração floresce enraizada nos gestos daqueles que vieram antes. E que na ponte de pedra, sob o luar e o sino, ecoava o eterno pacto do ser com a natureza.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 28, quinta-feira, 21 de agosto de 2025, p. 22)

BRUMAS DO TEMPO (XXVII)

A vida é um entrelaçar de encontros e despedidas, onde as relações verdadeiras se destacam como faróis no nevoeiro da existência. Entre tantas participações ativas no âmbito jornalístico-cultural, fomos tecendo uma rede de afetos sustentada na lealdade e no respeito mútuo. Não eram apenas projetos; eram capítulos vivos de uma amizade que se alimentava do diálogo, da partilha e do reconhecimento do valor do outro.

Todos carregamos dias cinzentos, fragilidades e desencontros. Contudo, a cumplicidade e a tolerância, quando enraizadas na ética da reciprocidade, transformam obstáculos em pontes. A amizade genuína não é a ausência de conflitos, mas a presença constante de um compromisso silencioso: estar lá, mesmo quando não é fácil.

Recordamos as viagens, não apenas como deslocações físicas, mas como jornadas interiores, onde cada paisagem observada era um pretexto para refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos. Palestras que não se limitavam ao intelecto, mas que desafiavam o espírito a pensar mais fundo. Momentos gastronómicos que iam além do paladar, pois eram temperados pela conversa e pelo sentir ético, que tornava cada encontro mais pleno.

Há memórias que não se guardam apenas na mente, mas no próprio tecido do ser. BERNARDO BARBOSA não foi apenas um companheiro de atividades; foi um interlocutor da vida, alguém que trouxe densidade às conversas e leveza aos momentos.

O “até sempre” que lhe dedicamos não é despedida, mas continuação. Porque a presença de um verdadeiro amigo não se mede pelo tempo ou pelo espaço, mas pela permanência silenciosa que deixa nas nossas ações e no nosso modo de estar no mundo.

Assim, seguimos, levando connosco a herança de tudo o que foi vivido – sabendo que, em cada gesto ético, em cada palavra leal, em cada ato de amizade, a sua memória se renova e permanece.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 27, quinta-feira, 14 de agosto de 2025, p. 9) 

BRUMAS DO TEMPO (XXVI)

O rebombar dos bombos e o toque vibrante das concertinas na festa da Agonia, em Viana do Castelo, não são apenas sons. São pulsações de um povo, batimentos do coração coletivo de uma terra que celebra, sim, mas também se purga. A festa, dedicada a Nossa Senhora da Agonia, carrega no nome a marca da dor, mas é na sua manifestação que se revela algo maior: uma ponte invisível entre o sofrimento e a alegria. O barulho que ecoa nas ruas e dentro das almas não é ruído, é linguagem. É o modo como o ser humano, ancestral e presente, se comunica com o que não consegue dizer com palavras.

É uma celebração que tem tanto de espiritual como de carnal. Há fé, há devoção, mas há também um extravasar quase instintivo, como se cada toque de bombo libertasse dores antigas, e cada acorde da concertina fizesse vibrar esperanças ainda por cumprir. A festa é um ritual de transfiguração: a dor não é negada, mas dançada; o sofrimento não é escondido, mas lavado na alegria. A multidão, ao participar, não se limita a venerar a santa – reinventa-se. A alma popular, cansada do peso quotidiano, encontra ali uma forma de se elevar sem se desprender do chão.

Na festa da Agonia, o humano encontra-se a si mesmo entre extremos. E nessa travessia emocional, percebe que a alegria mais intensa nasce frequentemente da dor mais profunda. A festa torna-se, então, espelho e catarse, onde se canta, se chora e se exalta – não para esquecer o sofrimento, mas para o transformar.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 26, quinta-feira, 07 de agosto de 2025, p. 41)

 

sábado, 4 de outubro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXV)

Há instantes na existência em que o peso do mundo parece maior do que a nossa própria sombra. Nessas alturas, a terapia mais eficaz raramente se encontra em receitas prontas ou em fórmulas universais. Surge, antes, na forma de uma presença silenciosa, constante, quase invisível – aquela figura que, longe da ribalta e dos aplausos, se dedica a cuidar de nós com genuína entrega. São eles que nos recordam que o amor verdadeiro não se exibe: manifesta-se no silêncio atento, na escuta profunda, no toque leve que não impõe, mas ampara.

Essas almas discretas percebem-nos para além do que julgamos mostrar. Vêm-nos com olhos que não se limitam à superfície. Intuem os nossos silêncios, leem nas entrelinhas do nosso gesto, ampliam aquilo que nós mesmos não conseguimos ver. Através deles, o nosso mundo – esse espaço por vezes tão estreito e condicionado – ganha outras dimensões. A realidade torna-se fluida, aberta, rica em sentidos que só a intuição pode decifrar. A continuidade da vida é, assim, tecida com fios invisíveis de cuidado e pertença.

O Poço da Moura, junto ao ribeiro de São João, Labruja, Ponte de Lima, não é apenas um recanto bucólico; é símbolo vivo dessa terapêutica ancestral, feita de memória, de presença e de amor. A natureza sussurra verdades que esquecemos na correria dos dias. Ali, o tempo abranda, e o coração reconhece aquilo que verdadeiramente importa: anos de companhia, de partilha, de olhar na mesma direção. É esse amor sereno e perseverante que cura, não com palavras, mas com a fidelidade da presença.

Sim, haverá sempre alguém ao nosso lado – ainda que por vezes duvidemos. Basta silenciar o ruído e escutar com o espírito das águas. A verdadeira terapia não se impõe: revela-se. E, quando o faz, percebemos que nunca estivemos sós.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 25, quinta-feira, 24 de julho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXIV)

Num recanto sagrado de Viana do Castelo, onde a pedra resiste ao tempo e a fé persiste no coração dos homens, ergue-se a Capela de São Roque como um elo entre o passado e o presente. Construída em 1623 e renascida mais de uma vez das cinzas da ruína, esta capela não é apenas uma estrutura de granito, mas um testemunho vivo do percurso humano – da dor, da esperança e da transcendência.

O ser humano, ao longo dos séculos, sempre procurou eternizar o que sente e o que crê. No granito talhado, no madeiramento do teto, no altar onde repousa São Roque em trajes de peregrino, lemos mais do que arte: lemos história, e, sobretudo, lemos fé. A ferida exposta na perna do santo, símbolo da peste que assolou tempos difíceis, é também metáfora das feridas humanas – visíveis ou não – que cada geração carrega. E o cão fiel, que lhe leva pão, é a imagem silenciosa da compaixão que sustenta o caminho dos que caem.

A vieira, símbolo do peregrino de Santiago, gravada nas vestes do santo, continua a apontar o rumo para quem busca mais do que destino: sentido. A capela, situada numa zona de passagem para Compostela, torna-se um limiar entre o sagrado e o profano, entre o corpo fatigado e o espírito em busca.

Hoje, perante os muros de alvenaria e o gradeamento que resguarda o adro, somos convidados a refletir: o que resta de nós nas pedras que tocamos? O que deixamos inscrito no mundo, como deixaram os que, antes de nós, construíram e reconstruíram este lugar?

Assim, na quietude da capela de São Roque, compreendemos que o património não é apenas memória – é diálogo entre tempos. E que a fé, mais do que um ato individual, é uma ponte invisível entre o passado que nos moldou e o presente que esculpimos. 

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 24, quinta-feira, 17 de julho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXIII)

O Cidadão das Cores esquecido em Viana do Castelo. Há vidas que se pintam com as tintas do tempo, sem jamais secarem na memória coletiva. A de Luís Darocha é uma dessas. Filho da arte e neto da inquietação, descendente do emblemático João da Rocha (O Frei) – o vianense das Angústias e das Memórias de um Médium –, Luís não foi apenas um pintor – foi um cidadão criativo, um pensador em tela, um errante da estética. Nasceu em Oliveira de Azeméis, mas foi em Londres e Paris que deixou que a sua alma se desdobrasse em paletas e silêncios densos de sentido.

Darocha não usava pincéis apenas para retratar o visível, mas para perscrutar o invisível – esse que escapa aos olhos e mora no intervalo entre o gesto e o pensamento. Fez da sua vida um ato de criação contínua, onde estudar antropologia era tão natural como mergulhar no expressionismo mais íntimo. A arte, para ele, nunca foi um refúgio: era campo de batalha, era trincheira de humanidade.

Na Paris que o adotou, ensinou, partilhou, expôs. Mas foi o Portugal que o esqueceu – talvez por nos doer encarar quem nos recorda o que poderíamos ser: sensíveis, inquietos, atentos. Como tantos, foi mais celebrado fora do que dentro. A Medalha de Ouro de 2014 não basta para apagar décadas de silêncio. A sua última exposição, Ondulações de Estilo, nomeava bem a sua metamorfose interior – porque Darocha não era uma assinatura estática, era um processo contínuo de reinvenção.

Hoje, ao evocarmos o seu nome, não fazemos apenas justiça a um artista, mas também lançamos uma pergunta às cidades que habitamos: o que fazemos com os que nos refletem? Luís Darocha viveu como pintou – com intensidade, com riscos, com verdade. E talvez seja esse o verdadeiro papel do artista-cidadão: lembrar-nos, sem concessões, que criar é viver – e viver, por vezes, é uma forma urgente de resistência.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 23, quinta-feira, 10 de julho de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XXII)

A dignidade da memória e o valor dos que partem. Num mundo cada vez mais acelerado e pragmático, a figura do emigrante surge como um paradoxo silencioso: ao mesmo tempo em que representa a ausência, carrega consigo a presença mais fiel de uma terra – a memória viva de um lugar no coração. Poucos desejam verdadeiramente emigrar. A partida, quase sempre, é imposta pela necessidade, pelo sonho de dignidade, por uma esperança que a terra natal, por si só, já não consegue oferecer. No entanto, é justamente essa ausência que, ao longo do tempo, se transforma em presença estrutural.

É imperativo, do ponto de vista ético, que a sociedade reconheça o valor do que foi feito longe, mas com amor à origem. Em cada pedra enviada, em cada carta escrita, em cada regresso temporário, há um esforço de ligação. Não reconhecer isso é trair a identidade coletiva. A ingratidão, quando institucionalizada, gera amnésia cultural – e uma comunidade que não honra os seus não é mais do que um aglomerado sem alma.

Monumentos como o painel de azulejos de Vila de Punhe fazem mais do que homenagear. Eles reconstroem, simbolicamente, a ponte entre o que partiu e o que ficou. Mais do que arte, são memória. Mais do que beleza, são ética. Valorizá-los é compreender que o progresso não se mede apenas pelo que se constrói com os que ficam, mas também com o que se recebe dos que partem. O verdadeiro futuro de uma comunidade começa quando ela honra, sem hesitação, os seus pilares invisíveis.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 22, quinta-feira, 03 de julho de 2025, p. 19)

BRUMAS DO TEMPO (XXI)

Há pedras que não são apenas pedras. São marcos – sólidos, graníticos, imóveis – mas cheios de movimento por dentro. São elas que seguram a memória quando os homens já a esqueceram. No coração desses blocos silenciosos, ecoa uma história antiga, feita de passos e mãos que moldaram a terra antes de nós. São os nossos antepassados, ali enterrados não sob a terra, mas na superfície das coisas que ignoramos.

O granito, com a sua dureza austera, é resistência. Não apenas à erosão dos ventos, mas à erosão da consciência. Ele permanece quando tudo o resto cede. É a matéria da memória e do esquecimento – simultaneamente. Porque, por mais que se mantenha firme, precisa de olhos que o vejam e almas que o sintam.

Somos muitas vezes negligentes com aquilo que nos formou. Passamos ao lado destes marcos como se fossem acidentes do terreno, obstáculos a evitar, não sinais a interpretar. E no entanto, estão ali a dizer-nos de onde viemos, quem éramos, e talvez até quem ainda somos, por baixo da camada de pressa e distração que hoje nos define.

Essas pedras falam. Não com voz, mas com presença. Dizem que houve um tempo em que o solo era sagrado, e os lugares tinham nomes que significavam algo. Que existiu um vínculo entre o homem e a terra que o sustentava – e esse vínculo foi gravado em granito.

Esquecê-las é esquecer-nos. Desprezá-las é romper a soberania do nosso próprio enraizamento. Mas há esperança na permanência: talvez o tempo nos devolva o sentido. Talvez ao pararmos diante desses marcos, com respeito, ouçamos outra vez as gerações que nos antecederam a chamar por nós, pela nossa memória, pela nossa identidade.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 21, quinta-feira, 27 de junho de 2025, p. 16) 

BRUMAS DO TEMPO (XX)

Entre o Ribeiro e o Tempo. Há lugares onde o tempo escorre devagar, como se tivesse memória. O Ribeiro de S. Simão, afluente do Rio Lima, com o seu sussurro milenar, murmura histórias que não estão nos livros. As pedras molhadas, polidas por passos que já não se contam, guardam o eco de vozes antigas – os nossos avós, e os avós deles, curvados sobre a terra, com as mãos no húmus e os olhos no céu.

A água que ali corre, vinda das entranhas das serras, encontra-se com a maré atlântica como quem reencontra um irmão distante. Mistura-se o doce com o salgado, o interior com o oceânico, e nesse abraço nasce uma nova pele do mundo.

Entre o musgo e o granito, cresce uma aguarela viva: aves em voo baixo, peixes ligeiros, arbustos que resistem ao tempo como resistimos nós – teimosamente vivos. E somos isso: parte da seiva, do ciclo, da dança invisível entre sol e sombra.

A terra que pisamos é também ela um corpo que nos lembra quem somos. Não somos donos: somos descendentes, inquilinos de passagem, herdeiros de silêncios e cantigas.

Ali, entre o ribeiro e o Lima, o homem é menos vaidade e mais raiz, porque continuamos a dar testemunho daquilo que somos e de onde vimos.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 20, quinta-feira, 19 de junho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XIX)

Em Vila Franca do Lima, Viana do Castelo, no coração de uma pequena oficina, entre o cheiro da madeira e o som ritmado das ferramentas manuais e mecânicas, trabalha António Barrosa, um verdadeiro mestre da arte de esculpir a memória. Artesão apaixonado, dedica-se há décadas à criação de réplicas perfeitas de utensílios tradicionais, recriando com minúcia e alma objetos que fizeram parte do quotidiano de gerações passadas.

Mas António não se limita ao utilitário: entre as suas obras mais impressionantes estão bicicletas antigas – funcionais e ao tamanho natural – totalmente construídas em madeira rija – sim, até os pedais e as correntes! Cada peça, por mais pequena ou complexa que seja, é talhada à mão, com uma paciência que só quem ama profundamente o que faz consegue manter. O resultado é um acervo vastíssimo de milhares de miniaturas e réplicas ao tamanho natural, todas, testemunhos vivos de um Portugal que resiste ao esquecimento.

A obra de António Barrosa é, em si mesma, um património cultural inestimável. Infelizmente, grande parte deste tesouro continua guardada longe dos olhos do público. É urgente a criação de um museu que acolha de forma digna e permanente estas peças. Um espaço onde se possa celebrar não só a arte do artesanato tradicional, mas também a persistência de quem, contra a maré do tempo, continua a dar forma à história com as próprias mãos.

Preservar o legado de António Barrosa é preservar a identidade de um povo. É dar às gerações futuras a oportunidade de ver, tocar e sentir as raízes de onde viemos. Um museu não seria apenas uma homenagem ao artesão, mas um ato de respeito pela nossa memória coletiva.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 19, quinta-feira, 05 de junho de 2025, p. 17)