quinta-feira, 8 de maio de 2025

BRUMAS DO TEMPO (VII)

 Numa altura em que assumimos a imprevisibilidade do TEMPO (homem sem relógio e fraco telemóvel), tendo ao mesmo tempo uma previsível relação pacífica com a linearidade do mesmo, eis que nas nossas deambulações, silenciosas e discretas, por amor à cultura, nos leva a reconhecer a nossa fragilidade, pacifica(mente) (des)controlada, em reconhecer a especificidade do tempo sem aceitar a irreversibilidade, a tal linha contínua que, do passado, avança para o futuro. Em tempo em que pensávamos possuir todo o tempo do mundo, vamos dissimulando a promessa de um futuro que nunca está lá.



O carácter circular do tempo vem-nos anulando o peso do passado, mas também fechando as portas do futuro. Em segundos, tudo passa a ser passado.

Deixamos de ter tempo para nada. «NA TERRA DOS HOMENS: contos ditos a um deus surdo», ali em LIVR(e)ARIA (Ponte de Lima), local onde Nietzsche tem a palavra: «Isto não é um livro: Os livros que importam?! / Que importam os caixões e as mortalhas? / Isto é uma vontade, isto é uma promessa, / Isto é um último quebrar de pontes, / É um vento do mar, um largar de âncora, / Um ruído de rodas, um apontar de leme; / Ruge o canhão com o seu fogo branco, / E ri-se o mar, esse monstro!» – obrigou-nos a voltar ao passado (2009), revisitando Marlene Ferraz, a cuja mensagem “A todas as árvores que se levam ao mundo, nuas de vaidade…”, acrescentaria o autógrafo da praxe: «Até a quantidade de chuva / que nos cai / Pode fazer de nós / criaturas mais (ou menos) liquidas». Este «NA TERRA DOS HOMENS» é uma edição de 2023. Foi em maio de 2024 que a adquirimos e já é passado!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 07, quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025, p. 25)

BRUMAS DO TEMPO (VI)

 Nos tempos em que laborávamos na construção naval, sentíamos a respiração salgada do Atlântico e partilhávamos a lida com os pescadores de Viana do Castelo. Eles, mestres do mar; nós, artífices do casco que lhes dava sustento e esperança. Havia uma cumplicidade silenciosa entre o cinzel que talhava a madeira e a rede que rasgava as ondas. Era a consciência de que o homem não se impõe ao oceano, mas negocia com ele, com a paciência de quem compreende sua própria fragilidade.




Hoje, revisitamos essa conexão através do Monumento ao Pescador, obra do escultor José Rodrigues (1936-2016), que se ergue solene na rotunda junto ao Santuário de Nossa Senhora da Agonia. O bronze imortaliza a faina, tornando eterno o instante do labor e do risco. Mas, ironicamente, a água estagnada em sua base reflete um tempo suspenso, um mar sem marés. Como se ali, diante da grandiosidade da arte, fossemos levados a refletir sobre o fluxo interrompido da vida, sobre a memória que resiste mesmo quando as águas deixam de correr.

O monumento não é apenas uma homenagem, mas um espelho do destino humano. Pois assim como os barcos que construíamos e as redes que os pescadores lançavam, também nós somos arrastados pelo tempo, presos entre o passado que nos moldou e o futuro que se anuncia incerto. No entanto, tal como as ondas não cessam, a arte persiste, recordando-nos que o essencial nunca se perde: a luta, a esperança e o eterno diálogo entre o homem e o infinito azul do MAR DE VIANA!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 06, quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025, p. 17)


BRUMAS DO TEMPO (V)

Paradoxalmente, quanto mais lemos, mais sentimos a vastidão da nossa ignorância. Cada obra concluída não representa o fim de um percurso, mas a abertura de novas interrogações. A biblioteca é, então, um cosmos em expansão, onde a obsessão por preencher lacunas encontra sempre mais espaços para explorar. Somos condenados ao mesmo tempo à abundância e à insuficiência, à alegria de descobrir e à melancolia de reconhecer que nunca descobriremos tudo.



E não é exatamente isso que torna os livros tão fascinantes? A promessa de um encontro que nunca se esgota, de uma intimidade que nunca se reduz à familiaridade. Assim, viver entre livros é mais do que acumular saberes – é aceitar a condição humana como um perene ato de busca, como uma travessia que, ao mesmo tempo que nos prende ao infinito, nos lembra de nossa pequenez.

Nossa biblioteca é um reflexo de quem somos e do que desejamos ser. Os livros que escolhemos – e aqueles que ainda aguardam por nós – constituem a paisagem de uma vida vivida no âmbito do pensamento. Nessa obsessão, não há desperdício, pois cada página virada é um gesto de amor pela complexidade do mundo. E assim seguimos, como eternos viajantes, entre prateleiras que nos guiam e nos desafiam a sermos mais do que já somos!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 04, quinta-feira, 30 de janeiro de 2025, p. 18)

BRUMAS DO TEMPO (IV)

Modos de ver e ouvir Viana que do Lima se fez Princesa, onde janelas há muito fechadas abrem horizontes de inspiração ao Belo e ao Bom. Nesta terra de encontros, onde o tempo repousa com doçura, cada esquina murmura histórias de amor – e que maior amor que aquele que se funda na memória?

No coração de Viana, a arte urbana transforma vidro e pedra em espelhos da alma. A avó, como a cidade, guarda em si o calor do passado e a promessa eterna de um abraço. É como Platão ensinou: o Amor é o motor que nos eleva, uma sede de sabedoria que nos impele a contemplar o mundo para além da superfície.



Assim, ver e ouvir Viana é mais que um simples ato dos sentidos. É participar de uma dança antiga, em que o belo nos convida ao bom, e onde o coração, como a janela pintada, nunca deixa de procurar o infinito.

Sim, em Platão, o Amor é por excelência o motor da filosofia, definida à partida como «amor à sabedoria», qual cordão umbilical que une o finito ao eterno, inspirando o espírito à procura da verdade pelo belo. Como a avó, guardiã das memórias e do afeto, a cidade de Viana do Castelo é um relicário de tempos vividos e sentidos profundos. Ambas permanecem no coração, não como lembranças estáticas, mas como faróis que orientam o pensamento para o bem. No reflexo das janelas pintadas, vê-se o laço invisível entre a tradição e o futuro, onde a Arte se torna ponte – uma filosofia viva que desperta o olhar para as raízes do Amor e a promessa de uma sabedoria sempre por alcançar!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 03, quinta-feira, 23 de janeiro de 2025, p. 9)

BRUMAS DO TEMPO (III)

Nos caminhos que levam a Santiago de Compostela, a Alma (De Anima em Aristóteles) encontra sua jornada entre pedras gastas e passos antigos. Aqui, cada trilho carrega a marca de milhares de corações que ousaram procurar algo além da paisagem – a promessa de um reencontro com a fé e a esperança.



No sopé do Santuário de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, ergue-se a torre sineira, ladeada por um farol, como uma sentinela, apontando para o céu e para o futuro. As setas amarelas, símbolos universais dos peregrinos, guiam aqueles que, em meio à sua própria agonia (física e mental), procuram a luz de um novo amanhecer. O sino que ressoa nesta torre é como um clamor eterno: um lembrete de que toda dor tem um fim, e todo caminho difícil encontra sua recompensa.

A ponte entre a agonia e a esperança é construída com fé e persistência. Em cada quilómetro, os pés cansados deixam para trás as dúvidas, e o coração se abre à serenidade que só a estrada pode oferecer. A peregrinação não é apenas uma travessia física, mas um caminho interior – onde o peso do fardo se torna leve, e a busca por Santiago se transforma numa busca pela própria De Anima redimida. Sob a sombra do santuário e o brilho das estrelas que coroam a noite, seguimos em frente, com a certeza de que a esperança nos aguarda em cada horizonte desvelado!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 02, quinta-feira, 16 de janeiro de 2025, p.17)

BRUMAS DO TEMPO (II)

 Na bruma que envolve a manhã, as linhas do horizonte são apagadas, e o nevoeiro, denso e silente, atua como um véu de mistério sobre o mundo. E assim, na quietude desse cenário enevoado, o olhar repousa em algo simples e extraordinário: uma teia de aranha, bordada com delicadeza, presa ao centro da grade da varanda. Ali, tão ténue e frágil, parece conter em si uma poesia subtil, escrita em fios finos e quase invisíveis.


Essa teia, essa criação minúscula e temporária, brilha como um microcosmo de significados, ressoando com algo profundo e universal. No particular desse instante, há um reflexo de algo maior: a habilidade da natureza em criar com precisão e beleza, mesmo nas mais pequenas das obras, como se tudo estivesse sempre entrelaçado – nós, a aranha, o nevoeiro, o tempo. Assim como a teia é bordada no espaço, também a nossa existência se tece de momentos assim, frágeis e efémeros, cada fio sendo uma escolha, uma emoção, um pensamento.

Ao observarmos essa delicadeza, sentimo-nos parte de algo maior. Aquela teia convida-nos a contemplar não apenas o detalhe, mas a entender como somos todos envolvidos em redes invisíveis, unindo o particular ao universal, o pequeno ao imenso. É uma pequena verdade revelada no silêncio da manhã: mesmo o mais diminuto dos elementos participa da dança do cosmos, como nós, que, em meio ao nevoeiro, despertamos!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 01, quinta-feira, 09 de janeiro de 2025, p.17)

BRUMAS DO TEMPO (I)

A manhã despontava envolta num véu espesso de nevoeiro, cobrindo a feira que se erguia junto ao campo de árvores e relva molhada. As barracas, ainda em silêncio, pareciam flutuar no meio da névoa, suas cores apagadas pela luz difusa do amanhecer. O ar, pesado e húmido, trazia consigo o cheiro fresco da terra e das folhas, enquanto as figuras dos feirantes surgiam aos poucos, como sombras que ganhavam forma na bruma. Os sons abafados das primeiras conversas e o arrastar de caixas misturavam-se ao canto distante de um pássaro, criando um ambiente suspenso, onde o tempo parecia correr mais devagar, imerso naquele momento de calma quase onírica.

Naquele cenário, a feira parecia não ser apenas um encontro de gentes e mercadorias, mas um espelho da condição humana. O nevoeiro, que escondia os contornos e apagava as fronteiras, evocava a própria incerteza da existência. Quem somos, senão figuras em formação, caminhando na névoa de nossas dúvidas e sonhos?


Cada barraca, com seus produtos por dispor, lembrava as potencialidades da vida: aquilo que ainda não se mostrou, mas já contém em si a promessa de vir a ser. E as conversas tímidas que surgiam pareciam o início do diálogo eterno entre o que é e o que pode ser, uma tentativa de preencher a distância entre o real e o ideal.

A luz do amanhecer, filtrada pela névoa, não iluminava por completo, mas sugeria – como se o conhecimento pleno, tal como a manhã clara, fosse algo que só se alcança aos poucos, através da paciência de quem observa. O canto do pássaro, perdido na imensidão, era um lembrete de que, mesmo na incerteza, existe um chamamento. Um convite ao movimento, ao agir, ao mergulho na efemeridade do instante.

O nevoeiro começava a dissipar-se, lentamente, deixando ver o colorido tímido das mercadorias e os rostos já mais nítidos dos feirantes. O mundo retomava sua forma concreta, mas não sem antes oferecer aquele momento de transição, onde o palpável e o etéreo coexistiam. E na essência daquela manhã, tão breve e indefinível, revelava-se uma verdade subtil: o instante que hesita entre ser e deixar de ser é onde reside a poesia da vida!


(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 42, quinta-feira, 19 de dezembro de 2024, p.39)

segunda-feira, 31 de março de 2025

INTERAÇÃO FILOSÓFICA ENTRE EÇA DE QUEIRÓS, LUÍS DE CAMÕES E CAMILO CASTELO BRANCO.

 O Eça, da nossa Biblioteca Particular, já tem companhia. Quem mais poderia ser se não o Camões. De forma “curta e grossa”, resta-nos esperar pelo Camilo Castelo Branco, parceiro ideal para ambos, tendo em conta que o que temos, deste último, é uma miniatura pouco visível à dimensão do autor do “Amor de Perdição”. O diálogo foi estabelecido, quando menos contávamos. Principalmente pelo arrojo da figura mais diminuta, morador um pouco mais acima, consideramos a possibilidade de o procurarmos entre os parceiros que nos possam atender através da sua benevolência.

Juramos a pés juntos que os ouvimos com a maior das atenções.


No recanto solene de uma das nossas estantes, onde as páginas sussurram histórias e o pó carrega o peso do tempo, três vultos da literatura portuguesa ganham voz e presença.

Luís de Camões, altivo, de olhar penetrante, ainda que só de um olho, fita os companheiros com a intensidade de quem viu mares e batalhas, e profere com gravidade:

— Pois bem, aqui estamos. Eu, que cantei glórias e desventuras de um povo errante, vejo agora os meus versos repousarem ao lado de dois mestres da pena. Dizei-me, Eça e Camilo, que destino tem hoje a literatura? Ainda há espaço para a verdade ou apenas para a conveniência dos tempos?

Eça de Queirós, com a ironia sempre afiada, ajeita os punhos da casaca e responde:

— Ah, meu caro Camões, hoje há espaço para tudo e para nada. A literatura, outrora espelho das sociedades, tornou-se ora entretenimento fugaz, ora manifesto de ideais que pouco dizem à essência humana. Mas não sejamos pessimistas: o que é bem escrito sempre há de sobreviver às eras. Afinal, não é por acaso que ainda discutimos estas questões entre o couro e as lombadas desta Biblioteca Particular.

Camilo Castelo Branco, cruzando os braços, sorri com desdém e completa:

— Ora, ora, Eça, tu e a tua mania do realismo... Como se o mundo pudesse ser explicado em meras descrições de costumes! A literatura não é um espelho da sociedade, mas sim um teatro da alma humana! É no drama, na paixão e no desespero que se encontra a verdade! Eu próprio não escrevi «Amor de Perdição» apenas por vaidade, mas porque a dor é universal, é eterna! Camões, vós sabeis bem disso, não?

O poeta suspira e assente:

— Dor e glória andam de mãos dadas. Mas pergunto-vos: se hoje o mundo se esquece da verdade e da beleza da palavra, que podemos nós, espíritos impressos em papel, fazer senão aguardar leitores que nos compreendam?

Eça sorri com malícia:

— Ora, Camões, sempre haverá leitores curiosos, ainda que poucos. E se há algo que nos une, além do brilho das letras, é que o tempo nos fez imortais. O que escrevemos atravessa as marés da ignorância e ressurge onde menos se espera. Afinal, as miniaturas que nos representam nesta estante são pequenas no tamanho, mas imensas naquilo que carregam.


E assim, entre a ironia de Eça, o dramatismo de Camilo e a altivez épica de Camões, o tempo segue seu curso, e os três vultos, em sua conversação filosófica, permanecem vivos onde quer que nos aventuremos a abrir-lhes as páginas!

domingo, 6 de outubro de 2024

ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO de TIAGO MOITA

 Abstraindo-nos do prefácio e da nota à margem da aba da contracapa, por uma questão de exercício da interpretação estética – teoria que trata do sentimento do Belo e da apreciação do gosto –, muito nosso, sem desvalorizarmos o aval de insignes intelectuais (Guilherme d’Oliveira Martins e Miguel Real) do mundo académico-cultural português, que, por sinal, tanto admiramos, experienciamos assim o contraditório (o que não é o caso) do relativismo radical, que pode constituir um obstáculo para estética, uma vez que a correta validade da explicação da obra através de fatores exteriores à sua beleza, destrói o objetivo da estética.

  

O mesmo não poderemos fazer com os personagens e cenário, bem identificados na sinopse: «Imagina o mundo que tu conheces a colapsar diante dos teus olhos. Imagina ficares, de um momento para o outro, sem eletricidade e veres todos os aparelhos elétricos e eletrónicos inventados pelo Homem a avariarem definitivamente. Imagina um bombeiro com remorsos, uma enfermeira traumatizada, um professor enigmático, uma doméstica revoltada, um médico frenético, uma influencer vaidosa, um youtuber ativista, um engenheiro obcecado, um advogado oportunista, um designer poeta, um ator indeciso e uma criança muda lutando pela sobrevivência e numa viagem em busca de um paraíso terrestre que encontraram num folheto publicitário», por forma a ultrapassarmos a barreira do que nos poderá conduzir, por desvio de atenção, da essência do pensamento e da arte da escrita do autor, tal como afirmou Nietzsche – as modificações que a modernidade provocou na conceção tradicional de arte definindo-a mais como um movimento do que uma procura de um ideal de beleza – tendo em conta que o estatuto de obra de arte (ao qual incluímos a escrita – a arte de bem escrever…) modificou-se devido às experimentações e ruturas que afetaram todas as artes.

E desengane-se quem esperaria, da nossa parte, uma fuga para a frente ou desvalorização do enredo e caracterização dos intervenientes, tendo em conta que quem escreve evidencia parte de si na multiplicidade ou desdobramento dessas mesmas caracterizações. E isso seria deselegante da nossa parte para o autor e para os hipotéticos leitores. Compete aos leitores fazer o seu exercício de interpretação, como forma e direito de não ficarem condicionados pela coação de terceiros.

Quanto à nossa avaliação acerca do pensamento e do bem escrever do autor – produção, trabalho e técnica – que agem sobre a matéria preexistente, aí já nos compete atrair o leitor para – como diria o Luís Miguel Rocha – o lado nato do verdadeiro escritor, forçosamente obrigado a ser um bom observador: «observa o trágico, o doloroso, o mágico, o maravilhoso, aquilo que já foi e o que ainda há de ser, também o que nunca foi o que nunca há de ser…». Afirmaremos ainda que só um bom leitor (inveterado, até…) pode vir a ser um bom escritor. Poderá parecer apenas um cliché, mas como adiante realçaremos, este ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO, inspirado no romance de José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira – tem muito da bem “apetrechada bagagem” do autor. Principalmente do que trás de nato (sabe-se lá de que dimensão…), do absorvido e do trabalhado, qual alquimia que lhe permite estabelecer pontes, elos e sinais dados à natureza humana, ao ser pensante (como é o caso do Tiago), reinterpretando o mundo imaginal, esse mundo intermédio entre o mundo inteligível dos seres de pura Luz e o mundo sensível, cujo órgão que o apreende é a Imaginação.       

Os setenta e nove capítulos, incluindo o epílogo, ainda que a nossa opinião seja sempre subjetiva, leva-nos a concluir que Tiago Moita preenche todos os requisitos para se afirmar e o afirmarmos como um bom escritor. Talvez, muito para além da natureza redutora do bom. Se nos pediram a nossa opinião, aí a têm.

Em lugar de “no princípio era o Verbo”, Tiago Moita inicia romance com o “no princípio era o Medo”, fruto do apagão, sem pregadores e profetas da desgraça; oráculos de adivinhos, astrólogos, xamãs ou toda espécie de visionários; figuras míticas e deuses inventados pelo Homem; búzios, runas e toda a espécie de objetos utilizados por ocultistas para adivinhação do futuro. Sim, neste mundo da tecnologia de ponta, do excesso de informação, rádios e radares, caixas de multibanco, onde o virtual passa a real; das artérias movimentadas e caóticas; e muitas outras variadíssimas situações que levariam o ser humano ao vendaval apocalíptico por ele provocado.

Não é inocente o salto que Tiago Moita dá da Génesis – o paraíso e o fruto proibido, e subsequente Livre Arbítrio –  para a Apocalipse, sem deixar de referir que neste mundo do Medo, “poucos eram aqueles que conseguiam distinguir os lúcidos dos loucos” e “desabar da ordem de um Estado começa dentro das suas paredes”. Aqui são chamados à colação, não a serpente do Éden ou a mulher que se deixou coagir pela tentadora proposta da astuta serpente (a desobediência causa todos os males), mas os polícias das esquadras de todo o mundo, os tribunais, o desespero de “milhares de pessoas de pessoas chorando para os ecrãs frios e pardos dos seus smartphones, tablets e computadores portáteis” (Moita, 2024: 31), etc., etc…


O Apagão Global, chave de todo o enredo em ENSAIO SOBRE O FIM DO MUNDO, onde se dá o colapsar do mundo que nós conhecemos através dos nossos olhos, vai em sentido contrário ao Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, onde só um é que vê. De um ensaio político (desculpem-nos o atrevimento de recorrermos a uma máxima popular – em terras de cegos quem tem olho e rei), em Ensaio dobre o Fim do Mundo, partimos para uma séria reflexão sobre a nossa existência, aquilo que construímos e nos pode destruir, a memória do tempo e dos tempos que estão para lá do tempo,    só possível atingir quando confrontados com o silêncio misturado com o tédio; a falta de paciência; a colisão entre as pessoas, despoletando novas ondas de fúria e medo; o retorno aos métodos manuais de secretariado; o esquecer das estações do ano, enquanto vagueamos em direção ao abismo; a voragem do ódio alastrando como uma epidemia; a pilhagem ou destruição feita por gente (horda de vândalos) embriagada pela fome e pela loucura; os símbolos derrubados [monumento, laboratório, teatro, universidade, museu, centro cultural ou biblioteca], entregues, como afirma, escrevendo, Tiago Moita, “à fúria cega da loucura, da ignorância, do preconceito e do ódio” (Moita, 2024: 45); o tempo que se esvai do mundo através dos olhos dos vivos – palavras de Tiago Moita que nos leva “a começar do zero”, principalmente quando tudo se esvai no horizonte e nas mentes de todos nós. Essa é a sua procura e deveria ser a procura de cada um de nós (deixamos a descrição, a caracterização dos personagens e os cenários, para gaudio dos leitores, sentirem a impressionante mestria do Tiago Moita, na arte de bem escrever).

Sente-se na sua escrita, de forma irrepreensível, o pulsar do conhecimento evolutivo (o insaciável, dentro do conceito d’A Douta Ignorância em Nicolau de Cusa: «Com efeito, nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo o mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber…» (Cusa, 2003: [5]), numa área que nos é muito grata. As próprias dozes partes, assim o denunciam: I – No princípio era o Medo; II – Começar do zero; III – O cetro e o gládio; IV – A Rosa e a Cruz; IV – A Rosa e a Cruz; V – Homo est centrum mundi; VI – O Relógio de Descartes; VII – O espelho da discórdia; VIII – O preço da Liberdade; IX – O grito do entulho; X – Homo ex machina; XI – O Crepúsculo das Luzes; e, finalmente XII – A Grande Verdade – Deixei para o fim quem começou toda esta história. Nunca procurei qualquer espécie de protagonismo nem tenho jeito para despedidas e discursos estéreis de paixão e conteúdo. O sol espreguiça-se no horizonte e começa a afastar os últimos vestígios da noite com os seus braços luminosos, o mundo voltou a seguir o curso da natureza como um cardume quando descobre o pulsar de uma corrente marítima num oceano e a Humanidade voltou a virar mais uma página da sua História, graças à minha ajuda – citamos do Epílogo.

O curso deste Ensaio, feito romance, faz o percurso inverso ao das sagradas escrituras: da Apocalipse para o Génesis, retomando o espírito do universo, a natureza do Homem, mesmo quando em convulsão.

Disse.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Entre os livros: o sonho e a realidade!...

 «Os dias calam-se. A tua terra adormeceu. / A carne de agosto é morna agora. Tu voas / a tarde das aves que voando sossegam. Tu és / taciturna e tens no azul a fadiga do corpo. / As asas cansadas, de vento suave adejam. Sonham. / Tu sabes que as aves sonham. Não. Não te vou falar / das madrugadas. A luz nova das formas move-se / caindo de sombra…»

 

Fernando Hilário

(In, A Exposição da Luz, p. 17)

 

Estamos de volta – no momento em que iniciamos a leitura d’A EXPOSIÇÃO DA LUZ de Fernando Hilário, editado em Aveiro (2016), sob a chancela da «adverte: publicidade edições» –, numa de «abstração reflexiva», processo que incide sobre as nossas próprias ações ou operações cognitivas, dando por nós a termos um dia sonhado, em sermos diretor de um “Centro (Cultural) de Objetores de Consciência” qualquer, pondo mesmo as estruturas cerebrais a serem candidatas a desempenharem a função de comparação e de deteção de erros: «Quem sobre a imobilidade das noites dorme / não ouve os sinais que flutuam nas palavras / nem lhes escuta o azul dos risos…» (Hilário, 2016: 16).


E se assim sonhamos, o fator de produção da ação cognitiva (sonhadora) acabou por encobrir uma inevitável dificuldade de fundo, só porque essa ação se construiu de maneira implícita e não de maneira consciente. Resta-nos o sonho da inevitável «aposentação interior-compulsiva», por vontade própria, antes que a responsabilidade da ação implícita possa vir a ganhar contornos de humilhação.

Sem maquilhagem, apenas com a necessária correção ótica – extensão, enquanto porção de espaço ou característica dos corpos de se situarem no espaço e dele ocuparem uma parte –, por forma a procurarmos o argumento ontológico de vencer a distância que separa o possível do real ou a lógica da existência, enquanto contingência da nossa própria liberdade. Será sempre através dos nossos atos e opções, fazendo a distinção entre experiência (padrão ideal), investigação ativa e metódica, que decidiremos o sentido que pretendemos dar à nossa vida.

E ainda há quem acredite que possa viver, única e exclusivamente, do banho das multidões. Antes o lado platónico de Mónada, como forma de designar a ideia enquanto realidade una, sempre idêntica a si própria e incorruptível. Olhos nos olhos, com ou sem gasóleo no carro ou templo que nos transporta a mente.

Por vezes é preferível falar com os livros, reconhecendo o silêncio sobre a área vazia do nosso refúgio criativo e de leitura (sombra sem ser assombrado), sonhando com um mundo para além deste: «(…) Uma extensão / de rio, um leito sobre um árido profundo, parado. Um fundo / suspenso na origem do frenesim das mãos. Reconheço / os alvores das morfologias, o azul a despertar da luz / abraçada à luz…» (Hilário, 2016: 40).  

Sim, há mais mundo para além deste!

[Cardeal Saraiva (Ponte de Lima), Ano 114, n.º 4919, 04 de agosto de 2023.]