sábado, 4 de outubro de 2025

BRUMAS DO TEMPO (XXV)

Há instantes na existência em que o peso do mundo parece maior do que a nossa própria sombra. Nessas alturas, a terapia mais eficaz raramente se encontra em receitas prontas ou em fórmulas universais. Surge, antes, na forma de uma presença silenciosa, constante, quase invisível – aquela figura que, longe da ribalta e dos aplausos, se dedica a cuidar de nós com genuína entrega. São eles que nos recordam que o amor verdadeiro não se exibe: manifesta-se no silêncio atento, na escuta profunda, no toque leve que não impõe, mas ampara.

Essas almas discretas percebem-nos para além do que julgamos mostrar. Vêm-nos com olhos que não se limitam à superfície. Intuem os nossos silêncios, leem nas entrelinhas do nosso gesto, ampliam aquilo que nós mesmos não conseguimos ver. Através deles, o nosso mundo – esse espaço por vezes tão estreito e condicionado – ganha outras dimensões. A realidade torna-se fluida, aberta, rica em sentidos que só a intuição pode decifrar. A continuidade da vida é, assim, tecida com fios invisíveis de cuidado e pertença.

O Poço da Moura, junto ao ribeiro de São João, Labruja, Ponte de Lima, não é apenas um recanto bucólico; é símbolo vivo dessa terapêutica ancestral, feita de memória, de presença e de amor. A natureza sussurra verdades que esquecemos na correria dos dias. Ali, o tempo abranda, e o coração reconhece aquilo que verdadeiramente importa: anos de companhia, de partilha, de olhar na mesma direção. É esse amor sereno e perseverante que cura, não com palavras, mas com a fidelidade da presença.

Sim, haverá sempre alguém ao nosso lado – ainda que por vezes duvidemos. Basta silenciar o ruído e escutar com o espírito das águas. A verdadeira terapia não se impõe: revela-se. E, quando o faz, percebemos que nunca estivemos sós.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 25, quinta-feira, 24 de julho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXIV)

Num recanto sagrado de Viana do Castelo, onde a pedra resiste ao tempo e a fé persiste no coração dos homens, ergue-se a Capela de São Roque como um elo entre o passado e o presente. Construída em 1623 e renascida mais de uma vez das cinzas da ruína, esta capela não é apenas uma estrutura de granito, mas um testemunho vivo do percurso humano – da dor, da esperança e da transcendência.

O ser humano, ao longo dos séculos, sempre procurou eternizar o que sente e o que crê. No granito talhado, no madeiramento do teto, no altar onde repousa São Roque em trajes de peregrino, lemos mais do que arte: lemos história, e, sobretudo, lemos fé. A ferida exposta na perna do santo, símbolo da peste que assolou tempos difíceis, é também metáfora das feridas humanas – visíveis ou não – que cada geração carrega. E o cão fiel, que lhe leva pão, é a imagem silenciosa da compaixão que sustenta o caminho dos que caem.

A vieira, símbolo do peregrino de Santiago, gravada nas vestes do santo, continua a apontar o rumo para quem busca mais do que destino: sentido. A capela, situada numa zona de passagem para Compostela, torna-se um limiar entre o sagrado e o profano, entre o corpo fatigado e o espírito em busca.

Hoje, perante os muros de alvenaria e o gradeamento que resguarda o adro, somos convidados a refletir: o que resta de nós nas pedras que tocamos? O que deixamos inscrito no mundo, como deixaram os que, antes de nós, construíram e reconstruíram este lugar?

Assim, na quietude da capela de São Roque, compreendemos que o património não é apenas memória – é diálogo entre tempos. E que a fé, mais do que um ato individual, é uma ponte invisível entre o passado que nos moldou e o presente que esculpimos. 

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 24, quinta-feira, 17 de julho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XXIII)

O Cidadão das Cores esquecido em Viana do Castelo. Há vidas que se pintam com as tintas do tempo, sem jamais secarem na memória coletiva. A de Luís Darocha é uma dessas. Filho da arte e neto da inquietação, descendente do emblemático João da Rocha (O Frei) – o vianense das Angústias e das Memórias de um Médium –, Luís não foi apenas um pintor – foi um cidadão criativo, um pensador em tela, um errante da estética. Nasceu em Oliveira de Azeméis, mas foi em Londres e Paris que deixou que a sua alma se desdobrasse em paletas e silêncios densos de sentido.

Darocha não usava pincéis apenas para retratar o visível, mas para perscrutar o invisível – esse que escapa aos olhos e mora no intervalo entre o gesto e o pensamento. Fez da sua vida um ato de criação contínua, onde estudar antropologia era tão natural como mergulhar no expressionismo mais íntimo. A arte, para ele, nunca foi um refúgio: era campo de batalha, era trincheira de humanidade.

Na Paris que o adotou, ensinou, partilhou, expôs. Mas foi o Portugal que o esqueceu – talvez por nos doer encarar quem nos recorda o que poderíamos ser: sensíveis, inquietos, atentos. Como tantos, foi mais celebrado fora do que dentro. A Medalha de Ouro de 2014 não basta para apagar décadas de silêncio. A sua última exposição, Ondulações de Estilo, nomeava bem a sua metamorfose interior – porque Darocha não era uma assinatura estática, era um processo contínuo de reinvenção.

Hoje, ao evocarmos o seu nome, não fazemos apenas justiça a um artista, mas também lançamos uma pergunta às cidades que habitamos: o que fazemos com os que nos refletem? Luís Darocha viveu como pintou – com intensidade, com riscos, com verdade. E talvez seja esse o verdadeiro papel do artista-cidadão: lembrar-nos, sem concessões, que criar é viver – e viver, por vezes, é uma forma urgente de resistência.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 23, quinta-feira, 10 de julho de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XXII)

A dignidade da memória e o valor dos que partem. Num mundo cada vez mais acelerado e pragmático, a figura do emigrante surge como um paradoxo silencioso: ao mesmo tempo em que representa a ausência, carrega consigo a presença mais fiel de uma terra – a memória viva de um lugar no coração. Poucos desejam verdadeiramente emigrar. A partida, quase sempre, é imposta pela necessidade, pelo sonho de dignidade, por uma esperança que a terra natal, por si só, já não consegue oferecer. No entanto, é justamente essa ausência que, ao longo do tempo, se transforma em presença estrutural.

É imperativo, do ponto de vista ético, que a sociedade reconheça o valor do que foi feito longe, mas com amor à origem. Em cada pedra enviada, em cada carta escrita, em cada regresso temporário, há um esforço de ligação. Não reconhecer isso é trair a identidade coletiva. A ingratidão, quando institucionalizada, gera amnésia cultural – e uma comunidade que não honra os seus não é mais do que um aglomerado sem alma.

Monumentos como o painel de azulejos de Vila de Punhe fazem mais do que homenagear. Eles reconstroem, simbolicamente, a ponte entre o que partiu e o que ficou. Mais do que arte, são memória. Mais do que beleza, são ética. Valorizá-los é compreender que o progresso não se mede apenas pelo que se constrói com os que ficam, mas também com o que se recebe dos que partem. O verdadeiro futuro de uma comunidade começa quando ela honra, sem hesitação, os seus pilares invisíveis.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 22, quinta-feira, 03 de julho de 2025, p. 19)

BRUMAS DO TEMPO (XXI)

Há pedras que não são apenas pedras. São marcos – sólidos, graníticos, imóveis – mas cheios de movimento por dentro. São elas que seguram a memória quando os homens já a esqueceram. No coração desses blocos silenciosos, ecoa uma história antiga, feita de passos e mãos que moldaram a terra antes de nós. São os nossos antepassados, ali enterrados não sob a terra, mas na superfície das coisas que ignoramos.

O granito, com a sua dureza austera, é resistência. Não apenas à erosão dos ventos, mas à erosão da consciência. Ele permanece quando tudo o resto cede. É a matéria da memória e do esquecimento – simultaneamente. Porque, por mais que se mantenha firme, precisa de olhos que o vejam e almas que o sintam.

Somos muitas vezes negligentes com aquilo que nos formou. Passamos ao lado destes marcos como se fossem acidentes do terreno, obstáculos a evitar, não sinais a interpretar. E no entanto, estão ali a dizer-nos de onde viemos, quem éramos, e talvez até quem ainda somos, por baixo da camada de pressa e distração que hoje nos define.

Essas pedras falam. Não com voz, mas com presença. Dizem que houve um tempo em que o solo era sagrado, e os lugares tinham nomes que significavam algo. Que existiu um vínculo entre o homem e a terra que o sustentava – e esse vínculo foi gravado em granito.

Esquecê-las é esquecer-nos. Desprezá-las é romper a soberania do nosso próprio enraizamento. Mas há esperança na permanência: talvez o tempo nos devolva o sentido. Talvez ao pararmos diante desses marcos, com respeito, ouçamos outra vez as gerações que nos antecederam a chamar por nós, pela nossa memória, pela nossa identidade.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 21, quinta-feira, 27 de junho de 2025, p. 16) 

BRUMAS DO TEMPO (XX)

Entre o Ribeiro e o Tempo. Há lugares onde o tempo escorre devagar, como se tivesse memória. O Ribeiro de S. Simão, afluente do Rio Lima, com o seu sussurro milenar, murmura histórias que não estão nos livros. As pedras molhadas, polidas por passos que já não se contam, guardam o eco de vozes antigas – os nossos avós, e os avós deles, curvados sobre a terra, com as mãos no húmus e os olhos no céu.

A água que ali corre, vinda das entranhas das serras, encontra-se com a maré atlântica como quem reencontra um irmão distante. Mistura-se o doce com o salgado, o interior com o oceânico, e nesse abraço nasce uma nova pele do mundo.

Entre o musgo e o granito, cresce uma aguarela viva: aves em voo baixo, peixes ligeiros, arbustos que resistem ao tempo como resistimos nós – teimosamente vivos. E somos isso: parte da seiva, do ciclo, da dança invisível entre sol e sombra.

A terra que pisamos é também ela um corpo que nos lembra quem somos. Não somos donos: somos descendentes, inquilinos de passagem, herdeiros de silêncios e cantigas.

Ali, entre o ribeiro e o Lima, o homem é menos vaidade e mais raiz, porque continuamos a dar testemunho daquilo que somos e de onde vimos.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 20, quinta-feira, 19 de junho de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XIX)

Em Vila Franca do Lima, Viana do Castelo, no coração de uma pequena oficina, entre o cheiro da madeira e o som ritmado das ferramentas manuais e mecânicas, trabalha António Barrosa, um verdadeiro mestre da arte de esculpir a memória. Artesão apaixonado, dedica-se há décadas à criação de réplicas perfeitas de utensílios tradicionais, recriando com minúcia e alma objetos que fizeram parte do quotidiano de gerações passadas.

Mas António não se limita ao utilitário: entre as suas obras mais impressionantes estão bicicletas antigas – funcionais e ao tamanho natural – totalmente construídas em madeira rija – sim, até os pedais e as correntes! Cada peça, por mais pequena ou complexa que seja, é talhada à mão, com uma paciência que só quem ama profundamente o que faz consegue manter. O resultado é um acervo vastíssimo de milhares de miniaturas e réplicas ao tamanho natural, todas, testemunhos vivos de um Portugal que resiste ao esquecimento.

A obra de António Barrosa é, em si mesma, um património cultural inestimável. Infelizmente, grande parte deste tesouro continua guardada longe dos olhos do público. É urgente a criação de um museu que acolha de forma digna e permanente estas peças. Um espaço onde se possa celebrar não só a arte do artesanato tradicional, mas também a persistência de quem, contra a maré do tempo, continua a dar forma à história com as próprias mãos.

Preservar o legado de António Barrosa é preservar a identidade de um povo. É dar às gerações futuras a oportunidade de ver, tocar e sentir as raízes de onde viemos. Um museu não seria apenas uma homenagem ao artesão, mas um ato de respeito pela nossa memória coletiva.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 19, quinta-feira, 05 de junho de 2025, p. 17) 

BRUMAS DO TEMPO (XVIII)

Em Cabanas, recanto sereno de Afife, onde o mar se insinua por entre os montes e a brisa traz rumores antigos, Pedro Homem de Mello encontrou o seu pouso da alma. Ali, longe do rumor das cidades e perto da música primordial da terra, ergueu-se o seu refúgio de silêncio e poesia.


As fragas guardavam-lhe os passos como confidentes ancestrais, imutáveis, fiéis. No sussurro do vento entre os pinheiros, ouvia-se o eco do verso ainda por escrever. E era como se o tempo ali hesitasse – como se o mundo se demorasse um pouco mais, para escutar o murmúrio do mar e o pensamento do homem que o contemplava.

«As águas são para o mar, / As folhas são para o vento. / Só as fragas se não mudam! / Nelas ficam o pensamento…» – esse breve brado poético ressoa como oração laica, como segredo revelado àqueles que sabem escutar com o coração aberto.

As águas levavam o efémero. As folhas, o instante. Mas as pedras – aquelas pedras do Norte, firmes e silenciosas – sabiam guardar o que é essencial. Em cada fissura da rocha, Pedro Homem de Mello deixava um verso, uma memória, um fragmento da sua eternidade.

Em Cabanas, a paisagem não era apenas cenário: era corpo e espírito, era matéria viva onde o poeta se fundia. E assim ficou incrustado nos musgos, na maresia, na sombra dos carvalhos – como quem, ao encontrar o seu lugar no mundo, escolhe não partir mais.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 18, quinta-feira, 29 de maio de 2025, p. 16) 

BUMAS DO TEMPO (XVII)

Ao nos depararmos com a porta de uma igreja ornada com um vitral que exibe a vieira, em Vila Nova de Anha, símbolo marcante dos Caminhos de Santiago de Compostela, vemos não apenas uma porta física, mas uma passagem simbólica entre o mundo profano e o sagrado. A vieira, com suas linhas que convergem ao centro, representa a convergência dos caminhos em direção a um ponto comum: o encontro do ser humano consigo mesmo e com o transcendente.


Tal como a vieira marca os passos dos peregrinos em direção a Santiago, a concha assume um novo significado no ritual do batismo dentro dessa igreja, onde é usada para levar a água benta, símbolo de pureza e renascimento, até à cabeça da criança.

O batismo, com a água retirada pela concha, não é apenas um ato de purificação. Ele é o princípio de uma caminhada, uma jornada pela vida onde a pessoa é inserida num novo caminho espiritual, numa jornada contínua de busca, escolhas e crescimento. A água, fonte essencial de vida, renova o ser humano e marca o início de uma nova caminhada: o ato de viver, de peregrinar pela existência, de crescer.

Do lado de fora, projetado pelo vitral, está a figura de um transeunte, alguém que, talvez sem saber, encontra-se também em sua própria jornada. A simbologia desse caminhar faz-nos lembrar que todos somos peregrinos e que, a cada passo, fazemos escolhas, enfrentamos encruzilhadas, como numa caminhada eterna que vai do mundano ao espiritual, do profano ao sagrado.

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 17, quinta-feira, 22 de maio de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XVI)

 As varandas iluminadas da Misericórdia de Viana do Castelo, sob o manto da noite, não são apenas pedra, luz e história – são espelhos da alma humana. O edifício da “Casa das Varandas” transcende o tempo ao carregar em si o gesto de cuidar. Ali, onde o Renascimento e o Maneirismo se encontram, pulsa uma arte que não se limita ao estético, mas se expande ao ético. A beleza das colunas, das arcadas e das linhas harmónicas reflete a procura do homem pelo equilíbrio entre razão e sensibilidade.


Inspirada por mestres italianos e flamengos, a estrutura nasce num tempo em que o homem se redescobria como centro do mundo. Mas neste caso, o centro não é o ego, é o outro – aquele que sofre, aquele que precisa. A confraria da Misericórdia, ao construir este espaço, inscreveu na pedra um ideal de compaixão. Cada varanda é palco de uma silenciosa promessa: ver o mundo com olhos de humanidade.

A Arte, aqui, não é apenas ornamento, é gesto. É uma mão estendida, é a arquitetura do cuidado. Num tempo de luzes e sombras, de dúvidas e certezas, a Casa das Varandas ergue-se como símbolo de um humanismo ativo. Assim, este edifício não é apenas memória – é proposta. É chamado à empatia, à responsabilidade, à transcendência. Porque a verdadeira Arte não é indiferente. Ela educa o olhar, desperta a consciência. É voz do silêncio, é ética em forma de matéria. E quando a luz da noite banha estas varandas, não vemos apenas um edifício renascentista. Vemos um ideal – o de um mundo onde a beleza e o cuidado caminham juntos. Como deveriam caminhar sempre!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 16, quinta-feira, 15 de maio de 2025, p. 17)

BRUMA DO TEMPO (XV)

A Romaria de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, e a Romaria de Nossa Senhora das Boas Novas, em Mazarefes, embora distintas na forma e contexto, encontram-se unidas pela mesma matriz simbólica e espiritual: o anseio humano de proteção, gratidão e sentido diante da incerteza da existência. Ambas representam manifestações profundamente enraizadas na experiência das comunidades piscatórias, cujo quotidiano se desenrola entre a vastidão incerta do mar e o abrigo precário da terra.


Nossa Senhora da Agonia é invocada antes da partida, no momento da entrega do ser ao desconhecido, onde o medo da morte e da perda se impõem. Já Nossa Senhora das Boas Novas é o símbolo da chegada, do retorno seguro, da esperança cumprida. O seu andor, réplica de uma nau, e a rara iconografia da caravela nas mãos, evidenciam essa ligação visceral entre fé e travessia. O mar torna-se metáfora da vida – ora serena, ora revolta – e a fé é o fio invisível que liga o ser ao sentido, perante a finitude.

Filosoficamente, estas romarias traduzem o paradoxo da condição humana: o desejo de transcendência perante a vulnerabilidade. Psicológica e existencialmente, elas revelam a busca de um lugar de pertença, consolo e identidade. A imagem da Senhora com a caravela remete para a travessia interior do sujeito – a peregrinação da alma que, ao enfrentar os perigos do “mar de si mesmo”, reconhece a necessidade de um horizonte espiritual que o salve do naufrágio do vazio. Assim, estas manifestações não são apenas festas religiosas, mas rituais do ser em busca de sentido.

 (In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 15, quinta-feira, 08 de maio de 2025, p. 22)

BRUMAS DO TEMPO (XIV)

 No Cimo da Memória. Lá no alto, onde o granito beija o céu e a história se entranha na bruma da serra, ergue-se a antiga alma do Hotel de Santa Luzia, hoje Pousada de Viana do Castelo, como quem guarda segredos antigos e o tempo parece respirar mais devagar.

Mais que pedra e forma, é guardiã do tempo – de um tempo que se recusa a desaparecer.

Ali, junto à citânia ancestral, o espírito da proto-história murmura entre as arcadas e os pinhais. A basílica do Sagrado Coração de Jesus – e Santa Luzia –, grandiosa, acompanha em silêncio, como sentinela da fé que atravessa os séculos.


Aos pés desse miradouro sagrado, o rio Lima – o mítico Lethes de impérios de antanho – corre suave e constante até à foz. Diziam os romanos que quem o cruzasse perderia a memória. Mas aqui, paradoxalmente, tudo se lembra.

Cada curva do rio guarda ecos de navios, vozes de peregrinos, sonhos que resistem à erosão do tempo. A paisagem – montanha, rio, oceano, cidade e basílica – não se limita a ser bela; ela nos recorda que somos ponte entre o que foi e o que virá.

A vista alcança o Atlântico, o horizonte e o íntimo. Ver com olhos que não têm pressa.

E ali, o viajante compreende que o esquecimento não é ausência – é escolha.

Na Pousada, em vez de nos esquecermos, aprendemos a recordar com reverência. E perceber que, às vezes, a verdadeira viagem é permanecer – e escutar o silêncio das alturas.

Porque há lugares onde o tempo repousa e a memória desperta!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 14, quinta-feira, 24 de abril de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XIII)

 Entre gritos e silêncios dos Outdoors da Cidade. Ao caminharmos pelas ruas da cidade, erguem-se diante de nós os grandes outdoors – gigantes silenciosos que falam alto. Uns nos gritam ofensas disfarçadas de promessas; outros, quase sussurrando, nos convocam à humanidade. São expressões do nosso tempo, e como tais, refletem mais do que anunciam: revelam.

Os outdoors políticos, em especial os que se especializam em ataques, se tornam espelhos distorcidos de uma sociedade viciada em disputa. Ali não há convite ao diálogo, mas sim trincheiras levantadas com tinta e papel. Sua utilidade prática é, talvez, mover o eleitor pelo medo ou pela raiva, emoções que, embora intensas, são passageiras e facilmente manipuláveis. Psicologicamente, esses outdoors alimentam a polarização, reforçam muros internos e externos, deixando pouco espaço para a reflexão serena.


Em contraste, à sombra de um hospital, repousa um outro tipo de apelo: «Dar sangue é ser ainda mais solidário». Não há ataque, não há rival. Há apenas um convite à empatia. Sua utilidade prática é evidente – salvar vidas. Mas é na esfera psicológica que sua força é mais profunda. Ele não nos coloca contra o outro; nos coloca “com” o outro. Em vez de acender a chama do conflito, acende a da compaixão.

A diferença, portanto, não é apenas de conteúdo, mas de direção: enquanto os outdoors políticos agressivos empurram o olhar para fora, procurando um inimigo, o apelo solidário nos faz olhar para dentro, buscando um sentido de vida. Um convida-nos à guerra simbólica; o outro, à paz concreta.

E talvez seja isso que devamos perguntar, sempre que algo tentar nos chamar atenção aos gritos: «Esse chamamento me torna mais humano ou apenas mais reativo?» Os outdoors falam – mas quem decide o que ouvir somos nós!

( In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 13, quinta-feira, 17 de abril de 2025, p. 32)

BRUMAS DO TEMPO (XII)

Dia Nacional dos Centros Históricos: Memória de Pedra e Voz. Exposição sobre Monumentos, lugares do Centro Histórico de Viana do Castelo, numa visão artística e documental (28 a 30 de março de 2025), um trabalho de partilha e interação profissional do Arquivo e Memória, Gabinete de Design e Memória Fotográfica e Museu do Município de Viana do Castelo.

Nos centros históricos, o tempo não passa – sedimenta-se. Cada rua, cada praça, cada pedra polida pelo toque de gerações resguarda ecos de um passado que não é distante, mas presente na respiração das suas gentes. Os monumentos erguidos não são apenas matéria, são testemunhos de um tempo que, embora passado, persiste no olhar de quem os contempla.


Nesta exposição, integrada no Dia Nacional dos Centros Históricos, cruzamos a ponte invisível entre ontem e hoje. A memória, essa guardiã da identidade, vive não apenas nas fachadas gastas pelo vento, mas nas histórias sussurradas entre portas, nas mãos que moldam ofícios antigos, nos passos que percorrem calçadas seculares.

Celebrar o centro histórico é reconhecer que ele não é um vestígio, mas um organismo vivo, onde passado e presente se entrelaçam. Os lugares falam, mas é preciso escutá-los. E, ao fazê-lo, descobrimos que a identidade de um povo não se escreve apenas nos livros, mas nas ruas por onde ele caminha!

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 12, quinta-feira, 03 de abril de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (XI)

A Porta do Tempo. Diante desta antiga porta lateral da Igreja de São Bento, em tempo de chuva, sentimo-nos perante um limiar entre o passado e o presente. Fundada em 1545 e construída em 1549, para acolher jovens raparigas, sobretudo filhas da nobreza local, o convento nasceu como um refúgio, um espaço de recolhimento e proteção num mundo onde o destino das mulheres era, muitas vezes, decidido por convenções. Aqui, entre paredes austeras e orações sussurradas, vidas se moldaram ao ritmo da fé e das expectativas da época. Algumas encontraram na clausura um chamamento, outras aceitaram-na como um destino inevitável.


Durante cerca de uma década e meia, o chão apodrecido impediu que os passos dos fiéis cruzassem este espaço na Quinta-Feira Santa. Mas a partir de 2023, com o soalho renovado, as portas reabriram, e com elas ressurgiram um elo entre séculos. O tempo, que tantas vezes separa, também une. A memória das jovens que aqui viveram encontra-se com os pés dos que agora entram. O que estava interdito renasce, lembrando-nos que o passado não se perde – ele apenas espera o momento certo para voltar a ser parte do presente. Neste regresso, ecoam as preces de outrora, cruzando-se com os murmúrios dos visitantes de hoje, num diálogo silencioso entre aquilo que fomos e aquilo que ainda podemos ser!
 

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 11, quinta-feira, 27 de março de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (X)

 Nem sempre tudo vai bem quando bem devíamos estar. O corpo, frágil embarcação na travessia do tempo, carrega as marcas das viroses da carne e dos cansaços da alma. Cada febre e cada dor são murmúrios de uma vida que pulsa, teimosamente, porque sabe que é feita para durar. Entre o desconforto e a cura, aprendemos a resiliência – essa arte de permanecer de pé mesmo quando o vento nos dobra. A fonte, com seu espelho de água, é um convite à comunhão.


A mão que toca a superfície não apenas perturba a imagem, mas funde-se ao próprio elemento. Bebemos da água como quem bebe da própria origem. Somos feitos dela e por ela seremos dissolvidos um dia. Mas enquanto respiramos, cada gole é uma celebração, uma renovação do pacto com a Terra-Mãe, que nos acolhe sem cobrar promessa, oferecendo sombra, frescor e alimento.

A natureza, na sua generosidade silenciosa, ensina-nos o que esquecemos nos labirintos da pressa moderna: é na simplicidade da água, do ar puro, da terra húmida, que mora a cura verdadeira. Ainda que martirizados pelas enfermidades de ocasião, reencontramo-nos inteiros nesse ato primordial de respirar junto ao jardim, de molhar as mãos na fonte, de beber da própria essência da vida.

(InA Aurora do Lima, Ano 170, Número 10, quinta-feira, 20 de março de 2025, p. 17)

quinta-feira, 8 de maio de 2025

BRUMAS DO TEMPO (IX)

 Salvador Vieira (1937-2017): Entre a Arte e o Rio. Nasceu onde o Lima se deixa abraçar pela terra. E como o rio, seguiu o seu curso – ora sereno, ora indomável – sempre fiel à corrente invisível que o ligava à arte e ao lugar de onde veio.

Estudou em Paris, aprendeu técnicas e teorias, mas foi no regresso, no reencontro com a sua terra, que o seu talento encontrou raiz. Mais do que moldar a matéria, Salvador Vieira moldava a memória – as mãos no barro ou gesso como quem cuida da infância, como quem devolve à escultura e à pintura o pulsar da vida que nela dorme.

Nos espaços públicos de Viana e Ponte de Lima, as suas esculturas não são apenas obra, são gestos humildes de quem ofereceu o que sabia ao mundo que o viu crescer. O Homem do Rio Lima guarda a entrada da ponte, não como guardião, mas como testemunha silenciosa da alma fluvial que corre por dentro da vila, com o olhar sereno sobre a cidade.

Nas suas “Memórias do Campo” e na “Alegoria às Feiras Novas e ao Folclore”, não há vaidade, apenas respeito. Salvador não quis monumentos para si, quis celebrar os outros – o povo, o trabalho, a festa e a dança que dão forma ao verdadeiro património de uma terra. Nem o “Cardeal Saraiva” foi esquecido.

E assim foi também como Mestre. Não se fez mestre distante, mas companheiro de aprendizagem, partilhando o que sabia com a mesma generosidade com que dava forma à pedra e ao bronze. Entre a arte e a docência, o seu legado é um só: a certeza de que nada é maior do que a humildade de quem sabe ouvir a terra e as suas gentes.

Salvador Vieira não esculpiu apenas formas visíveis – esculpiu e pintou o vazio sagrado onde cabem o olhar, a memória e o futuro.

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 09, quinta-feira, 13 de março de 2025, p. 25)

BRUMAS DO TEMPO (VIII)

 A Luz e o Sentido da Existência. A luz, enquanto manifestação do inteligível, não se reduz a um mero fenómeno físico, mas sim a um princípio que orienta o pensamento e a existência. Desde os primórdios, foi a luz que rasgou as trevas do desconhecido, permitindo à razão erguer-se contra a incerteza.

Camilo Castelo Branco dizia que o Amor é uma luz que não deixa escurecer a vida. E não há contradição entre amor e razão: ambos iluminam, cada um à sua maneira. A verdade, por sua vez, é um candeeiro de quatro lâmpadas. Se uma se extingue, ainda restam três para impedir a escuridão completa. Assim é o conhecimento: quando uma certeza nos falta, há sempre outros focos que permitem vislumbrar novos caminhos.

Nos textos judaicos, há um ensinamento essencial: a luz é mais apreciada depois da escuridão. Somente aqueles que já sentiram o peso da sombra compreendem o valor do brilho que dissipa a dúvida. O candeeiro de quatro globos encerra uma metáfora: mesmo quando um véu opaco tenta ocultar o sentido, há sempre claridade suficiente para quem deseja ver.

Sigamos, pois, a luz – seja a da razão, a do amor ou a da verdade. Pois enquanto houver lume aceso no pensamento e no coração, a escuridão nunca será definitiva.

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 08, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025, p. 25)

BRUMAS DO TEMPO (VII)

 Numa altura em que assumimos a imprevisibilidade do TEMPO (homem sem relógio e fraco telemóvel), tendo ao mesmo tempo uma previsível relação pacífica com a linearidade do mesmo, eis que nas nossas deambulações, silenciosas e discretas, por amor à cultura, nos leva a reconhecer a nossa fragilidade, pacifica(mente) (des)controlada, em reconhecer a especificidade do tempo sem aceitar a irreversibilidade, a tal linha contínua que, do passado, avança para o futuro. Em tempo em que pensávamos possuir todo o tempo do mundo, vamos dissimulando a promessa de um futuro que nunca está lá.


O carácter circular do tempo vem-nos anulando o peso do passado, mas também fechando as portas do futuro. Em segundos, tudo passa a ser passado.

Deixamos de ter tempo para nada. «NA TERRA DOS HOMENS: contos ditos a um deus surdo», ali em LIVR(e)ARIA (Ponte de Lima), local onde Nietzsche tem a palavra: «Isto não é um livro: Os livros que importam?! / Que importam os caixões e as mortalhas? / Isto é uma vontade, isto é uma promessa, / Isto é um último quebrar de pontes, / É um vento do mar, um largar de âncora, / Um ruído de rodas, um apontar de leme; / Ruge o canhão com o seu fogo branco, / E ri-se o mar, esse monstro!» – obrigou-nos a voltar ao passado (2009), revisitando Marlene Ferraz, a cuja mensagem “A todas as árvores que se levam ao mundo, nuas de vaidade…”, acrescentaria o autógrafo da praxe: «Até a quantidade de chuva / que nos cai / Pode fazer de nós / criaturas mais (ou menos) liquidas». Este «NA TERRA DOS HOMENS» é uma edição de 2023. Foi em maio de 2024 que a adquirimos e já é passado!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 07, quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025, p. 25)

BRUMAS DO TEMPO (VI)

 Nos tempos em que laborávamos na construção naval, sentíamos a respiração salgada do Atlântico e partilhávamos a lida com os pescadores de Viana do Castelo. Eles, mestres do mar; nós, artífices do casco que lhes dava sustento e esperança. Havia uma cumplicidade silenciosa entre o cinzel que talhava a madeira e a rede que rasgava as ondas. Era a consciência de que o homem não se impõe ao oceano, mas negocia com ele, com a paciência de quem compreende sua própria fragilidade.


Hoje, revisitamos essa conexão através do Monumento ao Pescador, obra do escultor José Rodrigues (1936-2016), que se ergue solene na rotunda junto ao Santuário de Nossa Senhora da Agonia. O bronze imortaliza a faina, tornando eterno o instante do labor e do risco. Mas, ironicamente, a água estagnada em sua base reflete um tempo suspenso, um mar sem marés. Como se ali, diante da grandiosidade da arte, fossemos levados a refletir sobre o fluxo interrompido da vida, sobre a memória que resiste mesmo quando as águas deixam de correr.

O monumento não é apenas uma homenagem, mas um espelho do destino humano. Pois assim como os barcos que construíamos e as redes que os pescadores lançavam, também nós somos arrastados pelo tempo, presos entre o passado que nos moldou e o futuro que se anuncia incerto. No entanto, tal como as ondas não cessam, a arte persiste, recordando-nos que o essencial nunca se perde: a luta, a esperança e o eterno diálogo entre o homem e o infinito azul do MAR DE VIANA!


(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 06, quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025, p. 17)


BRUMAS DO TEMPO (V)

Paradoxalmente, quanto mais lemos, mais sentimos a vastidão da nossa ignorância. Cada obra concluída não representa o fim de um percurso, mas a abertura de novas interrogações. A biblioteca é, então, um cosmos em expansão, onde a obsessão por preencher lacunas encontra sempre mais espaços para explorar. Somos condenados ao mesmo tempo à abundância e à insuficiência, à alegria de descobrir e à melancolia de reconhecer que nunca descobriremos tudo.



E não é exatamente isso que torna os livros tão fascinantes? A promessa de um encontro que nunca se esgota, de uma intimidade que nunca se reduz à familiaridade. Assim, viver entre livros é mais do que acumular saberes – é aceitar a condição humana como um perene ato de busca, como uma travessia que, ao mesmo tempo que nos prende ao infinito, nos lembra de nossa pequenez.

Nossa biblioteca é um reflexo de quem somos e do que desejamos ser. Os livros que escolhemos – e aqueles que ainda aguardam por nós – constituem a paisagem de uma vida vivida no âmbito do pensamento. Nessa obsessão, não há desperdício, pois cada página virada é um gesto de amor pela complexidade do mundo. E assim seguimos, como eternos viajantes, entre prateleiras que nos guiam e nos desafiam a sermos mais do que já somos!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 04, quinta-feira, 30 de janeiro de 2025, p. 18)

BRUMAS DO TEMPO (IV)

Modos de ver e ouvir Viana que do Lima se fez Princesa, onde janelas há muito fechadas abrem horizontes de inspiração ao Belo e ao Bom. Nesta terra de encontros, onde o tempo repousa com doçura, cada esquina murmura histórias de amor – e que maior amor que aquele que se funda na memória?

No coração de Viana, a arte urbana transforma vidro e pedra em espelhos da alma. A avó, como a cidade, guarda em si o calor do passado e a promessa eterna de um abraço. É como Platão ensinou: o Amor é o motor que nos eleva, uma sede de sabedoria que nos impele a contemplar o mundo para além da superfície.



Assim, ver e ouvir Viana é mais que um simples ato dos sentidos. É participar de uma dança antiga, em que o belo nos convida ao bom, e onde o coração, como a janela pintada, nunca deixa de procurar o infinito.

Sim, em Platão, o Amor é por excelência o motor da filosofia, definida à partida como «amor à sabedoria», qual cordão umbilical que une o finito ao eterno, inspirando o espírito à procura da verdade pelo belo. Como a avó, guardiã das memórias e do afeto, a cidade de Viana do Castelo é um relicário de tempos vividos e sentidos profundos. Ambas permanecem no coração, não como lembranças estáticas, mas como faróis que orientam o pensamento para o bem. No reflexo das janelas pintadas, vê-se o laço invisível entre a tradição e o futuro, onde a Arte se torna ponte – uma filosofia viva que desperta o olhar para as raízes do Amor e a promessa de uma sabedoria sempre por alcançar!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 03, quinta-feira, 23 de janeiro de 2025, p. 9)

BRUMAS DO TEMPO (III)

Nos caminhos que levam a Santiago de Compostela, a Alma (De Anima em Aristóteles) encontra sua jornada entre pedras gastas e passos antigos. Aqui, cada trilho carrega a marca de milhares de corações que ousaram procurar algo além da paisagem – a promessa de um reencontro com a fé e a esperança.



No sopé do Santuário de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, ergue-se a torre sineira, ladeada por um farol, como uma sentinela, apontando para o céu e para o futuro. As setas amarelas, símbolos universais dos peregrinos, guiam aqueles que, em meio à sua própria agonia (física e mental), procuram a luz de um novo amanhecer. O sino que ressoa nesta torre é como um clamor eterno: um lembrete de que toda dor tem um fim, e todo caminho difícil encontra sua recompensa.

A ponte entre a agonia e a esperança é construída com fé e persistência. Em cada quilómetro, os pés cansados deixam para trás as dúvidas, e o coração se abre à serenidade que só a estrada pode oferecer. A peregrinação não é apenas uma travessia física, mas um caminho interior – onde o peso do fardo se torna leve, e a busca por Santiago se transforma numa busca pela própria De Anima redimida. Sob a sombra do santuário e o brilho das estrelas que coroam a noite, seguimos em frente, com a certeza de que a esperança nos aguarda em cada horizonte desvelado!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 02, quinta-feira, 16 de janeiro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (II)

 Na bruma que envolve a manhã, as linhas do horizonte são apagadas, e o nevoeiro, denso e silente, atua como um véu de mistério sobre o mundo. E assim, na quietude desse cenário enevoado, o olhar repousa em algo simples e extraordinário: uma teia de aranha, bordada com delicadeza, presa ao centro da grade da varanda. Ali, tão ténue e frágil, parece conter em si uma poesia subtil, escrita em fios finos e quase invisíveis.


Essa teia, essa criação minúscula e temporária, brilha como um microcosmo de significados, ressoando com algo profundo e universal. No particular desse instante, há um reflexo de algo maior: a habilidade da natureza em criar com precisão e beleza, mesmo nas mais pequenas das obras, como se tudo estivesse sempre entrelaçado – nós, a aranha, o nevoeiro, o tempo. Assim como a teia é bordada no espaço, também a nossa existência se tece de momentos assim, frágeis e efémeros, cada fio sendo uma escolha, uma emoção, um pensamento.

Ao observarmos essa delicadeza, sentimo-nos parte de algo maior. Aquela teia convida-nos a contemplar não apenas o detalhe, mas a entender como somos todos envolvidos em redes invisíveis, unindo o particular ao universal, o pequeno ao imenso. É uma pequena verdade revelada no silêncio da manhã: mesmo o mais diminuto dos elementos participa da dança do cosmos, como nós, que, em meio ao nevoeiro, despertamos!

(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 01, quinta-feira, 09 de janeiro de 2025, p. 17)

BRUMAS DO TEMPO (I)

A manhã despontava envolta num véu espesso de nevoeiro, cobrindo a feira que se erguia junto ao campo de árvores e relva molhada. As barracas, ainda em silêncio, pareciam flutuar no meio da névoa, suas cores apagadas pela luz difusa do amanhecer. O ar, pesado e húmido, trazia consigo o cheiro fresco da terra e das folhas, enquanto as figuras dos feirantes surgiam aos poucos, como sombras que ganhavam forma na bruma. Os sons abafados das primeiras conversas e o arrastar de caixas misturavam-se ao canto distante de um pássaro, criando um ambiente suspenso, onde o tempo parecia correr mais devagar, imerso naquele momento de calma quase onírica.

Naquele cenário, a feira parecia não ser apenas um encontro de gentes e mercadorias, mas um espelho da condição humana. O nevoeiro, que escondia os contornos e apagava as fronteiras, evocava a própria incerteza da existência. Quem somos, senão figuras em formação, caminhando na névoa de nossas dúvidas e sonhos?


Cada barraca, com seus produtos por dispor, lembrava as potencialidades da vida: aquilo que ainda não se mostrou, mas já contém em si a promessa de vir a ser. E as conversas tímidas que surgiam pareciam o início do diálogo eterno entre o que é e o que pode ser, uma tentativa de preencher a distância entre o real e o ideal.

A luz do amanhecer, filtrada pela névoa, não iluminava por completo, mas sugeria – como se o conhecimento pleno, tal como a manhã clara, fosse algo que só se alcança aos poucos, através da paciência de quem observa. O canto do pássaro, perdido na imensidão, era um lembrete de que, mesmo na incerteza, existe um chamamento. Um convite ao movimento, ao agir, ao mergulho na efemeridade do instante.

O nevoeiro começava a dissipar-se, lentamente, deixando ver o colorido tímido das mercadorias e os rostos já mais nítidos dos feirantes. O mundo retomava sua forma concreta, mas não sem antes oferecer aquele momento de transição, onde o palpável e o etéreo coexistiam. E na essência daquela manhã, tão breve e indefinível, revelava-se uma verdade subtil: o instante que hesita entre ser e deixar de ser é onde reside a poesia da vida!


(In, A Aurora do Lima, Ano 170, Número 42, quinta-feira, 19 de dezembro de 2024, p. 39)

segunda-feira, 31 de março de 2025

INTERAÇÃO FILOSÓFICA ENTRE EÇA DE QUEIRÓS, LUÍS DE CAMÕES E CAMILO CASTELO BRANCO.

 O Eça, da nossa Biblioteca Particular, já tem companhia. Quem mais poderia ser se não o Camões. De forma “curta e grossa”, resta-nos esperar pelo Camilo Castelo Branco, parceiro ideal para ambos, tendo em conta que o que temos, deste último, é uma miniatura pouco visível à dimensão do autor do “Amor de Perdição”. O diálogo foi estabelecido, quando menos contávamos. Principalmente pelo arrojo da figura mais diminuta, morador um pouco mais acima, consideramos a possibilidade de o procurarmos entre os parceiros que nos possam atender através da sua benevolência.

Juramos a pés juntos que os ouvimos com a maior das atenções.


No recanto solene de uma das nossas estantes, onde as páginas sussurram histórias e o pó carrega o peso do tempo, três vultos da literatura portuguesa ganham voz e presença.

Luís de Camões, altivo, de olhar penetrante, ainda que só de um olho, fita os companheiros com a intensidade de quem viu mares e batalhas, e profere com gravidade:

— Pois bem, aqui estamos. Eu, que cantei glórias e desventuras de um povo errante, vejo agora os meus versos repousarem ao lado de dois mestres da pena. Dizei-me, Eça e Camilo, que destino tem hoje a literatura? Ainda há espaço para a verdade ou apenas para a conveniência dos tempos?

Eça de Queirós, com a ironia sempre afiada, ajeita os punhos da casaca e responde:

— Ah, meu caro Camões, hoje há espaço para tudo e para nada. A literatura, outrora espelho das sociedades, tornou-se ora entretenimento fugaz, ora manifesto de ideais que pouco dizem à essência humana. Mas não sejamos pessimistas: o que é bem escrito sempre há de sobreviver às eras. Afinal, não é por acaso que ainda discutimos estas questões entre o couro e as lombadas desta Biblioteca Particular.

Camilo Castelo Branco, cruzando os braços, sorri com desdém e completa:

— Ora, ora, Eça, tu e a tua mania do realismo... Como se o mundo pudesse ser explicado em meras descrições de costumes! A literatura não é um espelho da sociedade, mas sim um teatro da alma humana! É no drama, na paixão e no desespero que se encontra a verdade! Eu próprio não escrevi «Amor de Perdição» apenas por vaidade, mas porque a dor é universal, é eterna! Camões, vós sabeis bem disso, não?

O poeta suspira e assente:

— Dor e glória andam de mãos dadas. Mas pergunto-vos: se hoje o mundo se esquece da verdade e da beleza da palavra, que podemos nós, espíritos impressos em papel, fazer senão aguardar leitores que nos compreendam?

Eça sorri com malícia:

— Ora, Camões, sempre haverá leitores curiosos, ainda que poucos. E se há algo que nos une, além do brilho das letras, é que o tempo nos fez imortais. O que escrevemos atravessa as marés da ignorância e ressurge onde menos se espera. Afinal, as miniaturas que nos representam nesta estante são pequenas no tamanho, mas imensas naquilo que carregam.


E assim, entre a ironia de Eça, o dramatismo de Camilo e a altivez épica de Camões, o tempo segue seu curso, e os três vultos, em sua conversação filosófica, permanecem vivos onde quer que nos aventuremos a abrir-lhes as páginas!