quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXXVIII)

A Capela das Almas, antiga matriz de Viana do Castelo, ergue-se como um limiar onde o humano e o espiritual se entretecem numa respiração comum. O seu corpo românico do século XIII, silencioso e milenar, acolhe não apenas pedras, mas as vibrações etéreas de todos os que ali viveram, morreram e rezaram. É um lugar onde a memória se converte em presença, e onde cada sombra parece conter o eco de passos ancestrais. Nas imediações nasceu a cidade; e assim como o corpo humano nasce do útero, também Viana brotou deste espaço sagrado, fazendo da capela uma espécie de matriz física e metafísica.

Os antigos painéis de azulejo de Nossa Senhora da Guia e de Cristo Crucificado-Divino Salvador não são apenas imagens: são janelas interiores, caminhos que convertem o olhar em meditação. O retábulo das Alminhas, protegido pela grade de ferro, lembra-nos que a vulnerabilidade humana encontra aqui abrigo, uma casa onde os vivos dialogam com os mortos e lhes oferecem memória. O Senhor do pão dos pobres devolve ao espaço a sua vocação ética, lembrando que o sagrado é também cuidado, partilha e carne.

O cruzeiro do Senhor da Boa Lembrança, repousando junto ao alpendre, parece guardar o tempo, como se cada sulco da pedra fosse um suspiro do passado. Apesar das inúmeras transfigurações do edifício, a relação dos vianenses com este lugar permaneceu intacta: não se trata apenas de arquitetura, mas de uma extensão da alma coletiva.

Na sacristia, existiram (sem que lhes conheçamos o rasto), em tempos idos, imagens policromadas dos Reis Magos, que revelavam que a espiritualidade se faz também de viagem e procura. Antes pertencentes à capela dos Cirne, ali repousaram neste corredor de silêncio, lembrando que cada deslocação humana é, no fundo, uma peregrinação interior. Assim, a Capela das Almas permanece como ponte entre tempos, entre vidas, entre mundos – um espelho onde o humano encontra, no espaço físico, o rasto do eterno. 

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 38, quinta-feira, 20 de novembro de 2025, p. 17)

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXXVII)

A Arte Urbana de Bordalo II, que em 2024 tocou poeticamente o coração de Arcos de Valdevez, convida-nos a refletir sobre a tensão entre a estética e a ética do nosso tempo. Artur Bordalo (1987), mais conhecido como Bordalo II, transporta para o espaço público uma filosofia visual onde o belo nasce do descartado, onde a ruína encontra redenção. Mesmo sem concluir o curso na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, o artista transformou as ruas em tela e os restos urbanos em matéria escultórica, fazendo do lixo um manifesto.

A vaca Cachena, símbolo identitário do concelho, emerge da sua obra como metáfora de uma natureza que persiste, mesmo soterrada por excessos humanos. A escolha de resíduos urbanos como corpo dessa figura não é acaso: é denúncia e é proposta. No gesto de recolher objetos abandonados – detritos de obras, fragmentos de carros, restos industriais – Bordalo II reconfigura a narrativa do consumo. Mostra que aquilo que rejeitamos contém ainda potência de sentido e de beleza.

O seu trabalho, apresentado no MurArcos – Festival de Arte Urbana (2024), preforma uma estética da consciência: convoca-nos a ver, sentir e pensar. A criação frente aos próprios contentores de reciclagem adquire dimensão simbólica, quase ritual. É como se a arte se colocasse ali, no limiar entre o que se abandona e o que pode renascer, para nos lembrar que a cultura visual pode ser ferramenta de mudança.

Assim, em Arcos de Valdevez, Bordalo II não apenas embeleza o espaço; ele interroga-o. Faz-nos questionar a “sociedade extremamente consumista, materialista e avarenta” a que ele tão frequentemente alude. Propõe uma nova estética: aquela que une o ético ao belo, a memória local à urgência global. Porque, afinal, é na capacidade de transformar lixo em tesouro que reside a verdadeira arte – e, talvez, a esperança do nosso tempo.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 37, quinta-feira, 13 de novembro de 2025, p. 16)

terça-feira, 11 de novembro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXXVI)

 Santa Luzia gravada na pedra. Santa Luzia, colina de silêncios e de eternidade, ergue-se como altar do tempo onde o olhar se perde e a alma desperta. Na pedra, o cinzel gravou não apenas um poema, mas o sopro da memória, a voz de um homem que soube ver além do visível – Amadeu Torres (Castro Gil), o vate de Vila de Punhe, que transformou a paisagem em verbo e o horizonte em canto. Cada palavra inscrita é uma veia de granito, pulsando com a respiração do mundo, ecoando o murmúrio do Lima e o rumor antigo do Atlântico.

Ali, entre almargens e praias, entre veigas e perfumes, o espírito humano reencontra a sua origem. O Poeta viu o que muitos esquecem: que a beleza não se esconde, apenas se vela sob o hábito da pressa. O alto de Santa Luzia não é apenas miradouro, mas templo – lugar onde a terra se eleva ao encontro do céu.

As marcas do tempo, que tudo desgastam, aqui são bênção. Elas lembram-nos que a eternidade se constrói no efémero, e que a pedra, ainda que imóvel, guarda o movimento da vida. Viana do Castelo sobe, como escreveu o Poeta, até onde a alma chama – e é nessa ascensão que o humano se faz divino.

Santa Luzia permanece, “pérgula sobre o Lima e o mar de tantas bandas”, guardiã da nossa ancestralidade. A pedra gravada é mais do que um monumento: é o testemunho de um sentir que resiste às brumas do tempo. Porque, enquanto houver quem leia a pedra e escute o vento, o poema continuará a respirar – e nós, com ele, perpetuaremos a memória de sermos parte da mesma paisagem sagrada.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 36, quinta-feira, 30 de outubro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXXV)

Em cada horizonte, o tempo se esconde, silencioso e vasto, como o céu que se estende acima de nós, pontilhado de nuvens suaves que flutuam, despreocupadas. A torre do antigo Convento de Sant'Ana, arquitetura barroca e oitocentista – antigo mosteiro feminino da Ordem Beneditina –, erguida com a sabedoria do passado, ainda vigia o presente, onde a história se flui com a modernidade, como os “carris” que a Estação Ferroviária guarda em seu solo.

O elevador para o Monte de Santa Luzia, que nos leva ao alto, é como um convite para refletirmos sobre a nossa própria jornada: subida constante, busca por luz, pela paz que só a altura pode oferecer. Em Viana do Castelo, o tempo dança na suavidade das nuvens e na solidez das pedras, convidando-nos a meditar sobre o que somos e o que seremos, como a paisagem que se revela, serena, diante dos nossos olhos.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 35, quinta-feira, 23 de outubro de 2025, p. 21)

BRUMAS DO TEMPO (XXXIV)

Salvador Vieira (1937–2017) e Cardeal Saraiva (1766–1845) são dois nomes separados por séculos, mas unidos por um mesmo território e por uma mesma inquietação espiritual: a de dar forma à permanência no seio do efémero. Ponte de Lima é o ponto de confluência entre ambos – o espaço onde o tempo parece dobrar-se sobre si mesmo, permitindo que o gesto do escultor reencontre o pensamento do estadista e teólogo. O ato moldado por Salvador Vieira torna-se, assim, mais do que uma homenagem; é a tentativa de restituir à matéria o sopro que o tempo dissipou.

O Cardeal Saraiva, homem de fé e de razão, viveu entre as convulsões políticas e morais de um século que procurava o equilíbrio entre a tradição e a liberdade. Presidente da Câmara dos Deputados em 1826, guarda-mor da Torre do Tombo, Patriarca de Lisboa em 1840 e, finalmente, Cardeal em 1843 – a sua trajetória reflete o drama da consciência portuguesa: a de um povo que oscila entre a submissão e a transcendência. O seu desterro, em 1828, é também símbolo do exílio interior que o pensamento enfrenta quando a verdade é adiada.

Salvador Vieira, por sua vez, moldou o tempo. O seu gesto não é apenas técnico, é filosófico. Cada ajuste das suas mãos sobre o ‘barro-gesso’ interroga o que resta do humano após o desgaste das eras. Ao erguer a estátua do Cardeal Saraiva, o artista não ergue apenas uma figura histórica, mas um espelho. Nessa superfície do bronze repousa a memória de um rio – o Lima – que transporta, nas suas águas, a metáfora da vida que flui e retorna, que separa e une.

Entre o artista e o cardeal, entre o século XIX e o século XX, corre o mesmo fio de prumo que liga a fé à arte, a matéria ao espírito, o local ao universal. As águas do Lima, descendo até Viana, desaguam no Atlântico como a obra de ambos – destinada a perder-se e a permanecer, a dissolver-se no mar do tempo e, paradoxalmente, a vencer a morte através da beleza e da memória.

No silêncio da escultura, o pensamento reencontra a sua morada: o instante em que o tempo deixa de passar e se torna presença. Vieira e Saraiva, filhos da mesma terra, são, afinal, a mesma busca – a da eternidade que habita no efémero. 

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 34, quinta-feira, 16 de outubro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXXIII)

Vila Nova de Cerveira, o passado e o presente, com pontes para o futuro, extinguindo-se as fronteiras, no ganho da dimensão mais humana quando nos detemos na proximidade entre o Alto Minho e a Galiza. Aqui, a linha divisória não é apenas cartográfica, mas uma realidade fluida, moldada pelo rio Minho, pelas montanhas e, sobretudo, pelas pessoas que, ao longo dos séculos, transformaram a fronteira em lugar de encontro. Cultura e história misturam-se, revelando que aquilo que separa também pode unir, que a diferença pode ser semente de partilha.

O desafio reside em reconhecer que o desenvolvimento coletivo não se constrói apenas com infraestruturas físicas – embora as pontes sobre o rio sejam símbolos eloquentes dessa ligação – mas também com pontes de entendimento, confiança e cooperação. A verdadeira riqueza da região não está apenas no comércio ou nas estratégias económicas, mas na capacidade de criar um espaço partilhado onde a identidade se expanda em vez de se retrair.

A história ensina que os povos que habitam zonas de fronteira vivem numa tensão criativa: ora afastados pela autoridade dos Estados, ora unidos pela necessidade e pelo afeto. Essa lição permanece atual. Hoje, quando as fronteiras parecem novamente ganhar força em certos discursos políticos, o Alto Minho e a Galiza recordam-nos que a verdadeira geopolítica começa na cultura, no reconhecimento do outro como parte de nós mesmos.

Assim, a proximidade entre Alto Minho e Galiza é mais do que uma circunstância geográfica; é uma oportunidade de pensar o mundo de forma diferente. Uma fronteira pode ser muralha, mas também pode ser caminho. Cabe-nos escolher qual das duas imagens queremos legar ao passado que está sempre prestes a nascer.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 33, quinta-feira, 09 de outubro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXXII)

Em Sabariz, no coração de Vila Fria, em Viana do Castelo, as ruínas erguem-se como testemunhas mudas de um tempo que já não se pode tocar. As pedras, gastas pelas chuvas e pelo vento, não falam com palavras, mas impõem uma presença que transcende o esquecimento. Ali, cada fragmento do que outrora foi um solar aristocrático contém um eco: disputas de famílias, alianças forjadas e desfeitas, amores consumidos pelo ciúme e pela distância.

Os monumentos, privados de memória própria, oferecem-se como espelhos quebrados nos quais projetamos aquilo que queremos reter. A sua função é menos a de conservar o passado tal como ele foi, e mais a de convocar em nós a necessidade de interpretar, de resgatar. A história, nesses lugares, é sempre uma narrativa inacabada, porque o humano precisa de reescrever, preencher os silêncios, dar voz às pedras.

Entre os ecos que permanecem, ouve-se o rumor do amor impossível de Rui Pereira por Isabel da Silva. Talvez não mais que um sopro, mas suficiente para atravessar os séculos e insinuar que o humano não se apaga na pedra. O conflito entre o desejo e a norma social, entre a paixão e a herança aristocrática, repousa ainda no silêncio das ruínas, lembrando-nos que cada espaço físico é também um campo de forças emocionais.

As relações humanas, tal como os muros caídos, sustentam-se em fragmentos: recordações, palavras ditas e não ditas, presenças e ausências. Em Sabariz, não se trata apenas de visitar ruínas, mas de escutar. Escutar o que nelas persiste como possibilidade de sentido. Cada pedra, ao cair, abre espaço para que o presente dialogue com o passado, fazendo-nos perceber que a memória não é o que resta, mas o que continuamente recriamos. Assim, a ruína não é fim, mas origem. Um convite à consciência de que habitamos sempre os escombros de algo maior do que nós.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 32, quinta-feira, 02 de outubro de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XXXI)

Viana do Castelo, nas manhãs de sexta-feira, guarda um segredo antigo. Entre bancas de legumes e cestos de ovos, cumpre-se um ritual de comunidade. Não é apenas o ato de mercar: é uma liturgia discreta, quase sagrada. As mãos calejadas que pousam tomates ou alfaces sabem mais da terra que mil livros. E quem compra recebe, junto ao produto, um pedaço de vida partilhada.

O Mercado das gentes do campo não é só comércio; é respiração coletiva. Ali o tempo abranda, mesmo que o mundo corra lá fora. Até o Estabelecimento Prisional, vizinho silencioso, parece aprender serenidade. Entre grades e liberdade, a diferença dissolve-se na presença do humano.

Os rostos encontram-se, reconhecem-se, perguntam-se pelas colheitas, pelas dores. Cada palavra é um fio invisível de solidariedade que sustenta a trama social. No ruído das conversas, ecoa uma sabedoria simples: ninguém vive sozinho.

A cidade, com o seu ritmo impaciente, ali encontra humildade rural. Os produtos frescos são mais do que mercadoria: são testemunhos da natureza. Cada maçã carrega a paciência das estações, cada ovo a promessa do ciclo. Há uma ética do visível e do verdadeiro: a qualidade não precisa de propaganda. Tudo é claro como a transparência das águas do Lima. Tudo é honesto como a dureza das mãos que semeiam.

Nesse espaço de bancas alinhadas, o mundo reencontra a sua medida.  É a palavra, mais do que a moeda, que sustenta o valor. E quando regressamos, levamos mais que sacos: levamos pertença. O Mercado é memória, é futuro, é filosofia em ato. Um manifesto silencioso de humanidade que resiste ao esquecimento.

(In,  A Aurora do Lima, Ano 170, Número 31, quinta-feira, 25 de setembro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXX)

Há livros que não se limitam a ser testemunhos de um tempo: são instrumentos de poder, moldes de conduta e tentativas de aprisionar a liberdade do pensamento. Entre estes, destacam-se aqueles que, como as «Constituiçoens Sinodais do Arcebispado de Braga» (1697) – coabitante na nossa Biblioteca Particular –, pretendiam instituir normas absolutas de vida e de fé, oferecendo-se não como diálogo, mas como imposição. Lidos hoje, mesmo que de forma breve, revelam-nos a inquietante herança de um passado em que a palavra escrita se tornava lei para a consciência.

Essa experiência leva-nos a refletir sobre o estatuto do livro e do saber: será a leitura uma abertura à liberdade ou uma clausura disfarçada? Quando um texto se ergue como dogma, transforma-se em muralha contra o pensamento divergente. O homem, em vez de leitor crítico, torna-se súbdito de uma verdade pré-estabelecida, condicionado pelas incertezas que não lhe pertencem, mas que lhe são impostas.

O poder de julgar, que deveria nascer da razão própria e da experiência vivida, passa a ser sequestrado por uma autoridade externa. Neste gesto, dissolve-se a pluralidade das perspetivas e impõe-se a ilusão da verdade absoluta. Porém, a leitura contemporânea dessas páginas já não obedece ao mesmo princípio: ela desvela o anacronismo e revela a fragilidade daquilo que outrora parecia indiscutível.

Assim, cada obra normativa do passado interpela-nos hoje como um duplo espelho: mostra a violência simbólica que um texto pode exercer, mas também a liberdade crítica que nos é dada ao relê-lo no presente. Ao confrontar-nos com o peso histórico de tais imposições, a nossa consciência filosófica renova-se, entendendo que nenhuma verdade sobrevive intacta ao tempo. E é nesse intervalo entre o passado que ordena e o presente que questiona que a leitura reencontra a sua dignidade: não como obediência, mas como exercício de emancipação.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 30, quinta-feira, 18 de setembro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO XXIX

Depois de uma ausência que a vida impôs – e que se revelou necessária, porque o silêncio também é matéria de pensamento – regressamos lentamente ao território das leituras interrompidas. É curioso como os livros, quando ficam em suspenso, aguardam o nosso retorno como se fossem portas entreabertas, prontas a serem atravessadas no instante em que o espírito recobra o fôlego. Voltar a eles não é apenas retomar páginas, mas reencontrar pedaços de nós que ficaram em repouso, aguardando o tempo propício.

A leitura não é mero passatempo: é exercício vital, respiração interior, alongamento da consciência. Sem ela, o mundo torna-se estreito, a imaginação definha, e o pensamento perde o seu horizonte. Ao abrir um livro, não apenas o tocamos; somos também tocados. E nesse gesto, tão simples quanto radical, reencontramos a possibilidade de avançar para outras etapas da vida – aquelas que exigem coragem, discernimento e uma nova delicadeza de olhar.

Valter Hugo Mãe, na «Educação da tristeza», fala do “anseio por mudanças de vida, tempos de maravilha novos, com mais mundo”. Esse anseio é universal: todos carregamos dentro de nós a inquietação de transformar a rotina em aventura, de alargar os limites da experiência, de sonhar realidades ainda não vividas. O que a tristeza educa, afinal, não é a resignação, mas a capacidade de desejar o impossível. É da sombra que nasce a vontade de luz; é da ausência que brota a urgência do reencontro.

Assim, cada regresso à leitura é também um regresso a nós mesmos – à versão mais atenta, mais desperta, mais aberta ao espanto. Se ler é respirar, então cada página é um sopro que nos devolve àquilo que somos em essência: seres de busca, seres de mudança, seres que não se contentam com o que já está dado, mas aspiram sempre a “mais mundo”.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 29, quinta-feira, 11 de setembro de 2025, p. 18) 

BRUMAS DO TEMPO (XXVIII)

A existência humana encontra na natureza o seu mais antigo espelho. O rio, com o seu curso perene, recorda ao homem que a vida é fluxo e retorno, princípio e fim que se renovam. Assim, nas margens do Lima, a tradição dos “Batizados da Meia-Noite” em Ponte da Barca, ergue-se como um vestígio sagrado da ligação entre o Ser e a Terra. Ali, a mulher grávida não era apenas indivíduo, mas portadora da continuidade da comunidade e da memória.

O ventre, tocado pelas águas, tornava-se recetáculo do mistério. O púcaro de barro, humilde e frágil, simbolizava a união entre o elemento humano e o elemento natural. A água colhida não era apenas líquido, mas essência vital, herança da nascente que percorre as serras. O ramo de oliveira, aspergindo o ventre, evocava a paz e a fertilidade que atravessam séculos de crença.

Cada gesto ritual transportava consigo o eco da ancestralidade. A ponte, lugar de passagem, transformava--se em altar, onde o visível e o invisível se tocavam. Na hora silenciosa da noite, o badalar do sino confundia-se com o coração da terra. E a escolha do padrinho não era fortuita, mas selava um pacto espiritual, mais profundo que o laço social.

A confraternização, depois do rito, celebrava não apenas a vida que viria, mas também a comunhão entre os homens. O vinho verde, o presunto, a boroa – eram, mais que alimento, sinais de partilha, vínculos de pertença. A natureza, aqui, não se limitava a servir, mas participava ativamente da criação. A serra, o rio, o vento noturno – todos eram testemunhas e cúmplices da fecundidade.

O nascimento não era ato biológico isolado, mas acontecimento cósmico. Na crença popular, o invisível encarnava-se nos ritos simples, sustentando a esperança. Assim, a tradição preservava a harmonia entre homem e mundo. E mesmo que envolta em lendas, guardava em si uma verdade mais profunda que a razão.

A verdade de que somos, antes de tudo, filhos da terra e das águas. Que cada geração floresce enraizada nos gestos daqueles que vieram antes. E que na ponte de pedra, sob o luar e o sino, ecoava o eterno pacto do ser com a natureza.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 28, quinta-feira, 21 de agosto de 2025, p. 22)

BRUMAS DO TEMPO (XXVII)

A vida é um entrelaçar de encontros e despedidas, onde as relações verdadeiras se destacam como faróis no nevoeiro da existência. Entre tantas participações ativas no âmbito jornalístico-cultural, fomos tecendo uma rede de afetos sustentada na lealdade e no respeito mútuo. Não eram apenas projetos; eram capítulos vivos de uma amizade que se alimentava do diálogo, da partilha e do reconhecimento do valor do outro.

Todos carregamos dias cinzentos, fragilidades e desencontros. Contudo, a cumplicidade e a tolerância, quando enraizadas na ética da reciprocidade, transformam obstáculos em pontes. A amizade genuína não é a ausência de conflitos, mas a presença constante de um compromisso silencioso: estar lá, mesmo quando não é fácil.

Recordamos as viagens, não apenas como deslocações físicas, mas como jornadas interiores, onde cada paisagem observada era um pretexto para refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos. Palestras que não se limitavam ao intelecto, mas que desafiavam o espírito a pensar mais fundo. Momentos gastronómicos que iam além do paladar, pois eram temperados pela conversa e pelo sentir ético, que tornava cada encontro mais pleno.

Há memórias que não se guardam apenas na mente, mas no próprio tecido do ser. BERNARDO BARBOSA não foi apenas um companheiro de atividades; foi um interlocutor da vida, alguém que trouxe densidade às conversas e leveza aos momentos.

O “até sempre” que lhe dedicamos não é despedida, mas continuação. Porque a presença de um verdadeiro amigo não se mede pelo tempo ou pelo espaço, mas pela permanência silenciosa que deixa nas nossas ações e no nosso modo de estar no mundo.

Assim, seguimos, levando connosco a herança de tudo o que foi vivido – sabendo que, em cada gesto ético, em cada palavra leal, em cada ato de amizade, a sua memória se renova e permanece.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 27, quinta-feira, 14 de agosto de 2025, p. 9) 

BRUMAS DO TEMPO (XXVI)

O rebombar dos bombos e o toque vibrante das concertinas na festa da Agonia, em Viana do Castelo, não são apenas sons. São pulsações de um povo, batimentos do coração coletivo de uma terra que celebra, sim, mas também se purga. A festa, dedicada a Nossa Senhora da Agonia, carrega no nome a marca da dor, mas é na sua manifestação que se revela algo maior: uma ponte invisível entre o sofrimento e a alegria. O barulho que ecoa nas ruas e dentro das almas não é ruído, é linguagem. É o modo como o ser humano, ancestral e presente, se comunica com o que não consegue dizer com palavras.

É uma celebração que tem tanto de espiritual como de carnal. Há fé, há devoção, mas há também um extravasar quase instintivo, como se cada toque de bombo libertasse dores antigas, e cada acorde da concertina fizesse vibrar esperanças ainda por cumprir. A festa é um ritual de transfiguração: a dor não é negada, mas dançada; o sofrimento não é escondido, mas lavado na alegria. A multidão, ao participar, não se limita a venerar a santa – reinventa-se. A alma popular, cansada do peso quotidiano, encontra ali uma forma de se elevar sem se desprender do chão.

Na festa da Agonia, o humano encontra-se a si mesmo entre extremos. E nessa travessia emocional, percebe que a alegria mais intensa nasce frequentemente da dor mais profunda. A festa torna-se, então, espelho e catarse, onde se canta, se chora e se exalta – não para esquecer o sofrimento, mas para o transformar.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 26, quinta-feira, 07 de agosto de 2025, p. 41)

 

sábado, 4 de outubro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXV)

Há instantes na existência em que o peso do mundo parece maior do que a nossa própria sombra. Nessas alturas, a terapia mais eficaz raramente se encontra em receitas prontas ou em fórmulas universais. Surge, antes, na forma de uma presença silenciosa, constante, quase invisível – aquela figura que, longe da ribalta e dos aplausos, se dedica a cuidar de nós com genuína entrega. São eles que nos recordam que o amor verdadeiro não se exibe: manifesta-se no silêncio atento, na escuta profunda, no toque leve que não impõe, mas ampara.

Essas almas discretas percebem-nos para além do que julgamos mostrar. Vêm-nos com olhos que não se limitam à superfície. Intuem os nossos silêncios, leem nas entrelinhas do nosso gesto, ampliam aquilo que nós mesmos não conseguimos ver. Através deles, o nosso mundo – esse espaço por vezes tão estreito e condicionado – ganha outras dimensões. A realidade torna-se fluida, aberta, rica em sentidos que só a intuição pode decifrar. A continuidade da vida é, assim, tecida com fios invisíveis de cuidado e pertença.

O Poço da Moura, junto ao ribeiro de São João, Labruja, Ponte de Lima, não é apenas um recanto bucólico; é símbolo vivo dessa terapêutica ancestral, feita de memória, de presença e de amor. A natureza sussurra verdades que esquecemos na correria dos dias. Ali, o tempo abranda, e o coração reconhece aquilo que verdadeiramente importa: anos de companhia, de partilha, de olhar na mesma direção. É esse amor sereno e perseverante que cura, não com palavras, mas com a fidelidade da presença.

Sim, haverá sempre alguém ao nosso lado – ainda que por vezes duvidemos. Basta silenciar o ruído e escutar com o espírito das águas. A verdadeira terapia não se impõe: revela-se. E, quando o faz, percebemos que nunca estivemos sós.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 25, quinta-feira, 24 de julho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXIV)

Num recanto sagrado de Viana do Castelo, onde a pedra resiste ao tempo e a fé persiste no coração dos homens, ergue-se a Capela de São Roque como um elo entre o passado e o presente. Construída em 1623 e renascida mais de uma vez das cinzas da ruína, esta capela não é apenas uma estrutura de granito, mas um testemunho vivo do percurso humano – da dor, da esperança e da transcendência.

O ser humano, ao longo dos séculos, sempre procurou eternizar o que sente e o que crê. No granito talhado, no madeiramento do teto, no altar onde repousa São Roque em trajes de peregrino, lemos mais do que arte: lemos história, e, sobretudo, lemos fé. A ferida exposta na perna do santo, símbolo da peste que assolou tempos difíceis, é também metáfora das feridas humanas – visíveis ou não – que cada geração carrega. E o cão fiel, que lhe leva pão, é a imagem silenciosa da compaixão que sustenta o caminho dos que caem.

A vieira, símbolo do peregrino de Santiago, gravada nas vestes do santo, continua a apontar o rumo para quem busca mais do que destino: sentido. A capela, situada numa zona de passagem para Compostela, torna-se um limiar entre o sagrado e o profano, entre o corpo fatigado e o espírito em busca.

Hoje, perante os muros de alvenaria e o gradeamento que resguarda o adro, somos convidados a refletir: o que resta de nós nas pedras que tocamos? O que deixamos inscrito no mundo, como deixaram os que, antes de nós, construíram e reconstruíram este lugar?

Assim, na quietude da capela de São Roque, compreendemos que o património não é apenas memória – é diálogo entre tempos. E que a fé, mais do que um ato individual, é uma ponte invisível entre o passado que nos moldou e o presente que esculpimos. 

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 24, quinta-feira, 17 de julho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXIII)

O Cidadão das Cores esquecido em Viana do Castelo. Há vidas que se pintam com as tintas do tempo, sem jamais secarem na memória coletiva. A de Luís Darocha é uma dessas. Filho da arte e neto da inquietação, descendente do emblemático João da Rocha (O Frei) – o vianense das Angústias e das Memórias de um Médium –, Luís não foi apenas um pintor – foi um cidadão criativo, um pensador em tela, um errante da estética. Nasceu em Oliveira de Azeméis, mas foi em Londres e Paris que deixou que a sua alma se desdobrasse em paletas e silêncios densos de sentido.

Darocha não usava pincéis apenas para retratar o visível, mas para perscrutar o invisível – esse que escapa aos olhos e mora no intervalo entre o gesto e o pensamento. Fez da sua vida um ato de criação contínua, onde estudar antropologia era tão natural como mergulhar no expressionismo mais íntimo. A arte, para ele, nunca foi um refúgio: era campo de batalha, era trincheira de humanidade.

Na Paris que o adotou, ensinou, partilhou, expôs. Mas foi o Portugal que o esqueceu – talvez por nos doer encarar quem nos recorda o que poderíamos ser: sensíveis, inquietos, atentos. Como tantos, foi mais celebrado fora do que dentro. A Medalha de Ouro de 2014 não basta para apagar décadas de silêncio. A sua última exposição, Ondulações de Estilo, nomeava bem a sua metamorfose interior – porque Darocha não era uma assinatura estática, era um processo contínuo de reinvenção.

Hoje, ao evocarmos o seu nome, não fazemos apenas justiça a um artista, mas também lançamos uma pergunta às cidades que habitamos: o que fazemos com os que nos refletem? Luís Darocha viveu como pintou – com intensidade, com riscos, com verdade. E talvez seja esse o verdadeiro papel do artista-cidadão: lembrar-nos, sem concessões, que criar é viver – e viver, por vezes, é uma forma urgente de resistência.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 23, quinta-feira, 10 de julho de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XXII)

A dignidade da memória e o valor dos que partem. Num mundo cada vez mais acelerado e pragmático, a figura do emigrante surge como um paradoxo silencioso: ao mesmo tempo em que representa a ausência, carrega consigo a presença mais fiel de uma terra – a memória viva de um lugar no coração. Poucos desejam verdadeiramente emigrar. A partida, quase sempre, é imposta pela necessidade, pelo sonho de dignidade, por uma esperança que a terra natal, por si só, já não consegue oferecer. No entanto, é justamente essa ausência que, ao longo do tempo, se transforma em presença estrutural.

É imperativo, do ponto de vista ético, que a sociedade reconheça o valor do que foi feito longe, mas com amor à origem. Em cada pedra enviada, em cada carta escrita, em cada regresso temporário, há um esforço de ligação. Não reconhecer isso é trair a identidade coletiva. A ingratidão, quando institucionalizada, gera amnésia cultural – e uma comunidade que não honra os seus não é mais do que um aglomerado sem alma.

Monumentos como o painel de azulejos de Vila de Punhe fazem mais do que homenagear. Eles reconstroem, simbolicamente, a ponte entre o que partiu e o que ficou. Mais do que arte, são memória. Mais do que beleza, são ética. Valorizá-los é compreender que o progresso não se mede apenas pelo que se constrói com os que ficam, mas também com o que se recebe dos que partem. O verdadeiro futuro de uma comunidade começa quando ela honra, sem hesitação, os seus pilares invisíveis.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 22, quinta-feira, 03 de julho de 2025, p. 19)

BRUMAS DO TEMPO (XXI)

Há pedras que não são apenas pedras. São marcos – sólidos, graníticos, imóveis – mas cheios de movimento por dentro. São elas que seguram a memória quando os homens já a esqueceram. No coração desses blocos silenciosos, ecoa uma história antiga, feita de passos e mãos que moldaram a terra antes de nós. São os nossos antepassados, ali enterrados não sob a terra, mas na superfície das coisas que ignoramos.

O granito, com a sua dureza austera, é resistência. Não apenas à erosão dos ventos, mas à erosão da consciência. Ele permanece quando tudo o resto cede. É a matéria da memória e do esquecimento – simultaneamente. Porque, por mais que se mantenha firme, precisa de olhos que o vejam e almas que o sintam.

Somos muitas vezes negligentes com aquilo que nos formou. Passamos ao lado destes marcos como se fossem acidentes do terreno, obstáculos a evitar, não sinais a interpretar. E no entanto, estão ali a dizer-nos de onde viemos, quem éramos, e talvez até quem ainda somos, por baixo da camada de pressa e distração que hoje nos define.

Essas pedras falam. Não com voz, mas com presença. Dizem que houve um tempo em que o solo era sagrado, e os lugares tinham nomes que significavam algo. Que existiu um vínculo entre o homem e a terra que o sustentava – e esse vínculo foi gravado em granito.

Esquecê-las é esquecer-nos. Desprezá-las é romper a soberania do nosso próprio enraizamento. Mas há esperança na permanência: talvez o tempo nos devolva o sentido. Talvez ao pararmos diante desses marcos, com respeito, ouçamos outra vez as gerações que nos antecederam a chamar por nós, pela nossa memória, pela nossa identidade.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 21, quinta-feira, 27 de junho de 2025, p. 16) 

BRUMAS DO TEMPO (XX)

Entre o Ribeiro e o Tempo. Há lugares onde o tempo escorre devagar, como se tivesse memória. O Ribeiro de S. Simão, afluente do Rio Lima, com o seu sussurro milenar, murmura histórias que não estão nos livros. As pedras molhadas, polidas por passos que já não se contam, guardam o eco de vozes antigas – os nossos avós, e os avós deles, curvados sobre a terra, com as mãos no húmus e os olhos no céu.

A água que ali corre, vinda das entranhas das serras, encontra-se com a maré atlântica como quem reencontra um irmão distante. Mistura-se o doce com o salgado, o interior com o oceânico, e nesse abraço nasce uma nova pele do mundo.

Entre o musgo e o granito, cresce uma aguarela viva: aves em voo baixo, peixes ligeiros, arbustos que resistem ao tempo como resistimos nós – teimosamente vivos. E somos isso: parte da seiva, do ciclo, da dança invisível entre sol e sombra.

A terra que pisamos é também ela um corpo que nos lembra quem somos. Não somos donos: somos descendentes, inquilinos de passagem, herdeiros de silêncios e cantigas.

Ali, entre o ribeiro e o Lima, o homem é menos vaidade e mais raiz, porque continuamos a dar testemunho daquilo que somos e de onde vimos.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 20, quinta-feira, 19 de junho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XIX)

Em Vila Franca do Lima, Viana do Castelo, no coração de uma pequena oficina, entre o cheiro da madeira e o som ritmado das ferramentas manuais e mecânicas, trabalha António Barrosa, um verdadeiro mestre da arte de esculpir a memória. Artesão apaixonado, dedica-se há décadas à criação de réplicas perfeitas de utensílios tradicionais, recriando com minúcia e alma objetos que fizeram parte do quotidiano de gerações passadas.

Mas António não se limita ao utilitário: entre as suas obras mais impressionantes estão bicicletas antigas – funcionais e ao tamanho natural – totalmente construídas em madeira rija – sim, até os pedais e as correntes! Cada peça, por mais pequena ou complexa que seja, é talhada à mão, com uma paciência que só quem ama profundamente o que faz consegue manter. O resultado é um acervo vastíssimo de milhares de miniaturas e réplicas ao tamanho natural, todas, testemunhos vivos de um Portugal que resiste ao esquecimento.

A obra de António Barrosa é, em si mesma, um património cultural inestimável. Infelizmente, grande parte deste tesouro continua guardada longe dos olhos do público. É urgente a criação de um museu que acolha de forma digna e permanente estas peças. Um espaço onde se possa celebrar não só a arte do artesanato tradicional, mas também a persistência de quem, contra a maré do tempo, continua a dar forma à história com as próprias mãos.

Preservar o legado de António Barrosa é preservar a identidade de um povo. É dar às gerações futuras a oportunidade de ver, tocar e sentir as raízes de onde viemos. Um museu não seria apenas uma homenagem ao artesão, mas um ato de respeito pela nossa memória coletiva.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 19, quinta-feira, 05 de junho de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XVIII)

Em Cabanas, recanto sereno de Afife, onde o mar se insinua por entre os montes e a brisa traz rumores antigos, Pedro Homem de Mello encontrou o seu pouso da alma. Ali, longe do rumor das cidades e perto da música primordial da terra, ergueu-se o seu refúgio de silêncio e poesia.


As fragas guardavam-lhe os passos como confidentes ancestrais, imutáveis, fiéis. No sussurro do vento entre os pinheiros, ouvia-se o eco do verso ainda por escrever. E era como se o tempo ali hesitasse – como se o mundo se demorasse um pouco mais, para escutar o murmúrio do mar e o pensamento do homem que o contemplava.

«As águas são para o mar, / As folhas são para o vento. / Só as fragas se não mudam! / Nelas ficam o pensamento…» – esse breve brado poético ressoa como oração laica, como segredo revelado àqueles que sabem escutar com o coração aberto.

As águas levavam o efémero. As folhas, o instante. Mas as pedras – aquelas pedras do Norte, firmes e silenciosas – sabiam guardar o que é essencial. Em cada fissura da rocha, Pedro Homem de Mello deixava um verso, uma memória, um fragmento da sua eternidade.

Em Cabanas, a paisagem não era apenas cenário: era corpo e espírito, era matéria viva onde o poeta se fundia. E assim ficou incrustado nos musgos, na maresia, na sombra dos carvalhos – como quem, ao encontrar o seu lugar no mundo, escolhe não partir mais.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 18, quinta-feira, 29 de maio de 2025, p. 16) 

BUMAS DO TEMPO (XVII)

Ao nos depararmos com a porta de uma igreja ornada com um vitral que exibe a vieira, em Vila Nova de Anha, símbolo marcante dos Caminhos de Santiago de Compostela, vemos não apenas uma porta física, mas uma passagem simbólica entre o mundo profano e o sagrado. A vieira, com suas linhas que convergem ao centro, representa a convergência dos caminhos em direção a um ponto comum: o encontro do ser humano consigo mesmo e com o transcendente.


Tal como a vieira marca os passos dos peregrinos em direção a Santiago, a concha assume um novo significado no ritual do batismo dentro dessa igreja, onde é usada para levar a água benta, símbolo de pureza e renascimento, até à cabeça da criança.

O batismo, com a água retirada pela concha, não é apenas um ato de purificação. Ele é o princípio de uma caminhada, uma jornada pela vida onde a pessoa é inserida num novo caminho espiritual, numa jornada contínua de busca, escolhas e crescimento. A água, fonte essencial de vida, renova o ser humano e marca o início de uma nova caminhada: o ato de viver, de peregrinar pela existência, de crescer.

Do lado de fora, projetado pelo vitral, está a figura de um transeunte, alguém que, talvez sem saber, encontra-se também em sua própria jornada. A simbologia desse caminhar faz-nos lembrar que todos somos peregrinos e que, a cada passo, fazemos escolhas, enfrentamos encruzilhadas, como numa caminhada eterna que vai do mundano ao espiritual, do profano ao sagrado.

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 17, quinta-feira, 22 de maio de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XVI)

 As varandas iluminadas da Misericórdia de Viana do Castelo, sob o manto da noite, não são apenas pedra, luz e história – são espelhos da alma humana. O edifício da “Casa das Varandas” transcende o tempo ao carregar em si o gesto de cuidar. Ali, onde o Renascimento e o Maneirismo se encontram, pulsa uma arte que não se limita ao estético, mas se expande ao ético. A beleza das colunas, das arcadas e das linhas harmónicas reflete a procura do homem pelo equilíbrio entre razão e sensibilidade.


Inspirada por mestres italianos e flamengos, a estrutura nasce num tempo em que o homem se redescobria como centro do mundo. Mas neste caso, o centro não é o ego, é o outro – aquele que sofre, aquele que precisa. A confraria da Misericórdia, ao construir este espaço, inscreveu na pedra um ideal de compaixão. Cada varanda é palco de uma silenciosa promessa: ver o mundo com olhos de humanidade.

A Arte, aqui, não é apenas ornamento, é gesto. É uma mão estendida, é a arquitetura do cuidado. Num tempo de luzes e sombras, de dúvidas e certezas, a Casa das Varandas ergue-se como símbolo de um humanismo ativo. Assim, este edifício não é apenas memória – é proposta. É chamado à empatia, à responsabilidade, à transcendência. Porque a verdadeira Arte não é indiferente. Ela educa o olhar, desperta a consciência. É voz do silêncio, é ética em forma de matéria. E quando a luz da noite banha estas varandas, não vemos apenas um edifício renascentista. Vemos um ideal – o de um mundo onde a beleza e o cuidado caminham juntos. Como deveriam caminhar sempre!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 16, quinta-feira, 15 de maio de 2025, p. 17)

BRUMA DO TEMPO (XV)

A Romaria de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, e a Romaria de Nossa Senhora das Boas Novas, em Mazarefes, embora distintas na forma e contexto, encontram-se unidas pela mesma matriz simbólica e espiritual: o anseio humano de proteção, gratidão e sentido diante da incerteza da existência. Ambas representam manifestações profundamente enraizadas na experiência das comunidades piscatórias, cujo quotidiano se desenrola entre a vastidão incerta do mar e o abrigo precário da terra.


Nossa Senhora da Agonia é invocada antes da partida, no momento da entrega do ser ao desconhecido, onde o medo da morte e da perda se impõem. Já Nossa Senhora das Boas Novas é o símbolo da chegada, do retorno seguro, da esperança cumprida. O seu andor, réplica de uma nau, e a rara iconografia da caravela nas mãos, evidenciam essa ligação visceral entre fé e travessia. O mar torna-se metáfora da vida – ora serena, ora revolta – e a fé é o fio invisível que liga o ser ao sentido, perante a finitude.

Filosoficamente, estas romarias traduzem o paradoxo da condição humana: o desejo de transcendência perante a vulnerabilidade. Psicológica e existencialmente, elas revelam a busca de um lugar de pertença, consolo e identidade. A imagem da Senhora com a caravela remete para a travessia interior do sujeito – a peregrinação da alma que, ao enfrentar os perigos do “mar de si mesmo”, reconhece a necessidade de um horizonte espiritual que o salve do naufrágio do vazio. Assim, estas manifestações não são apenas festas religiosas, mas rituais do ser em busca de sentido.

 (In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 15, quinta-feira, 08 de maio de 2025, p. 22)

BRUMAS DO TEMPO (XIV)

 No Cimo da Memória. Lá no alto, onde o granito beija o céu e a história se entranha na bruma da serra, ergue-se a antiga alma do Hotel de Santa Luzia, hoje Pousada de Viana do Castelo, como quem guarda segredos antigos e o tempo parece respirar mais devagar.

Mais que pedra e forma, é guardiã do tempo – de um tempo que se recusa a desaparecer.

Ali, junto à citânia ancestral, o espírito da proto-história murmura entre as arcadas e os pinhais. A basílica do Sagrado Coração de Jesus – e Santa Luzia –, grandiosa, acompanha em silêncio, como sentinela da fé que atravessa os séculos.


Aos pés desse miradouro sagrado, o rio Lima – o mítico Lethes de impérios de antanho – corre suave e constante até à foz. Diziam os romanos que quem o cruzasse perderia a memória. Mas aqui, paradoxalmente, tudo se lembra.

Cada curva do rio guarda ecos de navios, vozes de peregrinos, sonhos que resistem à erosão do tempo. A paisagem – montanha, rio, oceano, cidade e basílica – não se limita a ser bela; ela nos recorda que somos ponte entre o que foi e o que virá.

A vista alcança o Atlântico, o horizonte e o íntimo. Ver com olhos que não têm pressa.

E ali, o viajante compreende que o esquecimento não é ausência – é escolha.

Na Pousada, em vez de nos esquecermos, aprendemos a recordar com reverência. E perceber que, às vezes, a verdadeira viagem é permanecer – e escutar o silêncio das alturas.

Porque há lugares onde o tempo repousa e a memória desperta!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 14, quinta-feira, 24 de abril de 2025, p. 17)